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Sinopse

Lily sofre de uma doença degenerativa, piorando a cada dia. Sentindo que o fim está próximo, ela chama as duas filhas adultas, com os maridos e netos, para a sua casa na praia. Ela faz todos os preparativos para que esta seja a última reunião familiar antes de sua morte.

Crítica

Coloque diversos personagens em círculo, conversando um com o outro. Como você os filmaria? Onde posicionaria a câmera: nas costas de alguns deles, no meio da roda, girando entre um e outro? Este representa um dos dilemas básicos da direção cinematográfica: percebe-se um bom diretor pela maneira como filma cenas de jantar, dizem os manuais cinematográficos. Quentin Tarantino e Martin Scorsese, por exemplo, são dois cineastas fascinados pelas cenas de refeições, com conversas à mesa. A riqueza de opções proporcionadas por estes cineastas costuma ser estudada em escola de cinema. Em Viver a Vida (1962), Jean-Luc Godard efetua inúmeras brincadeiras com a câmera para evitar o famoso plano e contraplano: uma imagem-pêndulo deslizando de um rosto ao outro, a câmera circular em 360º, os corpos sentados lado a lado num balcão. Cenas de conjunto se tornam particularmente difíceis de filmar, quanto todos os personagens se encontram em cena ao mesmo tempo. Os Oito Odiados (2015), de Tarantino, constitui basicamente um grande estudo sobre a mise en scène de conjunto. A Despedida (2019), drama dirigido por Roger Michell, pretende seguir um caminho semelhante.

Cerca de metade das cenas traz a integralidade do elenco presente, sentado em círculos numa sala de estar ou ao redor da mesa de jantar. Diante desta disposição pouco favorável aos enquadramentos, o sul-africano toma decisões improváveis: para a sala de estar, ele espreme a equipe de fotografia no canto do cômodo, deixando o plano fixo e a imagem bem aberta para abraçar o máximo de interações à sua frente. Perdemos as expressões faciais distantes, alguns objetos se escondem atrás de outros, e os atores ficam um tanto incomodados (vide a presença da câmera na nuca de Susan Sarandon). Para as sequências à mesa de jantar, o diretor de fotografia Mike Eley circula os convidados, filmando-os do ponto de vista de uma pessoa de pé. Vemos os rostos de cima para baixo, ao passo que, na tentativa de criar ritmo, Eley chacoalha a câmera em todas as direções diante de pessoas imóveis. É difícil não prestar atenção às escolhas inusitadas de direção e cinematografia neste drama. Quando Jennifer (Kate Winslet) briga com a irmã Anna (Mia Wasikowska) no quarto, elas são observadas de longe, em estilo voyeur. O momento em que a primeira encontra um álbum de fotografias traz um desnível tão marcante de luz que Kate Winslet aparenta estar em duas locações diferentes, unidas pela montagem.

O trabalho de espaços e tempos é tão problemático que, caso Michell e Eley não fossem profissionais experientes (eles trabalharam juntos em Um Lugar Chamado Notting Hill, 1999, Minha Prima Raquel, 2017, e The Duke, 2020), poderiam ser confundidos com iniciantes. Pelo menos, os planos muito abertos e distanciados proporcionam uma experiência rara para o melodrama: a imagem evita as lágrimas ou o sofrimento da mãe doente prestes a morrer (Susan Sarandon) e de suas filhas, no último fim de semana juntas. Em contrapartida, a distância dos rostos provoca uma estranha sensação de frieza. Talvez as ótimas atrizes, além de Sam Neill e Rainn Wilson, proponham sutilezas jamais capturadas pela câmera escondida. É possível que a jovem Bex Taylor-Klaus ofereça nuances interessantes quando oferece maconha a uma família devastada, no entanto, a câmera treme tanto que perdemos suas expressões. Visto que as brigas e conciliações se encontram em primeiro plano, seria esperado que os diálogos trouxessem tiradas irônicas, belas provocações ou inversões de poderes em família. Nada disso: Lily conduz sua quase-morte com inabalável placidez, Jennifer permanece neurótica do início ao fim, Anna mergulha num torpor depressivo durante toda a projeção.

A Despedida impede o espectador de conhecer estas figuras para além da situação de crise em que se encontram. Como ocorriam as reuniões familiares antes da esclerose da mãe? Quais eram os conflitos? Em que essas pessoas trabalham, que visão da política e da sociedade possuem? Quais são suas manias e brincadeiras? Na incapacidade de desenhar personalidades, Michell prejudica o impacto narrativo. O cineasta espera que se ria de um homem recebendo uma gravata de aniversário, no entanto, ignorávamos a obsessão dele pelo acessório. A dúvida quanto à moradia de Anna durante um mês de sumiço poderia despertar atritos, porém o diretor evita tocar no assunto até revelar a resposta certa. Lily oferece joias de grande valor pessoal aos familiares, mas sequer sabíamos que estas peças existiam. O espectador jamais é convidado a participar deste fim de semana junto dos personagens, colocando-se no ponto de vista de um ou de outro. Pelo contrário, invadimos o recinto como penetras, observando a vida alheia à distância sem entender as ações, nem motivações daqueles corpos tristes. Os familiares restam inacessíveis, razão pela qual as brigas surtem impacto mínimo: de que adianta provocar Michael por ser apático demais, se desconhecíamos este traço de personalidade? Por que investir no tabu dos sonhos de Jonathan em se tornar ator, se os planos profissionais do garoto não representavam um problema até então?

Os dramas familiares, e sobretudo os melodramas a respeito da proximidade da morte, dependem de dois elementos fundamentais: primeiro, a identificação do espectador, e segundo, o desenvolvimento da tensão (Quando ocorrerá a morte? Como será?). Conscientemente ou não, A Despedida elimina ambos os fatores. Os atores estão confortáveis em seus papéis, ainda que prejudicados pelas escolhas de som e imagem. Kate Winslet sabe compor a mulher neurótica e controladora, e Susan Sarandon possui longa experiência em melodramas familiares. Ela evita o choro fácil, efetuando um trabalho delicado com os olhares em tom de autoironia. A modesta dose de leveza no projeto decorre de Sarandon, escancarando a inevitabilidade e o pavor diante da morte. No entanto, quantos destes personagens serão lembrados ao final da sessão? Qual troca de diálogos, qual cena marcante o filme possui? Ora, o resultado se mostra insípido: para um filme verborrágico, as falas têm potência limitada, e os choques não produzem tensão. A Despedida anunciada no título deveria provocar forte impacto emocional, porém soa apenas previsível. Talvez Michell tenha conquistado a façanha mais difícil de todas, face a um elenco estelar e o tema sensível da eutanásia: ele nos torna indiferentes diante da morte.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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CríticoNota
Bruno Carmelo
5
Alysson Oliveira
4
MÉDIA
4.5

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