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Sinopse

Durante décadas o jornalista Jep Gambardella fez parte de uma elite romana. Figurinha carimbada nos círculos literários e sociais, ele faz uma análise de sua vida aos 65 anos, quando a decadência parece bater em sua porta.

Crítica

Verrà la morte e avrà i tuoi occhi (Cesare Pavese)

Aos 65 anos, o escritor Jep Gambardella publicou apenas um livro. A produção restrita em nada se deve ao sucesso da obra, mas bem pelo contrário. Assim como Flaubert, que procurou escrever um livro sobre o nada e falhou, Gambardella se deixou levar pela busca da “grande beleza”. O preço para encontrá-la foi a própria vida. A matéria do novo filme de Paolo Sorrentino, o sempre autoral e interessante diretor de As Consequências do Amor (2004) e Aqui é o meu lugar  (2011), confunde-se com a busca do protagonista. Neste, que é o seu melhor trabalho, o diretor italiano se aproxima como nunca de três nomes definitivos do cinema de seu país. Os ecos estão em toda parte: de Fellini e o enredo de A Doce Vida (1960), com o também jornalista que vive em Roma, interpretado por Marcello Mastroianni; do barroquismo estético chiaroscuro de A Noite (1961), de Michelangelo Antonioni; e da convicção aristocrática com a qual erige os planos à la Luchino Visconti, em O Leopardo (1963) e Morte em Veneza (1971), A Grande Beleza é permeado pela força ambígua e limítrofe daquilo que é criação e destruição; presença e ausência; definitivo e acessório; necessário e contingente.

O primeiro embate dessas tensões pode ser presenciado logo no início. Depois da exuberante sequência em que a cidade de Roma representa a beleza intocada, revestida contra o desgaste do tempo pelo canto gregoriano, segue-se o corte para a festa. Em oposição ao esplendor natural das cenas anteriores, a música artificial, construída com sintetizadores, marca o ambiente do puro – e impuro – impulso. A dança cômica, que não sabemos se ridícula por si ou agravada pela idade dos participantes, dá o tom burlesco e tristemente ordinário. É impossível não concluir pela inveja, única e lamentavelmente irreversível dos afrescos romanos, intactos na penetração do belo e da graça. Com a ótima atuação de Toni Servillo, ator parceiro de Sorrentino e presente em boa parte do cinema italiano atual, como em A Bela que Dorme (2012), o personagem de Gambardella passa perfeitamente por um dândi niilista. Na idade em que se encontra, superou as expectativas da vida, zomba da arte que se diz conceitual e critica a máscara social usada pela alta sociedade, grande parte seus amigos de longa data.

Contudo, nem mesmo toda essa indiferença existencial parece ser suficiente para lidar com a notícia dada por Alfredo (Luciano Virgilio), que em inesperada visita comunica-o da morte de Elisa, a ex-mulher de Gambardella. Na cena em que ambos se encontram, unidos pelo mesmo nome –  mas separados pelo tempo – o  marido e o ex refletem a perversidade dos rótulos, a decadência da vitória e o vazio do ego. Sem a mulher que amaram, deixam de ser um pouco de si. Ao final da sequência, a câmera sem afetação de Luca Bigazzi (Pão e Tulipas, 2000) realiza formalmente o pêndulo de Schopenhauer, um movimento que não se cansará de repetir. O plano e o contraplano são superados, pois o sentimento é de outra ordem. O quadro se abre e divide: ao fundo, os homens arqueados em desespero, marcados pelo trunfo natural da face de Servillo; à frente, a escadaria em espiral, rija e inabalável. Ela se mantém; eles desmoronam. Contraste. Oposição.

O presente é memória. Ao comunicar a morte, Alfredo revela – e talvez esta seja a maior dor – que no diário deixado, Elisa conta ter se casado com ele, “um bom companheiro”, ao passo que Gambardella era a sua paixão. Sem saber o que fez com que ela o deixasse, sem saber por que não voltou apesar do sentimento, sem saber se um filho teria sido a solução, tudo aparenta se resumir a um ato de coragem não vislumbrado. A vida, tal qual a escada espiralada, é o verdadeiro trem na madrugada de A Noite Americana (1973). Quando inspirados pela vaidade do desejo ególatra por perdurar –  e a sequência em que cremos estancar a velhice com injeções de botox capta bem tal superioridade patética –, deixamos de nos candidatar a permanecer, mas a passar vergonha. Inúmeras são as referências à fotografia, esta arte desvirtuada. Em uma delas, a mulher resolve mostrar a Gambardella as fotos que tirara de si, inclusive algumas sem roupa, diz. Há tantos motivos para ficar e ver as fotos depois de dividirem a cama pouco tempo antes quanto para conveniências. O tempo urge e ele se esvai. Não por canalhice ou desconsideração, mas por convicção. Aos 65 anos, sabe que quem recita de memória passagens do único livro que escrevera não está com ele, mas com o escritor. E isso é um erro, um erro comum, outro erro. Equívoco tão proeminente quanto o do turista, em uma das primeiras cenas do filme, subitamente morto ao registrar a cidade. Bastou um clique e a soberba de acreditar que poderia capturar de forma química a beleza, como se esta fosse domesticável.

Inerente ou encrustada. Saliente ou tímida. A Grande Beleza é a expressão em forma de busca do inefável. O panorama unido pela edição de Cristiano Travaglioli, responsável por dar ritmo e assentar o material, funciona como cuidadosas idas e vindas similares à fluidez assimétrica da memória. À sensibilidade inata, que pode ser desenvolvida, nunca comprada ou inventada, é que se atém o filme de Sorrentino. Nas sucessões do trajeto, complexo para ser entendido e simples para ser aceito, são os pequenos rompantes que moldam e justificam o mundo, como deuses a espreita na greta.

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é crítico de cinema, membro da ACCIRS - Associação dos Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul, e da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Tem formação em Filosofia e em Letras, estudou cinema na Escola Técnica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Acumulou experiências ao trabalhar como produtor, roteirista e assistente de direção de curtas-metragens.
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