Crítica


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Sinopse

Uma companhia de dança prepara uma coreografia sobre o enfrentamento da depressão. Personagens arquetípicos superam traumas e crises individuais em prol do coletivo.

Crítica

A Alma do Gesto se debruça sobre um processo. Em questão, está a montagem do espetáculo Black Dog, da Téssera Companhia de Dança, filiada à Universidade Federal do Paraná. Recorrendo à lógica observacional, os cineastas Eduardo Baggio e Juslaine Abreu-Nogueira se colocam como testemunhas do que começa como seleção. Evitando intervir no que acontece diante de suas lentes, refutam – não de todo, mas o suficiente –, por exemplo, uma montagem que sublinhe excessivamente a tensão dos postulantes a escolhidos. Aliás, intuímos se tratar de uma audição somente porque os artistas são numerados. E, uma vez compreendido que a intenção do longa-metragem é seguir em linha reta rumo à apresentação, ou seja, que acompanharemos praticamente todas as etapas do método, fica implícita uma cronologia que permite a antecipação dos próximos passos. Somos guiados da escolha, passando por ensaios iniciais, o encontro de problemas de produção, as lições específicas, o desenho do cenário, até chegar à efetivação do trabalho coreográfico e humano empreendido.

Eduardo Baggio e Juslaine Abreu-Nogueira se misturam às engrenagens do cotidiano da Téssera Companhia de Dança, evidenciando seu líder e coreógrafo, Rafael Pacheco, como figura interessante. Aliás, diante desse sujeito, no mais das vezes bastante paternal no trato com os bailarinos, os realizadores quase se descolam da natureza essencialmente observacional, sobretudo por ressaltarem determinadas características de seu modus operandi, assim sendo magnetizados por sua singularidade. Esses desvios da radicalidade do formato também podem ser vistos nos instantes em que a câmera se detém em episódios pretensamente resguardados, vide as lições que o mestre passa aos aprendizes com a ajuda de elementos naturais como a água. Ao mencionar que a solista deve sentir um escoar abstrato pelo corpo, Rafael ajuda nessa assimilação ao efetivamente derramar água sobre seus braços, assim criando uma equivalência. A proximidade do dispositivo inexoravelmente altera, ainda que de forma imperceptível, essa dinâmica, tornando difícil discernir espontaneidade de atuação.

Sim, pois especialmente Rafael Pacheco, em certas passagens, parece sutilmente enfeitiçado pela maquinaria que registra o trabalho árduo, como que abrindo o gesto, alterando minimamente a entonação a fim de ser cinematográfico. A ciência de que há a equipe filmando obviamente perturba o ambiente dos bailarinos, instintivamente fazendo com que eles construam corpos cênicos diferentes, não apenas subordinados à teatralidade, mas também ao jogo do cinema. Nesse sentido, a leitura do longa-metragem não deve descartar questões pretensamente menores, tais como a distância que a câmera toma dos personagens e da ação. Embora evite personalizar, trazendo à tona as subjetividades somente de Rafael e da prima ballerina que acusa problemas de saúde e, por isso, é obrigada a assumir outro papel no espetáculo, o filme traz alguns comentários de bastidor, tais como visões de um grupo a respeito da exaustão como elemento a ser utilizado. Diante dos conceitos, os realizadores se restringem a sinalizar, sem os investigar ou desdobrá-los em cena.

A Alma do Gesto nos permite acesso privilegiado ao processo criativo, além de grifar o quão árdua é essa jornada que antecede a consumação de uma curta temporada de dança. Pena que não abra um pouco de espaço à autoanálise da sua capacidade de desassossegar em alguma medida a privacidade dos ensaios. Sim, pois a apresentação pertence à esfera pública, existindo exatamente no encontro com a plateia que voluntariamente se coloca diante do palco a fim de conectar-se com a arte. Já a coxia, o backstage, as conversas de corredor, são concernentes ao privado. É justamente o olhar de Eduardo Baggio e Juslaine Abreu-Nogueira que nos permite adentrar numa jurisdição, a priori, não aberta à visitação de alguém de fora da trupe. Se mais afastada da ação, a câmera não seria um componente tão evidentemente capital e clamante por um papel. Pois, até para transparecer-se imperturbados – algo tangente ao tipo de documentário escolhido –, coreógrafos, bailarinos e outros personagens tendem a interpretar. E as sutilezas desse jogo passam batidas.

Filme visto online no 9º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, em outubro de 2020.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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Grade crítica

CríticoNota
Marcelo Müller
6
Chico Fireman
5
MÉDIA
5.5

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