Crítica


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Sinopse

Marieta quer deixar de uma vez por todas de se chamar Adolfo. Ter o mesmo nome de seu pai e ter os mesmos vinte centímetros lhe dão calafrios. Marieta quer chamar-se Marieta e ser uma mulher respeitada por todas as leis.

Crítica

Nesta produção dirigida por Ramón Salazar, Marieta (Mónica Cervera) é uma travesti que sofre de narcolepsia e de angústia por possuir um pênis. Aliás, o título, 20 Centímetros, se refere literalmente ao tamanho do “problema” da protagonista que mora com Thomás (Miguel O'Dogherty), anão chegado aos trambiques. Números musicais muito bem produzidos e coreografados irrompem na tela sempre que Marieta sofre um de seus frequentes apagões. Mais que meros adornos ou exercícios de estilo, se encarregam de ajudar o filme a avançar, trazendo um bem-vindo aspecto lúdico ao já multicolorido e expressivo mundo delineado pela encenação. A excentricidade é utilizada como força narrativa, elemento presente do comportamento exagerado dos personagens aos figurinos extravagantes. Por vezes, a trama sofre com o sufocamento decorrente do acúmulo de componentes, do excesso nem sempre produtivo no que tange à construção da atmosfera levemente jocosa do longa-metragem.

Pode-se dizer, o realizador tem um quê almodovariano, sobretudo pela maneira de esquadrinhar pessoas vivendo à margem. As presenças de Rossy de Palma e Lola Dueñas, atrizes contumazes nas produções de Pedro Almodóvar, são sinais dessa filiação carinhosa. Todavia, 20 Centímetros possui personalidade, não chegando tão próximo de um itinerário mimético, permanecendo na esfera das influências reconhecíveis. A concepção dos interlúdios musicais lembra bastante a dos congêneres hollywoodianos da Era de Ouro, o que acaba trazendo uma sensação de nostalgia ao filme. Nesta fábula, ora repleta de devaneios, ora marcada pela estrita comunicação com a realidade, o foco principal é a felicidade de alguém em severo desacordo com seu sexo biológico. Geralmente, os tons predominantes são o cômico e sarcástico. Salázar observa com interesse as singularidades, mas, eventualmente, pretere as visíveis diferenças em função da universalidade.

As relações de Marieta são basicamente fraternais. Ela ajuda a cuidar do filho de uma vizinha – mulher que vê o Brasil como um lugar sem igual para obter sexo –, interage com Thomás em níveis distintos, como se ele necessitasse de cuidados, e até com as colegas de prostituição exibe uma veia essencialmente protetora. A vontade de extirpar o pênis e construir uma vagina para substituí-lo é ameaçada constantemente, no mais das vezes pela imprudência da própria Marieta. 20 Centímetros perde um pouco da força e, por conseguinte, da capacidade de reter a nossa atenção quando, especialmente em seu miolo, fica dando voltas em torno de si mesmo, cozinhando os acontecimentos em banho-maria, quase com receio de evoluir rumo à resolução das questões postas. Para compensar isso, há a criatividade dos já citados números musicais, proeminentes e apenas ocasionalmente gratuitos, e a capacidade dos personagens de gerar empatia imediata, independentemente de sua importância ao todo.

O envolvimento de Marieta com um repositor de frutas e hortaliças, interpretado por Pablo Puyol, ensaia um dilema capital que poderia lançar nuvens de dúvida sobre a resolução da protagonista. Ainda que não desenvolva esse potencial a contento, Ramón Salazar tem competência suficiente para dar substância à mensagem derradeira. 20 Centímetros coloca demandas sociais significativas e urgentes numa embalagem cintilante que espelha a vivacidade de Marieta, sem com isso diminuí-las ou banaliza-las. O amor pelo cinema, evidente nas alusões mais diretas, trata de oferecer outro tempero às desventuras da travesti pelas ruelas de Madri, onde ela arranja sustento como prostituta, pois não há trabalhos disponíveis para mulheres com registro civil masculino, e nas quais encontra um sem números de outros sujeitos, coadjuvantes de seu sonho. Não fosse a frouxidão de sua tessitura, o filme poderia aspirar à grandiosidade. Entretanto, fragilidades a parte, ele consegue nos cativar.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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