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Sinopse

Quando os garotos de uma cidade começam a desaparecer, um detetive parte em busca de respostas. Enquanto isso, atravessa uma grave crise no casamento, e suspeita que acontecimentos sobrenaturais estejam acontecendo dentro de sua casa.

Crítica

A princípio, À Espreita do Mal (2019) aparenta trazer conflitos em excesso. Numa floresta, crianças começam a desaparecer, seja pela presença de um matador em série, seja por obra de alguma força misteriosa. Em família, a terapeuta Jackie (Helen Hunt) atravessa uma crise matrimonial, após ter seu caso extraconjugal descoberto pelo marido. Em paralelo, fenômenos estranhos começam a acontecer dentro de casa, com objetos movendo-se sozinhos ou desaparecendo, e equipamentos eletrônicos ligando-se sem motivo aparente. O filme reúne as chaves do terror fantástico (o ataque a figuras indefesas na floresta) com o horror naturalista (a possível presença de psicopatas) e as ferramentas do suspense psicológico (personagens estressados, paranoicos, propensos a visões e alucinações). Mas como reunir todos estes elementos na mesma narrativa? O diretor Adam Randall e o roteirista Devon Graye apostam na alternativa mais ousada de todas: fazer com que estes motores de tensão estejam intimamente ligados, até se tornarem um único conflito. O natural e sobrenatural estão presentes simultaneamente.

O resultado funciona, em partes. O filme se sai melhor nas sugestões do que nas revelações: enquanto permanece no acúmulo improvável de indícios, um forte senso de ambientação se desenha ao espectador. O diretor de fotografia Philipp Blaubach efetua belo uso dos espaços, criando opressoras imagens aéreas da cidade e explorando a casa da família em longos planos, através de lentes grande-angulares que provocam distorções e sugerem um espaço ainda maior. Em consequência, o terror se aproxima do subgênero das casas mal-assombradas. O roteiro planta tantas pistas a resolver (o desaparecimento das facas, o cinzeiro ambulante, a televisão ligada sozinha, o “voo” do garoto na floresta, a máscara embaixo da cama, os estranhos flashbacks no trilho do trem, as falas incoerentes de um entregador) que desperta forte curiosidade quanto à solução para atar estas pontas no final. Em outras palavras, Randall cria forte expectativa, o que também aumenta a cobrança em relação ao desfecho. Espera-se alguma resposta capaz de não apenas esclarecer, como também reunir estes aspectos, oferecendo uma conclusão digna a cada personagem e uma resolução a tantas traições, desaparecimentos, assassinatos e manifestações sombrias.

O roteiro consegue entregar as reviravoltas prometidas – talvez em excesso. Graye aposta na estrutura de uma única história contada por diversos pontos de vista, revelando aspectos escondidos em cada versão. Seguindo a estrutura de bonecas russas, a história inicial contém outra diferente por dentro, e então mais uma, e depois outra. Se os criadores buscavam o valor da imprevisibilidade, atingiram seus objetivos. No entanto, o filme obtém mais êxito em introduzir mudanças bruscas do que em resolver as pendências anteriores. A cada guinada de ponto de vista, o filme abandona elementos fundamentais que jamais serão retomados. A questão do adultério, essencial na primeira metade da trama (as manifestações dentro de casa poderiam ser lidas enquanto metáfora da culpa), é esquecida. O teor machista e moralista das atitudes do filho adolescente também se dilui. No entanto, o elemento mais grave é o descarte de Jackie Harper, esquecida no terço final, quando as artimanhas do roteiro encontram dificuldade de oferecer alguma função à terapeuta. O filme vai além de revelar aspectos improváveis, ele também passa a negar a sua própria lógica.

O espectador recebe as respostas prometidas, porém a custo de um sacrifício da verossimilhança. As descobertas a respeito de cada personagem soam tão surpreendentes quanto absurdas, jamais esclarecidas a contento em termos de construção de personalidade. Todos sofrem fortes transformações, algo tão saboroso para os atores quanto difícil de resolver organicamente na narrativa. Depois de tanto suspense, o discurso simplesmente revela o(s) culpado(s), sem justificar suas atitudes por completo, efetuando diversas concessões ao realismo para legitimar tantas novidades no percurso. Os elementos de tensão são frágeis: a narrativa se transformaria num curta-metragem caso os personagens tivessem uma câmera de segurança em casa. O mundo da tecnologia e da vigilância intervém quando desejado ao realizador (vide a maestria de Alec com telefones celulares), e depois deixa de funcionar quando não convém mais à trama. A existência de culpados que produzem e ostentam as provas de seus crimes, além de intrusos desajeitados e despercebidos constituem outras bondades do diretor, priorizando o ritmo ágil à coerência interna.

Por fim, À Espreita do Mal combina a ambição narrativa digna dos novos filmes de terror independentes, que circulam em festivais (como Corrente do Mal, 2014, Corra!, 2017), com o senso de espetáculo digno de um Filme B, do tipo feito a toque de caixa e despejado às dezenas nas plataformas de streaming. As atuações carregam um misto de comprometimento dramático e exagero digno do terror extremo, gerando uma indefinição em tom e propósitos. Helen Hunt, menos expressiva do que antigamente, tenta trazer alguma fragilidade à mulher adúltera, face a Jon Tenney, um detetive que jamais vemos investigando de fato, e cujas habilidades são pouco exploradas pela história. Talvez o ator mais interessante neste projeto seja Owen Teague, jovem explorado com frequência pelo cinema de terror, porém com igual desenvoltura cômica e dramática. Entretanto, eles são soterrados pela malícia do roteiro, tornando-se peões de um jogo intricado, ao invés de personagens dotados de particularidades e objetivos precisos. Caso conhecêssemos desde o princípio os desejos reais de cada um deles, o filme ganharia em densidade e na força dos embates, mas perderia no elemento surpresa – e Adam Randall claramente prioriza este último.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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