Crítica


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Crítica

Entre todos os adjetivos que se poderia atribuir a este filme, talvez o mais consensual seja o de um projeto “poético”. Afinal, o diretor Fernando Spiner utiliza as principais ferramentas associadas tradicionalmente à noção de lirismo: a câmera lenta, a trilha sonora leve e melodiosa, as belas paisagens, os corpos boiando no mar, as imagens desfocadas, os longos fades entre cenas, as falas cordiais sobre o amor e a amizade, além da própria poesia, é claro, lida em diversos trechos da narrativa. Os personagens deste filme se adoram, se abraçam, cozinham um para o outro, sorriem, nadam juntos, e até fazem filmes um para o outro – como confessa o diretor, que interpreta A Boia como homenagem ao amigo de longa data, Aníbal Zaldívar.

Trata-se de um cinema gentil, preocupado em criar ambientes agradáveis, imagens plácidas e narrações amenas. A poesia pode ser perturbadora, violenta, interpeladora, mas tanto o filme quanto a forma de literatura e pintura representadas visam a contemplação como objetivo em si. Por esta razão, o diretor coloca a si mesmo em cena, conversando com o amigo sobre as belezas da vida enquanto o espectador acompanha o cozimento gradual de um peixe – não o tipo desejado, mas aquele que o mar “quis oferecer” no dia em questão. Não existe uma única cena que se destaque do conjunto, que eleve o ritmo ou ressignifique os segmentos precedentes. O conjunto sustenta uma narrativa tão coesa quanto monótona, alternando entre a natureza bruta e a natureza humana, entre a poesia literária e a poesia das imagens.

Consequentemente, o documentário adquire um caráter muito próximo dos programas televisivos sobre modo de vida, bem-estar e descoberta de si mesmo, reduzindo o trabalho dos artistas retratados a uma relação de autossatisfação ao invés de algum percurso social específico. Mesmo se passando em uma praia precisa, correndo atrás de uma boia determinante para a dupla de amigos, eles parecem bastante desconectados do mundo ao redor, vivendo apenas neste parêntese idílico de encontros e leituras. Spiner privilegia o excepcional – ou talvez seja melhor dizer o idealizado -, em oposição ao banal. Por isso busca tantos planos aéreos do mar, tantas imagens subaquáticas ou planos de detalhes da espuma e das bolhas, em representação daquilo que não se veria a olho nu pelo turista comum.

O filme decide utilizar uma linguagem simplificada do cinema, talvez em busca da conexão com um público mais amplo. “Do que trata o seu filme?” pode ser uma das questões mais odiadas pelos criadores, mas A Boia decide responder à questão por conta própria, não apenas uma, mas duas vezes, primeiro quando o narrador afirma didaticamente se tratar da história de dois grandes amigos que mantêm viva a tradição de nadar até uma boia, e depois, quando o diretor explica sua vontade de “fazer um filme sobre meu amigo Aníbal”. O projeto busca se validar pelo afeto, ao invés da pluralidade de sentidos que pode oferecer. Por isso, repete à exaustão as câmeras lentas na praia, as melodias da trilha evitando qualquer possibilidade de silêncio, e as entrevistas convencionais entre amigos, nos quais os entrevistados conversam sobre o valor poético do mar.

Visto que a narrativa não desenvolve uma tese nem conduz o espectador a um desfecho preciso, o documentário sofre com a indefinição no momento de se concluir. A montagem volta a acumular novas cenas da praia, do mar, da boia, novos trechos de poesia, articulados por novos fades, passagens de tempo e mudanças climáticas. A projeção poderia se interromper em qualquer ponto antes do final escolhido, ou talvez logo depois, pouco importa – a sucessão de imagens se torna aleatória, puramente retórica. Ao falar de poesia, o cineasta adota uma lógica igualmente poética, de total liberdade no discurso e no agenciamento de imagens, ainda que este material ofereça uma poesia fácil e padronizada. O projeto pode não ser muito provocador, mas tampouco pretende sê-lo: Spiner prefere embalar seu espectador em ritmo etéreo e agridoce ao longo de toda a narrativa.

Filme visto na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2019.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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