Crítica

Heitor Dhalia sempre foi um diretor bastante singular dentro do cenário cinematográfico nacional. E se seus primeiros trabalhos abriam espaço para serem confundidos com exercícios de estilo e provocação, À Deriva, seu longa mais recente, representa uma maturidade no seu olhar. Sua estreia com o intenso e sombrio Nina despertou a curiosidade de muitos, e o sarcasmo revelado em O Cheiro do Ralo confirmou os principais diferenciais do cineasta: perspicácia, uma visão aguda, cuidado com os detalhes. Agora, no entanto, ele se mostra pronto para vôos ainda maiores e mais amplos.

À Deriva mostra a trajetória de descoberta sexual de uma menina. E este processo se dá por duas frentes – através dos próprios e confusos desejos e sob a ótica do casamento dos pais, prestes a desmoronar. Ela está deixando de ser criança, mas ainda não é uma mulher. E neste caminho não sabe muito bem o que pensar, sentir ou querer. Ao mesmo tempo em que atrai e repele a atenção dos garotos ao seu redor, ela também fica perdida ao tentar acompanhar os sobes e desces da relação dos pais. Ele parece ser carinhoso e apaixonado, mas também deixa transparecer uma atração por uma novata na região onde a família está passando as férias de verão. A mãe, por sua vez, está visivelmente infeliz e desesperada. Mas terão estas duas condições necessariamente a ver uma com a outra?

Dhalia, também autor do roteiro, deixou um pouco de lado uma costumaz preocupação exagerada com a forma e se fixou mais no conteúdo. Seuspersonagens, sempre muito bem construídos e absolutamente verossímeis, aparecem aqui ainda mais verdadeiros. Conseguimos nos identificar com os dramas, com os dilemas e com os desencontros por eles experimentados. Quem nunca quis mais de uma coisa ao mesmo tempo? Ou ainda, quem nunca pensou querer algo, quando na verdade buscava outra completamente diferente? Nossa satisfação pode vir dos mais estranhos lugares, e faz parte do comportamento humano estar sempre pronto para estas novas descobertas.

Lançado com toda a pompa e circunstância que a ocasião exigia, em pleno Festival de Cannes, À Deriva chegou a mercado brasileiro poucos meses depois conquistando o carinho da crítica, porém falhando em ser recebido com mais entusiasmo pelo grande público. Isso, no entanto, de forma alguma pode funcionar como um revés para a produção. Este é um filme adulto, que não entrega fórmulas fáceis nem faz concessões. O francês Vincent Cassel (Treze Homens e um Novo Segredo) e a brasileira Débora Bloch (que não aparecia no cinema desde Bossa Nova, em 2000) estão perfeitos como o casal em crise, e a química entre eles realmente funciona. São intérpretes competentes e em total domínio de suas capacidades. As participações especiais de Cauã Reymond (Divã) e da americana Camilla Belle (Heróis) só enriquecem o conjunto. Mas surpreendente mesmo é a novata Laura Neiva, como a protagonista, que mostra que certos talentos, mesmo brutos, devem ser apreciados. Assim como esta sensível e delicada obra, que conquista aos poucos, mas toca cada espectador de forma única e irreversível. Um belo conto sobre amadurecimento e compreensão, acima de tudo.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
avatar

Últimos artigos deRobledo Milani (Ver Tudo)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *