Estamos no começo do mês de fevereiro. O ano de 2018 podia estar recém no início, mas para uma turma grande esse era também o fim. Afinal, estávamos no último dia das filmagens de Raia 4, estreia de Emiliano Cunha como diretor de longa-metragem. A primeira exibição – ainda em uma versão ‘work in progress’ – está marcada para acontecer durante o 51o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, dentro da mostra Futuro Brasil, que tem como objetivo permitir a longas brasileiros ainda não finalizados um primeiro contato com profissionais de curadoria e seleção de grandes festivais internacionais (espera-se pela presença de representantes de Cannes, Berlinale, Roterdã e Cartagena, entre outros). Mas, sete meses atrás, ninguém pensava nisso ainda. O verão gaúcho estava em alta – era um dia particularmente quente, com temperaturas acima dos 30 graus – e o clima de despedida estava por todos os lados.
Logo que chegamos, fomos recebidos por Davi de Oliveira Pinheiro, um dos produtores, que nos conduziu para a parte interna de um ônibus de dois andares. Na parte de cima seria filmada a cena derradeira, e se daria entre a protagonista, a estreante Brídia Moni, e José Henrique Ligabue. Ela interpreta Amanda, uma jovem nadadora, e ele é o instrutor da equipe de natação dela. O clima, no entanto, não era muito amigável – ele teria que dar uma bronca na turma de atletas adolescentes. Mas o que teriam feito de tão errado? Sobre o que, aliás, trata Raia 4? Quem nos explica é o diretor.
ESPORTE, FAMÍLIA OU SUSPENSE?
“O filme é sobre a Amanda, uma menina de 12 anos – faz 13 durante a história – e acompanha a maturação dessa garota, a descoberta da mulher, o abandono da infância. É uma nadadora de alto rendimento. Nesse processo, vai criando algumas relações que vão se estreitando. Principalmente com Priscila, uma colega de treino, com quem desenvolve uma certa disputa. É como se fosse a antagonista, mas não uma inimiga. Existe uma afeição, tem um carinho, uma admiração, ainda que tenha essa questão da competição”, revela as primeiras pistas. O pouco que explica dá a entender que se trata de um longa esportivo, então, uma história juvenil bem ao gosto de toda a família. Certo?
Muito pelo contrário. “Não é um filme familiar. Tem como pano de fundo a temática esportiva, esse ambiente que conheço bastante, mas não é leve. Trata dessas questões internas humanas de uma maneira bastante latente, até poderia dizer dura. Estou descobrindo o filme de novo. Essa era a ideia inicial, antes de conhecer bem os personagens e os atores. Durante as filmagens tudo foi se tornando mais doce. Mas a ideia é tratar de forma realista, apesar de algumas liberdades poéticas, atmosféricas, sensoriais. Mas tudo muito direto, sem floreios. Brincamos com certo gênero de suspense. A rotina do apartamento dela, dos treinos, as crianças gostam de assistir a filmes de terror. Tem esse imaginário rondando a história dessa menina”, complementa Cunha, cada vez mais enigmático.
FÁBIO VS. AMANDA
Bom, voltando à cena que vamos acompanhar, dá pra perceber a tensão no ar. Ligabue, um tipo risonho, sempre de abraços e carinhos, se esforça para permanecer sério. As crianças – todas estreantes – fazem algazarras típicas de adolescentes, e são cobradas pelos auxiliares da direção e equipe. Brídia é mantida à parte, e chega no set somente poucos minutos antes da gravação. Na parte interna do ônibus, o ar condicionado está ligado no máximo, mas para a gravação é preciso desligá-lo, por causa do barulho. E basta alguns instantes para que todos comecem a suar. É preciso acabar logo, portanto. Mas quem são esses dois prestes a se enfrentar?
“O Fábio é o treinador da equipe de natação. Ele está, também, inserido na vida destes atletas. O filme investiga a personalidade destes jovens. Como, por exemplo, o fato de não conseguirem se comunicar com os pais. Esses hiatos que acontecem pela tecnologia e pelas coisas que estão surgindo e interferem na comunicação dos adolescentes. Ele tem uma proximidade muito grande com eles, por treiná-los. Eles viajam juntos, criam laços de afeto”, adianta Ligabue. Já Brídia, que vê tudo com muita excitação, complementa com mais detalhes sobre sua personagem: “Este filme é todo sobre a Amanda. Não sei como definir, se é comédia, ou drama. É sobre ela. É a vida dela. E, por isso, acabam acontecendo várias coisas que refletem esse momento que ela está vivendo”.
Mas e o embate entre eles? Qual a importância dessa cena, afinal? “A garotada acabou de fazer uma grande merd* no hotel onde a turma estava hospedada para participar de uma competição. Brincaram com um extintor de incêndio – quem nunca fez uma dessas, ou ao menos teve vontade, né? Só que estavam ali para uma prova importante. E acontece que a protagonista, a Amanda, assume a culpa que não é dela”, complementa o ator, dando pistas sobre a personalidade da protagonista. “Estão pesando um monte de coisas sobre ela, e isso vai deixar a personalidade dela mais forte. O desfecho é bem impactante, mas não vou falar mais para não dar spoiler”, segue ele, em meio a uma risada enigmática que nos deixa ainda mais curiosos.
Então é por isso a bronca? Ele não sabe que ela é inocente? “Ele tem que ser mais duro com eles. Essa é uma característica que o Emiliano sempre tentou trazer para mim. A gente nem sempre acerta a mão, e estamos aqui também para aprender. Este foi um dos momentos em que consegui pegar a rédea dessa dureza que o diretor queria. O treinador que eu seria, por exemplo, agiria diferente. Mas o Emiliano me alertava: “se convivesse com adolescentes todos os dias ia acabar mudando”. Por isso essa cena, dele puxando a orelha deles e ela assumindo uma culpa que não é dela”, tenta se justificar Ligabue, visivelmente desconfortável com essa postura mais rígida com a garotada.
COMO NASCEU ‘RAIA 4’?
Quem explica, novamente, é o diretor: “o filme surgiu de uma cena que tinha muito forte na cabeça e não sabia para onde iria. Não vou revelar sobre o que ela trata, pois é um baita spoiler – mas sempre foi uma cena de força. Gosto de trabalhar com a força no filme. Este não é um longa narrativo, mas tem uma energia. E essa imagem permeava toda a ação. Me pareceu que o ambiente da natação, com a história de uma menina se descobrindo mulher, conversava com essa sequência. Durante os laboratórios, ela ia tomando vários lugares. Era a cena de abertura, depois tiramos, acabou voltando, caiu de novo e, por fim, permaneceu”.
“O Emiliano, que não traz só a questão do esporte, mas também uma linguagem forte para o cinema. Gosto disso. Acho corajoso. Já havia trabalhado com ele antes, no curta Sob Águas Claras e Inocentes (2016). Admiro o trabalho dele, por afirmar e bater no peito esse modo dele ver a arte. Esse filme vai ficar lindo. A fotografia é maravilhosa. Muita água, vários planos das piscinas, uma coisa incrível. Estou louco para ver pronto”, concorda Ligabue. E a Brídia complementa: “O Emiliano dava dicas de tudo que a gente precisava fazer. Ele nos acalmava antes de fazer cada cena. E como também é um nadador, sabia exatamente o que a gente tinha que fazer. Todos os estilos, os tempos. Conhece bem o mundo da natação”.
UNIVERSO DA NATAÇÃO
Como os atores adiantaram, o mundo do esporte – e da natação em especial – diz respeito a uma paixão muito pessoal do diretor. E ele concorda. “Fui atleta dos 8 aos 20 anos. É um ambiente que conheço bem, e fiz questão de retratar isso no roteiro, de forma bem descritiva. As várias histórias e paisagens, tanto internas quanto externas, fizeram parte da minha vida. A Amanda não é um alter ego, não tem nada de biográfico. Mas é claro, muitas situações de vida, as próprias relações da equipe, do grupo, estão bastante presentes”, esclarece Cunha.
“O Emiliano foi competidor por muito tempo, e trouxe muita coisa para o filme. Até nadei com ele, mas não em competições. Sou da turma do surf. A todo momento ele está botando a experiência dele em cena. Isso é muito legal, nunca havia passado por algo parecido antes. Ele demonstra uma atenção muito grande, até mesmo por coisas peculiares do personagem. Está sempre atento” declara com admiração o ator. E esse cuidado esteve presente com todo o elenco.
“Seria muito difícil encontrar uma atriz mirim que soubesse e tivesse o corpo de uma nadadora. Os corpos, no filme, estão muito presentes. A água, a maturação, o olhar de um em relação ao outro. Isso era fundamental. Como tive algumas experiências antes com não-atores, queria que o corpo contasse uma narrativa. O próprio gestual, a forma de olhar para o treinador, de parar na água e olhar entre si, tinha que ser de nadadores. A gente fez uma pesquisa de elenco em clubes de Porto Alegre e região. Testamos mais de 100 crianças, em dois meses e meio. Juntamos um grupo de 15 crianças, e não definimos os papéis até então. A Liane Venturella fez um trabalho de preparação, desenvolvimento de espontaneidade, alguma coisa de texto, e fomos identificando nessas crianças quem seria cada um dos personagens. Fomos definir as principais, protagonista e antagonista, apenas dois meses antes de iniciarmos as filmagens”, esclarece Emiliano.
Foi por isso que Brídia acabou conseguindo o papel de protagonista. “Estava nadando no clube e chamaram vários atletas que tinham mais ou menos a nossa idade. Foi todo mundo, só os mais velhos ficaram de fora. Fizemos a entrevista de acordo com o que a produção queria”. Foram necessárias algumas conversas com a produção, além de exercícios específicos, até que viesse a grande notícia. “Na real, não caiu a ficha de imediato que eu seria a protagonista. Depois, quando entendi que o filme iria girar em torno da Amanda, foi quando deu uma tremedeira. Deu um medo, do tipo “ai meu Deus, e agora, o que faço?”. Mas no final foi fácil. Até porque tinha muita gente no elenco que conhecia, já eram meus amigos. Foi bem legal, estar cercada de rostos conhecidos. Foi mais tranquilo”, explica a jovem atriz.
DANDO VIDA AO PERSONAGEM
“A Bridia, que faz a Amanda, é uma criança que não tem nada a ver com a personagem, e isso foi maravilhoso. Conseguimos descobrir a Amanda nela, que é uma figura bem mais pensativa, de olhares, suspeita muito das coisas. E a Bridia é um abraço em pessoa, é só sorrisos – e a Amanda sorri muito pouco”. Assim Emiliano dá alguns sinais sobre as diferenças entre a atriz e a personagem. E a menina continua: “não tenho nada a ver com a Amanda. Ela é muito depressiva. Não digo triste, mas para baixo. Está sempre no mundo dela, quieta. Sou mais extrovertida, amo falar. A Amanda é fechada, mais reservada. Eu não”, esclarece a pequena, já com ares de profissional.
Bem diferente de Ligabue, que parece ter sofrido mais para separar o Fábio do José Henrique: “Sou muito brincalhão. Sou um dos que avacalham o set também (risos). Trago essa energia. Adoro crianças, fui pai há pouco tempo, estou realizado. E não só crianças, mas também adolescentes. Essa galera mais jovem traz a energia deles para as filmagens. Sou extrovertido com eles”. Bom, pelo jeito era exatamente isso que estavam esperando dele. “O Maninho – nosso apelido carinhoso para o Ligabue – é um cara muito doce. Fizemos uma pesquisa, observamos alguns treinos, e fomos colhendo o que seria o Fabio no Maninho. Ele é um cara divertido, ficava o tempo todo entre as crianças, era difícil controlá-lo em cena, porque fazia mais barulho que elas! Mas foi maravilhoso”, entrega Emiliano.
ELENCO
Bom, mas Raia 4 não é um filme de apenas dois personagens. Há um grande elenco em cena, e não só de jovens iniciantes, mas também de profissionais tarimbados. “Como iria trabalhar com não atores, a minha ideia, desde o princípio, era ter cenas mais ou menos improvisadas, por isso queria que ao redor dessas crianças estivessem profissionais, para que pudessem jogar com elas. A gente ia criar as forças desses personagens, das crianças, que tem muito do que já são e carregam nos olhares, a espontaneidade, a partir dessa troca com os atores profissionais. Foi a partir disso que fui buscando cada um deles. Eles tinham essa função cênica de me ajudar a conduzir as crianças. A Fernanda Chicolet eu precisava dessa coisa mais enigmática que ela carrega na Marta, que é a mãe. Para o Rafael Sieg queria uma figura doce que brincasse com o Fábio. E a Arlete Cunha faz o papel da Rose, a babá que meio que criou a Amanda, com quem ela tem um laço afetivo bastante forte. Talvez seja a personagem mais leve do filme. Os outros tem essa questão de “não sabemos bem o que estão pensando”, aponta o diretor.
ÚLTIMO DIA DAS FILMAGENS
Era hora de dizer adeus. A cena foi repetida uma, duas, três vezes, até que acabou saindo do jeito que todos esperavam. Agora, é momento de desfazer cenários, retirar figurinos e maquiagens e começar o desapego. Mas não é tão fácil. “Ontem já bateu uma melancolia. Essas crianças que juntamos foram maravilhosas. Criamos um laço com elas muito forte. To num momento em que olho para elas e começo a chorar. Realmente foram dias muito intensos. Mas, ao mesmo tempo, fico feliz por ter oportunizado isso. Vai ser difícil acordar amanhã e não encontrar essa turma”, se emociona Emiliano. “Estou triste que vai acabar. Mas sei que todo mundo vai se ver de novo. Ao menos ficamos com a sensação de dever cumprido, e foi tudo muito legal”, tenta se conformar a pequena Brídia.
“É uma mistura de alegria, pelo trabalho feito, e de tristeza, pois temos que nos despedir. Tem muita emoção envolvida. Esse é o clima hoje, deu até choradeira. Adolescente é assim, eu adoro. Elas fizeram uma camiseta para o diretor, assinaram, fizeram desenhos para o pessoal da maquiagem, com as frases que cada um falava (“eu faço maquiagem, não faço milagre”), coisas desse tipo. Ou seja, é um clima de despedida, mas também fica aquele sentimento de que foi lindo, e a certeza de que fizemos algo que irá marcar a vida deles e também a nossa. Essa troca, com eles que estão chegando, com a gente, que podemos até estar um pouco acostumados. É uma nova energia que surge. Uma nova vida. Sobreviver e reviver uma coisa que a gente ama fazer”, se aprofunda Ligabue, também comovido por esse dia tão especial.
O FIM… E O COMEÇO
O último dia das filmagens está longe de ser o fim do processo de realização de um longa. Há ainda muito pela frente. E o Emiliano sabe bem disso. “Sou um cara ansioso. Acumulo muitas coisas, centralizo demais. Acho que o passo mais importante foi ter feito antes a série Horizonte B (2016), e o próprio Cinco Maneiras de Fechar os Olhos (2013), que apesar de ter sido em grupo, foram 18 diárias bastante intensas. Estes projetos me deram tranquilidade para entender uma coisa muito maior do que um curta. Mas tem essa questão de ser uma história pessoal, que escrevi. E é o primeiro longa, que sempre é um desafio”, reflete sobre o processo.
E antes que alguém comente sobre um homem estar dirigindo uma história de mulheres, ele se adianta: “foram, ao todo, nove tratamentos do roteiro. Sempre busquei o olhar feminino, o que para mim era fundamental, pois estou mergulhando nesse universo. Tinha essa preocupação desde o começo. A força feminina tinha que estar presente no filme. E acho que conseguimos. Tanto que a gente se olhava no final de cada dia no set e o entendimento era: “estamos fazendo um filme foda”, conclui. Pelo que foi possível sentir nesse dia ao lado deles, e pelas fotos que foram feitas durante esse mês de filmagens, as expectativas não poderiam ser melhores. Agora, é só esperar para conferir. Raia 4, após a passagem pelo Festival de Brasília, deve entrar em um circuito de festivais, no Brasil e no exterior. A previsão para chegar às salas comerciais, no entanto, é só para 2019. Enquanto isso, ficamos na torcida!
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