20181224 em chamas papo de cinema

A dúvida é um elemento intermitente neste excepcional longa-metragem sul-coreano. A deliberada e muito bem construída relação com aquilo que não se pode determinar cria uma sensação prevalente de inquietude. Primeiro, Haemi (Jeon Jong-seo), a menina sorridente e solar que diz conhecer o protagonista, Jongsu (Yoo Ah-In), da remota época da infância. Ela está diferente, ele constata. À mencionada cirurgia plástica é atribuído esse estranhamento. Em momento nenhum da trama essa incerteza vem novamente à tona, senão indiretamente, com personagens desdizendo coisas, tais como a existência de um poço. O cineasta Lee Chang-dong não está interessado nos tópicos, mas na dubiedade, nos efeitos da não compreensão completa dos cenários. Segundo indício disso: o gato de Haemi. Embora seja bastante assinalado, mesmo que a ração diariamente colocada desapareça, em instante nenhum vemos o bichano. Esse tipo de ocorrência vai temperando o enredo instigante, que logo ganha traços de triângulo amoroso. O sexo entre o humilde Jongsu e Haemi abre portas a um relacionamento, truncado quando ela volta de viagem com um “amigo” a tiracolo. Ben (Steven Yuen) é um milionário aparentemente bem intencionado, mas cujo mistério vai crescendo na medida em que ele deixa aparente a insuspeita inclinação à transgressão. Em Chamas é um filme de rara qualidade no que diz respeito à construção do discurso, pouco escancarado, dado às entrelinhas. O abismo social é um componente muito bem aproveitado pelo realizador para ditar o andamento da trama, especialmente quando Ben menciona o estranho hábito de atear fogo em celeiros para dirimir o tédio. Um grande filme, que certamente merece estar no nosso top 10 de melhores do ano.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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