Woody Allen, antes um nome respeitado na indústria do cinema, tido como um dos grandes autores norte-americanos ainda vivos, atualmente é marcado pelo estigma de maldito. Para muitos, se trata de alguém que deveria ser privado de filmar. Não são poucos os que “cancelaram” o autor, se recusando a revisitar suas obras ou a conferir eventuais novas incursões do nova-iorquino neurótico pelas plagas audiovisuais. Isso tudo se deveu ao retorno à tona das denúncias feitas por sua filha, Dylan, que alega ter sido sexualmente abusada por ele aos sete anos de idade. Um crime totalmente abominável, por certo. A acusação foi investigada. O processo culminou com a absolvição de Allen por falta de provas. Há vários matizes familiares nessa história que, uma vez reavivada nos meios de comunicação, gerou uma crise sem precedentes. E, então, me perguntam frequentemente: “por que você não ‘cancelou’ Allen”?

Primeiro, porque “cancelar” me parece um movimento tacanho, no mínimo, uma forma conveniente de isolar num espaço obscuro os problemas e as condutas que deveriam ser amplamente discutidos e escrutinados, em toda a sua complexidade. Poderia ficar aqui falando sobre a possibilidade (necessidade?) de separar o homem do artista, o que me parece razoável, não uma abominação de quem está “passando pano para bandido”. Mas aí antevejo as réplicas furiosas de gente que, ávida por impor a sua verdade aos demais, me tacharia de “macho escroto” ou me poria outros rótulos que, acredito, não me cabem. Nesses tempos misturam-se facilmente os alhos e os bugalhos. Mas, sim, é bem possível isolar o artista do sujeito, ainda que eles estejam profundamente interligados. É um paradoxo fascinante, que não deve ser refutado. Mas os cultores do “cancelamento” defendem a interrupção de uma lógica laboral.

Para tantos, acusados como Allen deveriam ser privados de seus meios de expressão. Oras, essa leitura leva apenas em conta a lógica capitalista/comercial, pois prega que o maior castigo seria a inviabilização do trabalho, ou seja, mexer no bolso. O “cancelamento” é um movimento que me soa como a lógica cristã do cordeiro de Deus que, uma vez sacrificado, extirpa os pecados do mundo. Trancafiando homens como Woody Allen e outros acusados de abusos e demais crimes sexuais num limbo, aparentemente estaria se fazendo justiça. Há meios legais para julgar esses suspeitos, mas, claro, aí entra em questão a obviedade da estrutura judiciária falocêntrica, não raro guiada por uma lógica canhestra de contestação das demandas femininas. Estão vendo como a questão ganha cada vez mais matizes e desdobramentos? Não precisamos fechar postura peremptória em torno desses casos, até porque eles são diversos.

Mas, os leitores podem estar pensando: “vai direto ao ponto, por que você não cancelou Woody Allen?”. Com que autoridade me regozijaria da função de juiz, à qual não me sinto minimamente preparado? Se dentro do seio familiar de Allen há divergências, como eu, lotado na América do Sul, distante e alimentado por toda sorte de informações, não raro díspares, posso condenar alguém sumariamente? E, depois, tem outra: Allen foi arremessado no mesmo caldeirão em que borbulham Harvey Weinstein e Kevin Spacey, ambos reincidentes e com fortes indícios de culpabilidade. É urgente a mudança de postura. Mulheres são abusadas diariamente e isso definitivamente precisa acabar. Criminosos têm de ser punidos exemplarmente, até para que casos semelhantes não venham a acontecer. Infelizmente poucos(as), entre os que de mim discordam, chegarão até este ponto, pois reagirão ao enunciado.

Sei bem que por ser um articulista homem a coisa complica um pouco. E não estou aqui para lamentar esse questionamento do meu lugar de fala. Bem pelo contrário. É necessário que entendamos a partir de que âmbitos falamos e quais estruturas nos determinam como agentes e reagentes sociais. Não desejo, tampouco, pregar que espectadores deixem de ver ou que continuem a assistir aos filmes de Woody Allen. Não me compete advogar pela absolvição pública do cineasta que admiro profundamente. Apenas digo que é um tanto autoritário considerar torpe a posição de alguém que não se sente impelido a “cancelar” o artista. Tenho ciência de que pesa contra isso o fato de que os pró-manutenção do status quo, ou seja, do silenciamento das vítimas, fazem coro pela defesa irrestrita dos possíveis agressores. Minha colocação não se trata disso. Novamente, não misturemos os alhos com os bugalhos.

Já ouvi de pessoas supostamente progressistas que os filmes de Woody Allen e Bernardo Bertolucci – colocado nesse balaio pelo episódio confesso de violência contra Maria Schneider –, por exemplo, deveriam ser banidos, completamente proibidos de circular. Oras, a que distância esse pensamento pretensamente responsável está da censura característica do fascismo, dos regimes autoritários? Não me parece criminoso continuar a apreciar as obras de pessoas com máculas em suas vidas pessoais. Em tempos de opiniões polarizadas, é normal que muita gente se sinta levada ou a defender incondicionalmente ou a acusar sem restrições diante de tais polêmicas e contendas. Se for provado o fato de Woody Allen ser um criminoso hediondo, que a justiça lhe seja severa, afinal de contas os danos de uma experiência de abuso sexual tendem a ser devastadores. Mas não imponham que se deixe de assistir aos filmes dele. É possível abominar a pessoa e respeitar a sua obra. Parece bastante contraditório, mas não é.

Poucos questionam a genialidade da cineasta alemã Leni Riefenstahl. Diferentemente dos casos citados, o dela apresenta uma obra efetivamente comprometida com a apologia ao nazismo. Mesmo que a mensagem seja odiosa, formalmente seus filmes são brilhantes, o que lhe garantiu um lugar merecido entre os maiores realizadores da História. Até onde me consta, nem isso pressiona os filmes de Woody Allen. Eles não pregam uma masculinidade tóxica, pelo contrário, pois apresentam, geralmente, homens fragilizados e cotidianamente falhos. Por outro lado, há várias personagens femininas fortes e inesquecíveis na filmografia dele. Uma rápida pesquisa no Google é suficiente para constatar isso. Portanto, não “cancelei” Woody Allen, inclusive, por que seus filmes não me parecem asseverar dinâmicas reprováveis. E tem outra: não me sinto coagido a “cancela-lo” a fim de provar que pertenço à estirpe dos bem-intencionados. Vou continuar conferindo seus filmes, respeitando devidamente quem não se sinta bem diante dessa celeuma, mas evitando defender um padrão de comportamento ao qual se adequar para estar do lado certo.

Os únicos absolutamente errados (me permito a carimbar isto) em tal conjuntura são os reacionários que pregam a volta das vítimas ao espaço do violento silenciamento. Criminosos têm de ser expostos e pagar exemplarmente. Isso não significa, porém, que o cinema feito eventualmente por um deles – lembrando que os filmes são fruto de uma arte coletiva, colaborativa e, portanto, dizem respeito a vários esforços, não apenas a um – deva ser banido e proibido de circular. Woody Allen vai continuar a fazer filmes (tomara) e eu a contempla-los. Isso não significa, porém, que eu passe um cheque em branco a tudo o que ele faz ou o defenda como fã cego. Alhos não são bugalhos, embora, obviamente, todos estejamos a mercê de confundir um com o outro, inclusive este que vos escreve.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
avatar
Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *