É muito comum que parte dos espectadores pense assim: ficção é performance; documentário é registro da realidade. No plano conceitual, pelo menos há uns 20 anos essas fronteiras estão ficando cada vez menos visíveis. Boas ficções frequentemente se valem de artifícios documentais e vice-versa. Um dos principais documentários da História, Nanook: O Esquimó (1922), manipula as circunstâncias, incorrendo em dramatizações de gestos e atividades que não puderam ser observados ao acontecerem espontaneamente. Por não ter registrado o esquimó pescando, o cineasta solicitou que ele reproduzisse essa pesca à câmera. Mas, então, de onde vêm os cabrestos aplicados ao documentário? Quando qualquer ficção contém trechos documentais, isso não faz com que sua natureza seja questionada. O mesmo não é verdadeiro em relação ao doc. Por conta de equívocos, existem cobranças quanto a uma utópica pureza. Para começo de conversa, o simples fato de alguém deparar-se com uma câmera a inviabiliza. Quando cientes de sermos filmados, desenvolvemos nossos corpos cênicos, criando uma imagem a ser imortalizada.

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Nanook: O Esquimó

A escolha dos enquadramentos, do que deve cair na montagem, do ângulo definido para abordar os personagens e/ou fenômenos geram prismas específicos. Então, mesmo que ao documentário não fosse permitido desatrelar-se da realidade, se a ela estivesse acorrentado, tais preferências evitariam a almejada limpidez. Ou seja, quanto mais cavamos ao redor do assunto, menos parece possível arroxar o documentário à estrita realidade. E essa distorção conceitual tem um pouco a ver com a apropriação que o jornalismo fez do documentário como ferramenta discursiva. Partindo do pressuposto de que o documentarista é um servo do real (a partir de qual percepção?), dos fatos comprovados (por quem?) e ponto final, certos espectadores cobram do documentário aquilo que não é seu atributo essencial. Um filme como Terra Deu, Terra Come (2010) mescla tradição, memória, representação e um sem número de outros instrumentos a fim de  preservar cinematograficamente os vissungos, as cantigas em dialeto entoadas durante os rituais fúnebres no interior de Minas Gerais. Pedro Alexino é tratado como um personagem, ficcionalizado a partir de suas vivências e da carga folclórica que carrega genuinamente tanto na vida quanto na tela.

Lembro-me do dia em que participei da cabine de imprensa do filme O Processo (2018), da cineasta Maria Augusta Ramos. Para quem não assistiu, o longa-metragem fala sobre os bastidores do processo de impeachment de então presidente Dilma Rousseff. Na minha frente estava um colega inclinado ideologicamente à direita, daqueles capazes de proferir ataques furiosos contra os membros do Partido dos Trabalhadores (PT) e evocar publicamente (sem medo de passar vergonha, inclusive por achar-se correto, além de dono da razão) os fantasmas do comunismo. Pois bem, esse sujeito se contorcia como uma barata tonta na sua cadeira, frequentemente bufando a indignação diante daquela “narrativa de petralha”. Até aí tudo bem, cada um tem o direito de escolher a ideologia que mais lhe convier e, uma vez crítico, entender os filmes a partir desses famigerados lugares específicos. Mas, nesse mesmo dia, ele foi para sua conta no Facebook e, acreditando estar apontando uma falha grave, disse que o filme não “ouvia as duas partes” de uma contenda que divide o Brasil. Vindo de um profissional da crítica, se trata de uma inocência e tanto.

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Cena de “O Processo”

O que o meu não tão nobre colega desconhece(ia?) é que o documentário enquanto suporte cinematográfico não deve se restringir à sua apropriação pelo jornalismo. Este, sim, tem certo compromisso com as ocorrências, apresenta lados divergentes, desenha o mais amplamente possível os painéis acerca de questões debatidas. Apesar do jornalista ter um contrato específico com os fatos, claro, em se tratando especificamente de hard news, do reporte dos acontecimentos efetivos, nem a ele é obrigatório apresentar sempre todas as faces da moeda. Munido do desejo de fazer uma matéria sobre a esfericidade da Terra, não sou obrigado a ouvir terraplanistas, certo? Porém, deslocado dessa adaptação instrumental às necessidades frequentes do jornalismo, o documentário não precisa “ouvir ambos os lados”, pode abraçar uma causa, a ele é facultado colocar-se a serviço ou a favor de. É arte. Ademais, filmes como Jogo de Cena (2007), de Eduardo Coutinho, põem em xeque a prevalência do genuíno sobre a sua representação. Afinal de contas, dá para predizer que uma resultará mais potente cinematograficamente do que a outra?

A complexidade do documentário é muito pulsante, dá metros e mais metros de pano para manga. Da apropriação da estética documental pela ficção, a fim desta transmitir uma urgência crua visando determinado efeito dramático, aos questionamentos filosóficos, tudo cabe diante desse produto audiovisual tão passível de ser representativo (em que pese a fabulação) quanto algo ficcional. Talvez os mockumentary, os falsos documentários, ajudem a iluminar essa questão de modo insuspeito. Na maioria deles a natureza ficcional fica evidente apenas por conta da caricatura, do exagero, ocasionalmente da presença de alguém conhecido interpretando outrem. Claro que não dá para tomar como verdadeira a existência do homem-camaleão em Zelig (1983) ou a convivência com vampiros em O Que Fazemos nas Sombras (2014). Mas, durante muito tempo, por exemplo, filmes como The Battle of San Pietro (1945) foram considerados registros acurados de certos episódios, isso até seus diretores (neste caso John Huston) virem a público para esclarecer que se valeram da mimese para representar capítulos que já tinham acontecido.

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Cena de “The Battle of San Pietro”

Digressões à parte (e este texto está cheio delas), é preciso superar essa suposta subordinação do documentário à realidade. Bom não esperar dele a retenção acurada das realidades. A deturpação tão frequente entre os chamados espectadores comuns (e em alguns seios da crítica, como mencionei) acontece também por conta do contato frequente com essa apropriação jornalística. A grande profusão de filmes esquemáticos, sobretudo os que recorrem burocraticamente a depoimentos e outros expedientes habituais em matérias, igualmente ajuda a dimensionar a disseminação da deformidade. A dificuldade para o documentário ocupar espaços no circuito comercial entra nesse balaio de gato. A proposta é que comecemos a assistir aos documentários sem a puerilidade de nos imaginarmos diante DA realidade, entendendo que ali está posta UMA realidade (verdadeira ou não). Tal noção já rende bastante.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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