
A Garota da Agulha
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Magnus von Horn
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Pigen med nålen
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2024
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Dinamarca / Polônia / Suécia
Crítica
Leitores
Sinopse
A Garota da Agulha se passa em Copenhague, no ano de 1919. Uma jovem trabalhadora fica desempregada e grávida. Ela conhece Dagmar, que dirige uma operação clandestina de adoção. Uma forte conexão surge, mas seu mundo se desintegra quando ela se depara com a chocante verdade. Indicado ao Oscar 2025.
Crítica
Karoline (Vic Carmen Sonne) trabalha numa tecelagem cuja produção está dedicada à confecção de uniformes para os soldados da Primeira Guerra Mundial. De cara, o universo no qual o cineasta sueco Magnus von Horn situa a protagonista é marcado por miséria e desesperança. Nele, a mulher sem dinheiro e ignorante quanto ao paradeiro do marido envolvido na batalha global é repentinamente obrigada a deixar o apartamento porque não tem dinheiro para pagar seu aluguel. Ao buscar às pressas uma casa nova, ela é forçada a se contentar com um muquifo cheio de infiltrações e potencialmente malcheiroso administrado por uma senhora que mais parece a carcereira. E assim, sucessivamente, Karoline é desamparada até encontrar algum tipo de conforto na companhia da dona da loja de doces que intermedia a adoção ilegal de recém-nascidos indesejados. No entanto, o sentido da palavra “conforto” aqui logo é questionado por verdades inconvenientes, por uma situação em que a fantasia/mentira é mais reconfortante do que a realidade/verdade. A Garota da Agulha nos propõe mergulhar numa situação sem espaços confortáveis à bondade e à redenção, para isso fazendo de sua protagonista não apenas testemunha, mas também agente e vítima da perversidade cultivada como bote de salva vidas. Karoline é uma personagem que tem pouco espaço de manobra, alguém que não tem escolhas.
Depois de se envolver sexualmente com o patrão, Karoline alimenta o sonho de mudar de vida, de ter empregadas de prontidão para atender todos os seus desejos imediatos. Assim, ela ascenderia socialmente de uma hora para outra, deixando de ser a despejada sem-teto para se tornar aristocrata. No entanto, o roteiro assinado por Line Langebek Knudsen e Magnus von Horn não deixa qualquer margem para alegorias românticas como a da Cinderela, pois está mais preocupado em desenhar um mundo-cão esvaziado de situações positivas. Karoline é rechaçada pela família do amado, expulsa com o bastardo no ventre e desesperada para se livrar do “fardo” que certamente ampliaria a sua miséria. A Garota da Agulha chama inicialmente a atenção pela belíssima fotografia em preto e braço assinada por Michal Dymek, cujo principal resultado narrativo é estabelecer um embate sensorial entre bondade e maldade por meio do contraste entre luz e sombra. Some isso ao fato de Karoline ser uma figura complexa que ora tem atitudes louváveis, ora faz aquilo que a miserabilidade permite. O excelente trabalho da atriz Vic Carmen Sonne é fundamental para criar essa área cinzenta moral em meio a um visual preto e branco plasticamente bonito. E outra coisa importante: nesse mundo repleto de ruínas, a morte é mais convidativa do que o nascimento. Nascer é bastante perigoso. Morrer é um pouco mais simples.
A Garota da Agulha tem uma direção rigorosa. Magnus von Horn conta com atuações fortes, além da direção de arte (de Jagna Dobesz) e da fotografia brilhantes para construir um conto moral em que o desespero da realidade pode ser amenizado pela fantasia. Portanto, quando as verdades indesejadas vêm à tona, resta às personagens duas coisas: desistir e se render às dores do mundo ou escolher em qual mentira se refugiar. Karoline recebe a solidariedade de Dagmar (Trine Dyrholm), a dona da loja de doces que consegue pavimentar o caminho para crianças indesejadas serem aceitas por famílias com condições financeiras de tirá-las do lodo comum pós-Primeira Guerra Mundial. Atenciosa e acolhedora, mesmo que eventualmente tenha rompantes agressivos e impositivos, Dagmar conforta mulheres em desespero com essa história de crianças ganhando um futuro melhor a partir do abandono. Uma vez que a verdade aterradora vem à tona, o desespero e a culpa dessas mulheres tendem a ganhar outra dimensão. Magnus von Horn perde a oportunidade de tornar o filme ainda mais denso e profundo quando trata essa mudança de chave somente pela perspectiva da protagonista, não sublinhando que a revelação dos fatos pode trazer um efeito angustiante para inúmeras mães que precisaram renegar seus filhos por não terem condições de os criar. De toda forma, o filme é bem-sucedido, seco e forte.
Karoline é obrigada a permanecer num estado quase total de angústia. Primeiro, por não ter condições materiais de se manter em casa; segundo, pela ignorância a respeito do paradeiro do marido que partiu à guerra e a deixou desamparada; terceiro, como vítima de um mecanismo perverso de autoproteção das classes privilegiadas economicamente; quarto, pela necessidade de se aliar à traficante de crianças, a única pessoa capaz de lhe oferecer teto, algum afeto e alternativas à subsistência. Uma situação pouco aproveitada em A Garota da Agulha é o retorno do homem deformado da guerra. Assim como quase todos os personagens desse longa-metragem indicado a Melhor Filme Internacional no Oscar 2025, o sujeito de volta não tem autonomia. Ao regressar da guerra sendo declarado uma monstruosidade exótica, ele precisa se submeter à humilhação como aberração de circo para ao menos ter onde dormir e comer. As interações do sujeito com a protagonista apenas adicionam outro sintoma de miserabilidade. Felizmente, mesmo quando Karoline está diante desse homem, o roteiro não pontua de maneira inequívoca se ela é solidária ou se age motivada por algum sentimento entranhado de culpa. Logo, mesmo desperdiçando alguns insumos dessa história de perversidades e mazelas, Magnus von Horn conta a sua trama sombria com criatividade visual e sensibilidade às dores do mundo.
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