Foi-se o tempo em que mostrar o amor entre duas mulheres no cinema poderia ser considerado um gesto essencialmente iconoclasta. Isso será mesmo verdade? Embora, felizmente, vivamos em dias cada vez mais favoráveis a discursos em defesa da diversidade, há um obscurantismo nem sempre velado, verdadeira doença social alimentada por aqueles que consideram anomalia tudo o que é diferente. O cinema já abordou diversas histórias de amor homossexual, incluindo aí as vividas por casais femininos. Em virtude da chegada às telonas do longa-metragem gaúcho Nós Duas Descendo a Escada, de Fabiano de Souza, no qual as atrizes Carina Dias e Miriã Possani protagonizam uma bonita história marcada por afetos, idas e vindas, o Papo de Cinema olhou para o passado, do remoto ao recente, para escolher dez filmes emblemáticos ancorados em amores lésbicos. Confira nossa seleção.

 

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Amigas de Colégio (Fucking Åmål, 1994)
O primeiro longa-metragem do diretor sueco Lukas Moodysson aborda a adolescência, período conturbado do qual ninguém escapa. Paixões efêmeras, baixa autoestima, aspirações mil, quem somos e quem queremos ser. Nesse cenário de turbulência afetiva, habitado em Åmål por jovens cada vez mais americanizados com seus moletons FILA e bonés Nike, Agnes (Rebecka Liljeberg) ainda precisa lidar com a paixão pela jovem mais cobiçada da escola, Elin (Alexandra Dahlström), que inicialmente brinca com seus sentimentos. O tiro sai pela culatra quando a garota popular se descobre também apaixonada. Os sonhos de Elin, de emancipação, de fuga daquele cenário provinciano, são chacoalhados pela paixão improvável, um amor juvenil como qualquer outro. Claro que a questão homossexual é complicadora no contexto, mas Mooddysson não parece lá muito interessado em bandeiras, que não a do êxito pleno do amor. A imagem granulada serve para tornar tudo mais próximo do registro naturalista, desvinculando o filme da beleza idealizada, por exemplo, dos romances hollywoodianos. Curioso notar, nesta trama essencialmente feminina, os garotos são quase sempre grandes imbecis e/ou covardes. Contrapondo-os, o pai de Agnes salva a raça masculina do retrato desalentador. – por Marcelo Müller

 

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Nunca Fui Santa (But I’m a Cheerleader, 1999)
Quando Megan (Natasha Lyonne) chega em casa e se depara com uma intervenção – daquelas que familiares fazem quando alguém tem problemas com drogas, por exemplo –, ela não sabe como reagir. A família, amigos e até o namorado estão convencidos de que a menina é lésbica, uma ideia simplesmente inaceitável para pais extremamente conservadores e religiosos como os dela. A solução? Enviar a adolescente a uma espécie de clínica de reabilitação para homossexuais. Esta comédia da diretora Jamie Babbit pode parecer excessivamente simples e até um pouco tola, mas o resultado é uma sátira divertida dos discursos homofóbicos e sexistas ainda tão comuns hoje em dia. Abusando de estereótipos, mas sempre fazendo piada às custas do opressor, ao invés do oprimido, ainda aproveita para atacar também a heteronormatividade e os padrões tirânicos de gênero, brincando com a ideia retrógrada de que tarefas e interesses ditos femininos ou masculinos não só existem fora do campo das construções sociais, mas também têm relação com a sexualidade de cada pessoa. O humor pode não ser exatamente refinado, mas funciona. No mínimo, Babbit merece crédito simplesmente por jamais perder a chance de ridicularizar personagens homofóbicos, escancarando o absurdo desse preconceito. – por Marina Paulista

 

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Beijando Jessica Stein (Kissing Jessica Stein, 2001)
A atriz e roteirista Jennifer Westfeldt marcou sua estreia como protagonista – na verdade, trata-se de sua estreia no cinema! – neste drama lésbico sobre uma garota atrás do namorado perfeito até que, dentre tantos candidatos despreparados e encontros frustrantes, se vê finalmente realizada nos braços de uma outra moça. É uma comédia romântica como tantas outras, porém a abordagem do amor entre duas mulheres é tão leve e divertida que oferece um charme especial a este filme dirigido por Charles Herman-Wurmfeld, em um resultado tão positivo que terminou por lhe credenciar para comandar o sucesso Legalmente Loira 2 (2003). Westfeld – que na vida real é casada com o galã Jon Hamm – vive com graciosa entrega esta jovem adulta que, no meio de tantas escolhas, entre decisões profissionais e questões familiares, se vê, enfim, feliz ao abraçar uma oportunidade que nunca havia cogitado. Quantas outras meninas já não se viram na mesma situação? Como resultado, o filme foi premiado no GLAAD Awards (o Oscar do entretenimento gay) e eleito o Melhor Beijo Lésbico no Glitter Awards, além de ter sido indicado ao Independent Spirit (Melhor Roteiro de Estreante) e reconhecido ainda no Satellite Awards (Melhor Atriz e Atriz Coadjuvante). – por Robledo Milani

 

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Monster: Desejo Assassino (Monster, 2003)
Todos conhecem este título pela assombrosa atuação de Charlize Theron como a protagonista, a famosa serial killer norte-americana. Não só a transformação física, mas também psicológica à qual a atriz se rendeu fizeram com que ela ganhasse elogios do público, da crítica e um inédito Oscar de atuação. Porém, o filme é muito mais do que sua performance ou a conturbada vida criminosa de Aileen Wuornos, a prostituta que matava homens – boa parte, agressores. Sua relação com Selby Wall (Christina Ricci), garota de família religiosa que foge de casa para viver sua homossexualidade, é um dos eixos principais. A química entre as duas intérpretes sobressai, transformando aquele doloroso namoro permeado pela violência na rota de fuga da dupla. Toda a angústia que elas viveram era sanada por esse amor surgido de forma torta, mas nem por isso menos sincero. Um acalento para almas tão conturbadas que seguiram caminhos difíceis. É óbvio que o sentimento não as salvou da justiça estadunidense, mas, ao menos, serviu para lhes dar um pouco de paz num mundo tão obscuro. E a forma como a diretora Patty Jenkins humaniza suas personagens é o que há de melhor por aqui. – por Matheus Bonez

 

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Meu Amor de Verão (My Summer of Love, 2004)
Difícil encontrar quem não tenha vivido um grande romance durante a estação mais quente do ano. Que tenha passado por dias intensos de entrega e paixão, sem, no entanto, que tenham durado mais do que essas semanas de férias, longe de casa e da rotina diária. Esse retrato ganha uma nova percepção neste drama romântico juvenil dirigido pelo polonês Pawel Pawlikowski que, quase uma década depois, ganharia o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro pelo intenso Ida (2013). Emily Blunt, em seu primeiro papel de destaque no cinema, aparece como Tamsin, uma garota exótica e misteriosa que acaba seduzindo a tímida Mona (Natalie Press, de As Sufragistas, 2015). Esta, a verdadeira protagonista da trama, se vê perdida entre um desejo que desconhecia e a repressão do ambiente onde vive. Com ares que entrega e obsessão que lembra o excelente Almas Gêmeas (1994), feito dez anos antes, esta curiosa e delicada produção inglesa foi aos poucos conquistando público e crítica, muito além do seu principal nicho de interesse, angariando prêmios e indicações ao European Film Awards, Bafta, British Independent Film Awards e London Critics Circle Film Awards, entre tantos outros. Nada mais do que merecido! – por Robledo Milani

 

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Como Esquecer (2010)
Como superar o fim de um relacionamento após 10 anos de intimidades, trocas e cumplicidade? É a partir dessa abordagem que o longa-metragem de Malu de Martino parte; na contramão das histórias de um amor romântico que só existe no cinema, seu filme se dedica a estudar as delicadas transformações da vida de Júlia (Ana Paula Arósio) após ser abandonada por sua esposa. Essencialmente feminino, o drama tem na composição delicada de Ana Paula Arósio um de seus maiores méritos, assim como no roteiro melancólico adaptado do romance de Myriam Campello. A professora de literatura inglesa descobre as dores do desamor enquanto retoma experiências de uma vida que já não parece lhe pertencer, como quando se muda para a casa de um amigo gay e viúvo, Hugo (Murilo Rosa), ou ao perceber as investidas românticas da artística plástica Helena (Arieta Corrêa). É interessante notar como o drama ignora rapidamente o fato de ter protagonistas homossexuais: trata-se de uma história de separação e superação, acima de tudo. Existem algumas inconsistências, principalmente em perspectivas rítmicas e narrativas, que tornam a trama irregular. Ainda assim, trata-se de um bonito retrato sobre relações distantes da idealização, palpáveis e passíveis de empatia, mais próximas do real. – por Conrado Heoli

 

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Minhas Mães e Meu Pai (The Kids Are All Right, 2010)
Apesar de conter em sua abordagem um bom número de pieguices e exageros, este filme apresenta um relacionamento forte e condizente com a realidade de inúmeros casais LGBT. O foco do longa de Lisa Cholodenko é a família de Jules (Julianne Moore) e Nic (Annette Bening), mas é na segunda moça que moram as maiores nuances. A segurança da mulher faz dela alguém forte e capaz de superar mesmo as crises de confiança mais severas. Excetuando uma boba discussão que se preocupa demasiado em culpar o personagem de Mark Ruffalo por todos os males do casal, ainda resulta em um filme caro e que fala de modo leve das situações graves da vida, incluindo uma anedota curiosíssima a respeito da veracidade presente nos filmes pornôs héteros e homossexuais femininos. O artificio ajuda também a desconstruir qualquer moralismo bobo por parte do espectador, resultando em uma fraqueza de argumento tremenda, uma vez que o fato das mulheres assistirem a um filme erótico entre dois homens não é motivado pelo falo em si, e sim pela naturalidade de tal produto. Ainda assim, a realização mostra uma família com problemas, fugindo da típica representação pasteurizada e parecida com comercial de margarina algumas vezes empregada. – por Filipe Pereira

 

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Azul é a Cor Mais Quente (La vie d’Adèle, 2013)
O longa que causou furor no Festival de Cannes 2013, arrebatando público, crítica e júri que, em decisão inédita, premiou o diretor franco-tunisiano Abdellatif Kechiche com a Palma de Ouro em conjunto com as atrizes protagonistas – as francesas Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux. A trama, baseada na HQ de Julie Maroh, acompanha Adèle (Exarchopoulos), jovem de 15 anos que entra em conflito com seus desejos ao cruzar o caminho da garota mais velha e de cabelos azuis Emma (Seydoux). Filmando com seu estilo naturalista, de longas improvisações e câmera sempre próxima aos rostos e corpos, Kechiche transporta o espectador para uma experiência intensa e de completa intimidade com suas personagens. No decorrer de três horas, vivenciamos as descobertas, os anseios e, especialmente, o amadurecimento de Adèle. A entrega visceral de Seydoux e da revelação Exarchopoulos, de desenvoltura e beleza acachapantes, é visível não só nas longas e acaloradas cenas de sexo, mas também em todos os duros embates emocionais presentes na história. Mesmo com seus métodos extremos e polêmicos, Kechiche entrega um trabalho que se destaca pelo realismo, transcendendo a temática do romance lésbico para se mostrar uma obra universal sobre as alegrias e as dores de uma relação. – por Leonardo Ribeiro


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Flores Raras (2013)
O longa-metragem, quase todo falado em inglês, é um trabalho sensível e interessante sobre o amor entre duas pessoas. Bruno Barreto não se prende ao gênero daquelas amantes, criando apenas um romance, puro e simples. Na trama, baseada em fatos, acompanhamos os encontros e desencontros do relacionamento entre a arquiteta brasileira Lota de Macedo Soares (Glória Pires) e a poetiza norte-americana radicada no Brasil Elisabeth Bishop (Miranda Otto). Chamam a atenção as performances poderosas das protagonistas. Tanto Pires quanto Otto conseguem pontuar muito bem os momentos distintos de suas personagens. A primeira encarna um dos melhores papéis de sua carreira, dominando a tela e chamando sempre os holofotes para si. A língua não foi empecilho para a atriz, que fala um inglês muito fluente. Já Otto, até pela personagem frágil, demora um pouco mais para desabrochar. No entanto, quando deslancha, principalmente a partir do segundo ato, consegue roubar algumas das melhores cenas para si. Barreto realiza um filme visualmente bonito (as cenas em Samambaia enchem os olhos) e sabiamente centrado na força de suas protagonistas. Exibido na abertura da 41ª edição do Festival de Cinema de Gramado e vencedor de quatro louros no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. – por Rodrigo de Oliveira

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Carol (Carol, 2015)
Baseado em um livro de Patricia Highsmith, determinante na literatura dos anos 50, este filme é um dos destaques da recente safra cinematográfica. No âmbito literário, foi um dos primeiros romances a tratar de uma história de amor positiva entre duas mulheres. Nos cinemas se desenvolveu da mesma forma. E talvez por isso surja com certo estranhamento para o público. Afinal, durante décadas personagens lésbicas (assim como os gays e transexuais) eram retratadas de forma trágica e conversadora. Aqui, nesta produção dirigida por Todd Haynes, como de costume subvertendo os valores da sociedade e do espectador, somos introduzidos numa história essencialmente de amor entre Therese (Rooney Mara) e a personagem-título, interpretada magistralmente por Cate Blanchett. Elas se conhecem num jogo vouyerístico em uma loja de departamentos. A relação se desenvolve até mesmo com momentos de suspense, mas é puramente romântica e trata dos desafios impostos por uma sociedade que impede um grande amor. Descrevendo desta forma até parece que o longa resvala no piegas, mas, pelo contrário, mesmo dentro do gênero melodramático, Todd Haynes constrói uma história sensível, equilibrada e mesmo assim intensa para qualquer época. – por Renato Cabral

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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