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Sinopse

Laura, junto com o namorado Martin e dois amigos, saem de férias na Sicília. No segundo dia de sua estadia - em seu vigésimo nono aniversário, a garota é sequestrada. O sequestrador acaba por ser o chefe da mafia da Sicília, extremamente bonito e jovem, chamado Don Massimo Toricelli. Massimo dá à menina 365 dias para fazê-la amá-lo e ficar com ele.

Crítica

Passeie por alguma livraria popular – ou pela versão virtual da mesma, em tempos de pandemia. O sucesso da saga Cinquenta Tons de Cinza deu origem não apenas a dezenas de tramas derivas, mas a um subgênero preciso: o erotismo softcore baseado no imaginário de algum empresário milionário e musculoso, que compra todas as casas e carros que quiser, viaja para qualquer país de sua escolha, e pode possuir qualquer mulher que deseje. Mesmo assim, vejam só, acaba se apaixonando por uma “mulher comum”. Os contos de fada, destinados a ensinar garotas a esperarem pelo príncipe encantado (pelo menos na versão contemporânea, pós-Disney), se converte no ideal da mulher inesperadamente escolhida pelo homem mais cobiçado, mais rico, e o mais feroz na cama. Talvez ele seja controlador, sádico e abusivo, mas isso faria parte do charme, não? Cretino Irresistível, A Submissa, Volúpia, Toda Sua, Peça-me o que Quiser, Bem Profundo e A Noiva Despida são outras séries de romances que embarcam na configuração mommy porn de Anastasia Steele e Christian Grey.

365 Dias (2020), baseado na trilogia literária de Blanka Lipinska, junta-se ao grupo com elementos muito próximos a Cinquenta Tons de Cinza (2015): a menina que cai ao chão ao encontrar seu Christian pela primeira vez, o prazer sadomasoquista, o baile de máscaras, as viagens em jatinhos e iates por lugares paradisíacos, a antiga amante dele surgindo para complicar o romance, o passado familiar traumático do rapaz para justificar o instinto de dominação e torná-lo “sensível” aos olhos do público. No entanto, algumas mudanças são feitas para tornar a história mais moderna: Laura (Anna Maria Sieklucka) não representa a moça virginal com medo de sexo, e sim uma empresária bem-sucedida de farto apetite sexual. Não há cenas sobre contratos com cláusulas eróticas, nem uma romantização específica do sadomasoquismo, apenas a dominação compreendida de modo mais amplo, por critérios de gênero (o homem tendo “direito” à mulher) e condição financeira (o sujeito rico subjugando a mulher de menos posses). Massimo (Michele Morrone) sequestra Laura porque deseja tê-la perto de si. Ele a droga, mantém guardas para vigiá-la, prende-a a uma cama, beija os seios e agarra as coxas sem a autorização dela, leva-a para as festas contra a vontade da mesma, mas estas seriam, no fundo, “provas de amor”. Ele deseja demonstrar, através do tempo e da insistência, que nenhuma mulher pode resistir ao seu charme. Pobre rapaz apaixonado.

Ainda que elimine a infantilidade grosseira de Cinquenta Tons de Cinza, 365 DNI (no original) mergulha em outros problemas igualmente graves, especialmente na fetichização do estupro e na ideia de que, com a insistência, todo abuso (sexual e psicológico) tem o potencial de se transformar num belo romance. Laura resiste, provoca o rapaz que promete “não fazer nada que ela não quiser”, apesar de tê-la sequestrado. Ora, em muito menos de 365 dias, ela estará nos braços deste “cretino irresistível” que, apesar de mafioso, tem dinheiro, é bonito, faz sexo sempre. O filme apoia duas ideias condenáveis: 1. Ele constitui a verdadeira vítima nessa história. O rapaz só assassina adversários malvados como líderes de tráfico de mulheres, e “respeitaria” as vontades de sua refém por lhe dar as roupas e comidas de sua escolha. A masculinidade entendida enquanto possessão seria reflexo incontrolável de um homem que ama demais. “Não me provoque”, ele ameaça, por não conseguir se controlar. A banalização do relacionamento abusivo atinge índices inacreditáveis nas mãos dos diretores Tomasz Mandes e Barbara Bialowas. 2. No fundo, Laura sempre gostou de ser submissa a Massimo. O filme apresenta desde o começo a tese de que a bela mulher não é procurada pelo marido, estando com o desejo à flor da pele. Quando vence uma disputa com empresários, ela tira a camisa dentro do carro e acaricia os próprios seios, excitada pela vitória. Cada vez que recusa os avanços do sequestrador, a atriz sustenta um olhar ambíguo, alguns segundos mais longos do que o esperado, para sugerir que está se contendo, fazendo-se de difícil. No fundo, ela sempre adorou a condição do sequestro.

Assim, a feroz mulher de negócios se torna uma namorada gentil para o rapaz que a compra como quem adquire um vaso para a casa – algo que os diretores fazem questão de apresentar como um sonho, uma sorte grande da garota. Esteticamente, 365 Dias reproduz um imaginário caricatural de elegância e sedução: luzes vermelho-sangue dentro de cômodos acolchoados, câmeras lentas sobre os corpos em movimento, pores do sol para tornar o sexo ao ar livre ainda mais romântico, música pop sussurrada no início de cada transa, mulheres gemendo contra o vidro da janela, contra o box do banheiro, contra a porta do provador da loja. Este projeto ousa ir mais longe na representação do sexo do que os equivalentes, demonstrando curiosa obsessão pelo sexo oral. Os cineastas inclusive permitem mostrar um indício da base do pênis para atribuir verossimilhança à felação. As imagens contribuem a fetichizar a dominação: Massimo agarra uma comissária de bordo pelos cabelos e a força a praticar sexo oral nele (algo que a deixa muitíssimo feliz, conforme atesta a cena seguinte); o rapaz nu tem seu pênis escondido diversas vezes pela cabeça de Laura, em clara representação do sexo oral; ele é posicionado sobre luzes irreais que o transformam em figura estatuesca de virilidade, enquanto ela permanece deitada na cama, esperando pelo bote.

Os criadores não apenas descrevem a submissão feminina, mas a defendem, sob o estranho pretexto de se tratar de uma forma de liberdade. “Ele só quer cuidar de você”, explica o secretário de Massimo. “Quando você está com ele, se sente como uma criança: ele realiza todos os seus desejos”, admite Laura à amiga. A associação entre infância e sexo sem limites seria problemática por si só, mas a fala da protagonista ainda sugere a necessidade de ser cuidada pela figura paterna-protetora-abusiva. A mesma premissa poderia ser abordada pela ótica da síndrome de Estocolmo, ou ainda pelo humor absurdo de Ata-me! (1989), que satirizava a lógica “te sequestro até que me ames”. Mandes e Bialowas, por sua vez, acreditam nesta configuração enquanto relacionamento saudável e desejável. O casal central encarna estereótipos quase cômicos da sedução: ele flexiona os braços e faz cara de durão, ela torce o lábio e finge que vai resistir. A estrutura do romance se torna previsível: é evidente que ambos terminarão juntos, restando apenas acompanhar a falsa equivalência de poderes (como se ela tivesse o mesmo poderio à disposição) até que o sexo se concretize. Enquanto isso, resta ver Laura admirando o volume nas calças do sequestrador, e dizendo sedutoramente: “Nossa, você está molhado...”, em diálogos que não devem nada aos roteiros pornográficos convencionais.

365 Dias termina sem um desfecho. Confiantes demais no potencial de do projeto, os produtores suspendem a trama quando uma notícia bombástica irrompe na trama, para supostamente nos deixar ansiosos pela sequência. Esta conclusão torna o resultado ainda mais fraco, porque sequer apresenta uma trajetória autônoma. O filme assume o caráter comercial, lançando falsas pistas fáceis de desvendar e esticando o relacionamento entre Laura e Massimo para próximos volumes. Ou seja, ao invés de apostar no “felizes para sempre”, na possibilidade de ruptura, no futuro ambíguo entre eles ou em qualquer outra forma de final, simplesmente se interrompe a trama após duas horas. O fato de não desenhar uma conclusão para o relacionamento entre o casal impede que os diretores introduzam alguma forma de ironia, sarcasmo, crítica à fábula. No entanto, o otimismo forçado (o sequestro transformado em gesto de amor) dificilmente será rompido: supõe-se que qualquer tragédia anunciada corresponda a um novo obstáculo para Laura e Massimo superarem em nome do “amor”. Enquanto isso, dá-lhe trilha sonora melosa, pessoas de corpos perfeitos fazendo sexo perfeito em lugares perfeitos e tendo orgasmos simultâneos. Se a pornografia tradicional é condenada por introduzir padrões inalcançáveis de prazer e desempenho, este projeto seria condenável pelos mesmos motivos.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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Bruno Carmelo
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Francisco Carbone
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MÉDIA
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