O ano de 2017 estava chegando ao fim, assim como as filmagens de A Cabeça de Gumercindo Saraiva, quinto longa-metragem do escritor e diretor Tabajara Ruas – e o quarto de ficção, que assim como os outros tem sua trama ambientada em um importante momento da história do Rio Grande do Sul. O foco agora está na Revolução Federalista de 1893, na disputa entre chimangos (os governistas) e maragatos (os rebeldes), que questionava a política federal que era exercida na província através do governador Júlio de Castilhos. Neste período de grandes barbáries, era comum a prática da degola dos inimigos, justamente o que acaba acontecendo com Gumercindo Saraiva, um dos líderes dos maragatos. Para contar esse episódio, Tabajara Ruas juntou um grande elenco, liderados por atores de expressão nacional, como (o saudoso) Leonardo Machado e Murilo Rosa.
O Papo de Cinema foi convidado para visitar o set em um dos últimos dias de filmagens em Porto Alegre. A passagem pela capital gaúcha se deu já no meio das atividades, após terem passado por diversas cidades do interior e antes de irem para as tomadas derradeiras. “Estamos na quarta semana. Filmamos com muita sorte e profissionalismo, todas as diárias foram completas, mesmo com chuva e tempo ruim. Tivemos que driblar a previsão do tempo várias vezes, inclusive trocando dias de folga. Filmamos em Cambará do Sul, São Francisco de Paula, Canela, Porto Alegre e ainda vamos para São Miguel das Missões. Vão ser cinco semanas, no total”, esclarece o cineasta.
O PALHAÇO
O encontro é no Theatro São Pedro, um dos prédios mais emblemáticos do estado. E a cena que somos convidados a presenciar também tem muita importância para o filme. “Nem sei se posso revelar muito, pois é o final do filme (risos). Faço o Canio, e é emocionante, pois esta é a ópera Il Pagliacci, que é muito conhecida, mas também difícil. É complicada porque são várias vozes e coro. Não tive como trabalhar toda ela, até porque só um trecho será aproveitado, mas pegamos o finalzinho, que tem aquela frase: “la commedia è finita”! É maravilhosa, e encerra o filme de uma forma brilhante. Só o Taba para ter uma ideia assim, com aquela cabeça genial dele”, explica Zé Adão Barbosa, que tem seu grande momento justamente nessa cena.
Quem complementa com mais detalhes é o diretor: “essa cena é o final da ópera Il Pagliacci (O Palhaço), que é o que estaria sendo apresentado, justamente no Theatro São Pedro, quando foram entregar a cabeça do Gumercindo Saraiva para o governador Julio de Castilhos, que estaria na plateia. Isso é ficção, pois os relatos afirmam que a cabeça foi entregue no Palácio da época, o Forte Apache, que fica aqui na esquina. Mas a história dessa cabeça já teve tantas versões que estamos apenas apresentando mais uma”, justifica.
Os assentos do teatro estão praticamente vazios, e apenas alguns lugares são ocupados por convidados da imprensa e membros da equipe técnica, todos curiosos para acompanhar a performance do Zé Adão. Os cantos operísticos tomam conta do ambiente, e a emoção está no ar. Inclusive em quem está nas coxias, se preparando para as próximas cenas. “Eu tinha feito uma minissérie no estado antes, A Casa das Sete Mulheres (2003), e desde aquela época conheço o Tabajara Ruas. Esse não foi o primeiro convite que ele me fez, teve um outro trabalho antes que quase fizemos juntos, e dessa vez casou. Fiquei muito feliz. O Tabajara é um cara que admiro, um escritor pelo qual tenho muito respeito. Além de ser uma pessoa bacana. A gente tem uma convivência alegre, feliz, entusiasmada, tanto no set quanto fora. É bom de conversa, de prosear, como se diz, e muito inteligente. Quando li o roteiro aceitei na hora. Sempre tive esse sonho de fazer um desses filmes de bangue-bangue”, comenta Murilo Rosa, que vive um dos protagonistas.
DIRETOR
Esse parece ser o momento ideal para falar de Tabajara Ruas. Quem é esse autor de tantos livros que foi literalmente “mordido” pelo bicho do cinema e se tornou um dos realizadores mais ativos do Rio Grande do Sul? “Esse é o meu quinto longa-metragem. Mas a literatura está sempre presente. Só nos últimos dois anos lancei dois livros. Agora está mais equilibrado, essa paixão pelo cinema e pela literatura. Escrever é mais fácil de produzir, na medida que é só você e o computador, enquanto que no cinema precisa dessa quantidade enorme de gente e de equipamentos”, argumento Tabajara.
Chamado carinhosamente apenas por Taba, ele é um dos motivos para reunir tantos talentos. “O Taba, puxa, o que posso dizer? Pra mim está sendo uma felicidade incrível. É um diretor que admiro muito, super culto, com uma história de vida e uma bagagem histórica incrível, super politizado. Estar com ele nos almoços, nos papos, é sempre agradável. Poder dar vida a um personagem que ele criou, com tanto carinho, está sendo uma realização pessoal e profissional muito grande”, se emociona Marcos Pitombo. E ele não está sozinho em suas declarações. Allan Souza Lima, pernambucano que apareceu em filmes como Aquarius (2016) e O Matador (2017), logo aparece para concordar: “conheci o Taba um pouco antes do Festival de Gramado, em 2017. Foi muito legal. Ficamos horas conversando sobre cinema. Ele deu uma pesquisada no meu trabalho, ficou interessado. O André Arteche que faria o meu personagem, mas acabou saindo por causa de um outro projeto, e o Taba aproveitou para me chamar. E foi assim que acabei entrando nessa brincadeira”.
A declaração mais apaixonada, no entanto, vem da prata da casa: “tenho dois diretores pelos quais sou apaixonado, são meus amigos e gosto muito de trabalhar com eles, que é o Taba e o Jorge Furtado. O Taba é um boa praça, um cara maravilhoso, de uma cabeça bonita para caramba. Além de culto, é também sentimental, que é uma coisa difícil. Quando fala, a gente se emociona junto. Uma coisa que acho muito louca em cinema é que normalmente os diretores não são atentos ao ator. O cinema é a arte do diretor, afinal. Da direção e do montador. E o Tabajara, assim como o Jorge, é um cineasta que ama os atores. E isso facilita muito, porque assim você se sente seguro”, testemunha Zé Adão Barbosa, que está no seu terceiro trabalho ao lado do cineasta, após Netto e o Domador de Cavalos (2008) e Os Senhores da Guerra (2012).
MARAGATOS
No auge da revolução, o líder Gumercindo Saraiva sofre uma emboscada e acaba assassinado. Com requintes de crueldade, é degolado e a cabeça é enviada para a capital, para ser entregue ao governador do estado. Mas será que foi exatamente assim que aconteceu? “Nosso filme é baseado em um fato histórico que se tornou uma lenda gaúcha, um mito do sul. O Gumercindo era um líder revolucionário maragato que foi morto e degolado, e a cabeça dele foi enviada ao Julio de Castilhos. Isso de fato aconteceu. Acontece que o governador se recusou a receber a cabeça. É aí que começam as versões, que estão nos livros, nos jornais, nos depoimentos das pessoas, cada um contando de um jeito. Mas tem esse fundo verdadeiro. E estamos apresentando a nossa versão”, aponta Tabajara Ruas.
E se os maragatos estão em busca de vingança, quem são eles no filme? “Sou um dos maragatos, que é a turma do Leonardo Machado. Faço o irmão dele, e somos filhos do Gumercindo. A história começa com o assassinato do patriarca, a violação do túmulo, e o Murilo indo levar a cabeça degolada do general para o governador do Rio Grande do Sul. Essa família está indo atrás para recuperar a honra”, adianta Pitombo. E ele continua: “está sendo uma emoção, ainda mais como carioca, ter sido escolhido para ser um maragato, defendendo essa família dos Saraiva. Desde o começo foi um desafio. Assim como todos os maragatos, essa coisa de andar como um gaudério, a cavalo, esse convívio todo, de forma tão intensa. O meu personagem, o Rosário, tem um papel muito importante, pois a família está em busca da cabeça do pai, e ele tem uma função bem interessante no meio dessa história. Não vou contar o spoiler, mas tem sido um barato”, acrescenta o ator de forma misteriosa.
Mas nem todo maragato é Saraiva. Afinal, até quem veio do exterior – mais precisamente da banda oriental – acaba se envolvendo no confronto. “Meu personagem se chama Teófilo Saravia – e não Saraiva, porque do grupo todo, ele é o único que saiu de Montevideu para entrar no Rio Grande do Sul. Dentro dessa saga dos maragatos, é um personagem excêntrico, que chama atenção. Até pelo jeito dele, de falar castelhano, tem um charme próprio. Até brinco com a figurinista que esse é o primeiro galã da minha história. Ele tem esse ar diferenciado, de ser o mais educado. Tem uma cena que poderia acabar em matança e ele é o cara com a cabeça fria, mais família. Mas tá ali junto, numa busca não só religiosa, mas também de honra, e está na busca da cabeça do seu tio, o Gumercindo, para colocar junto ao corpo”, continua Allan Souza Lima, mostrando que não importa o lugar de nascimento, nesse set todo mundo acaba falando gauchês.
CHIMANGOS
Bom, se os maragatos querem vingança, é por causa da afronta cometida pelos chimangos. E quem são esses, portanto? “Faço o Major Ramiro. É através do olhar desse personagem que a história é contada, de um cara que veio de fora – afinal, ele é de São Paulo, e está há cinco meses no meio dessa guerra. Ele, mesmo depois desse tempo, ainda não consegue entender e compreender todas essas questões. É um cara que se assusta e que fica indignado com essas degolas e com o caminho que a guerra tomou. Podemos dizer que esse é um filme não só do Rio Grande do Sul, mas de todos os lugares, pela universalidade dos seus temas”, explica Murilo Rosa.
“O Gumercindo foi almejado quando foi olhar o campo de batalha. Estamos falando de personagens que existiram mesmo!É um retrato histórico de algo do Rio Grande do Sul, mas fala de outras coisas também. De uma certa forma, tem uma pincelada de crítica política a tudo que está acontecendo agora no Brasil. É muito curioso estabelecer esses paralelos. Tenho certeza que essa família que está em busca da sua honra consegue se comunicar com o Brasil inteiro. E acho muito bonito isso, dessa produção aqui no Rio Grande do Sul, que de fato representa a história local, mas que também fala de temas universais”, opina Marcos Pitombo, o carioca mais gaúcho presente no set.
ELENCO
Paulistas, cariocas, pernambucanos, todos reunidos para contar uma história que aconteceu no Rio Grande do Sul há mais de um século. Como foi montar esse grupo? “Todos vieram para fazer um filme gaúcho, de acordo com os parâmetros gaúchos, de produção gaúcha – não é um filme global, se me entende. E vieram pelo roteiro, pela possibilidade de filmar essa história. O Murilo Rosa tava louco pra fazer um filme de ação, a cavalo. O Marcos Pitombo é um antigo amigo meu – conheço ele desde pequeno, pois é sobrinho do Severo, um velho companheiro de trabalho. E o Allan Souza Lima é um ator ascendente que andava por Porto Alegre e quando me apresentaram a ele me disseram: “olha, ele tá louco pra fazer um filme por aqui”. Convidei, disse que seria do nosso jeito, e ele topou na hora”, revela Tabajara, mostrando que nem todo convite foi feito com o ator em mente, mas que o resultado parece ter se saído melhor do que o esperado.
EQUIPE
“Essa equipe é fantástica. Nunca trabalhei com uma turma tão jovem, festiva e profissional, dedicada, disciplinada e competente. Tá sendo um barato fazer esse filme, fiquei quase dois meses no sul! Estar imerso no personagem, conviver com essas pessoas, tem sido uma experiência muito positiva na minha vida”, comenta Pitombo. Essa boa sintonia é ressaltada por todos. “No cinema a gente não se vê na hora que está fazendo, como no teatro, e isso deixa o ator muito inseguro. Não tem o retorno imediato. Estou dublando essa época aqui, e não vejo meus movimentos – só depois é que poderei assistir. Ou seja, tá na mão dos diretores. Por isso tem que ter muita confiança”, esclarece Zé Adão.
E assim como tem gente daqui e também quem está chegando somente agora, há aqueles que estavam afastados e aproveitaram essa oportunidade para retomar os sentimentos vividos tanto tempo atrás: “está sendo um reencontro com o sul, mas através do cinema. Antes foi uma minissérie, agora é um longa-metragem. O ator precisa estar em todos os veículos. Ao menos aqui no Brasil, nós precisamos fazer televisão, teatro, cinema, publicidade… estamos envolvidos com um pouquinho de tudo. Mas o cinema é uma paixão, muitas vezes, quase que platônica. Já faz algum tempo que venho me dedicando mais ao cinema. Seja fazendo alguns filmes ótimos, outros nem tanto, mas sempre caminhando e buscando construir uma carreira cinematográfica”, esclarece Murilo Rosa, o ator com o maior histórico como protagonista, declarando sua atração pela tela grande.
DIFICULDADES
E Murilo continua, dessa vez abordando uma questão muito importante, que é o avanço técnico das produções feitas no Brasil: “penso que, ao incentivar esse lado técnico, também se criam condições para melhorar a atuação. Se você tem uma grande montagem, um som perfeito, uma fotografia linda, uma direção que sabe o que quer, o ator é favorecido por tudo isso. Não tem como ser diferente”, opina. Mas há questões mais pontuais, principalmente para os “estrangeiros”, que tiveram que descobrir um outro jeito de atuar para não comprometer com o sotaque do sul do país. “Como carioca, tenho uma obrigação e um cuidado em relação à prosódia e ao sotaque. Dentro do filme existe esse comprometimento grande em reproduzir o gaúcho, sem forçar, pelo contrário. E essa dedicação que estou tendo em cima do texto e do personagem acho que é uma forma de agradecimento por essa oportunidade que estou tendo”, justifica Marcos Pitombo.
Outros, no entanto, já tinham tudo acertado, mas mesmo assim decidem criar em cima do que estava estabelecido. “No decorrer do processo, conversando com o Taba sobre essa preocupação com o gauchês, falei “por que não fazer um uruguacho?”, até por essa relação do meu personagem com o Uruguai. E para dar uma quebra, trazer algo diferente. Ele mandou eu estudar e preparar um sotaque, e apresentar depois. “Se eu aprovar, você faz, senão você volta para como tava antes”. Topei, e foi assim que nasceu o Teófilo. Passei duas semanas de estudo de personagem, e olhando agora, acho que tá legal”, revela, com satisfação, Allan Souza Lima.
EXPECTATIVAS
Em um ano em que o cinema nacional tem encontrado dificuldades cada vez maiores para se conectar com o público, a equipe de A Cabeça de Gumercindo Saraiva mantém a esperança de que esse quadro possa se reverter na estreia do filme, previsto para chegar aos cinemas nesse mês de outubro de 2018. “A minha expectativa é que o filme fique muito bom, e que a gente consiga colocá-lo no maior número possível de salas e que muita gente vá assisti-lo. Que talvez seja um filme que comece a trazer esse espectador que anda tão afastado do cinema brasileiro”, confessa Murilo Rosa. E ele continua: “É um faroeste, mas mais do que gaúcho, é brasileiro. Por ter esse personagem de fora que assume como se fosse o olhar do espectador, isso tira o filme do regional e o deixa mais universal”, adianta, exaltando a importância da sua participação em cena.
Quem complementa é o diretor Tabajara Ruas, revelando entusiasmo por mais essa história dos pampas gaúchos que está levando às telas: “Cada escritor, cada filme tem o olhar daquele que o conta. Então, estamos contando do nosso jeito a história da cabeça do Gumercindo Saraiva. A gente sempre espera que o filme aconteça. Mas o problema é que o cinema brasileiro, notoriamente, não tem mercado. Mas vamos batalhar para que chegue a todos os públicos”, conclui.
E assim nos despedimos da turma de A Cabeça de Gumercindo Saraiva. O filme, que já está finalizado, é uma das grandes apostas da produção nacional neste final de 2018. E pelo que vimos nesse encontro, as apostas tem tudo para serem cumpridas!
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