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No dia 04 de novembro de 2016 debutava no catálogo da Netflix uma de suas séries originais mais previamente badaladas e aguardadas. The Crown (2016-), primeiramente, foi anunciada como a produção mais cara da gigante do streaming até aquele momento, com um investimento de cerca de US$ 100 milhões, boa parte deles aplicada na construção de uma réplica fidedigna do Palácio de Buckingham, residência oficial da família real britânica. Esse dado financeiro é importante, pois na guerra do streaming, a demonstração de poderio é um trunfo e tanto, já que vende imagem de solidez e força. Porém, o atrativo da novidade era justamente a possibilidade de ter acesso às histórias da monarquia mais famosa do mundo contemporâneo. Tidos como distintos dos plebeus, esses homens e mulheres a quem são atribuídos poderes quase divinos apenas por conta da linhagem sanguínea finalmente foram esmiuçados aos olhos atentos dos interessados, com falhas, dúvidas, deslizes e senões apresentados. Talvez o principal apelo do programa idealizado por Peter Morgan seja a possibilidade de destronar essas figuras de um Olimpo exclusivo.

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A primeira temporada foi um sucesso absoluto, concentrada nas dúvidas enfrentadas por uma jovem Elizabeth. Ela viria a se tornar rainha em meio às turbulências matrimoniais, assim ocupando a posição mais nobre do reino enquanto lidava com puladas de cerca do marido. Ao mesmo tempo, a irmã caçula, a princesa Margaret, se agiganta como figura trágica, sendo obrigada pelos protocolos reais a abdicar daquele que poderia ser o amor de sua vida. A fragilidade insuspeita, distanciada do público ao qual apenas são oferecidas as cascas públicas dos monarcas intocáveis, ganhou uma ressonância enorme por conta do talento do elenco encabeçado pela novata Claire Foy, cuja carreira foi imediatamente catapultada. Prêmios, reconhecimentos em várias instâncias, por diversas associações, sindicados e/ou entidades representativas do cenário audiovisual, forjaram uma estrela. Também pudera. Seu trabalho é excepcional, sobretudo quanto à representação das dificuldades da inexperiente transmutada em rainha. A pegada seguiu na também elogiada temporada seguinte. A evolução de personagens foi orgânica e compassada.

Seguindo um cronograma esperado, a partir da terceira temporada de The Crown praticamente todo elenco foi trocado. Olivia Colman, recém-oscarizada por A Favorita (2019), assumiu o papel da rainha, enquanto Tobias Menzies passou a viver o príncipe Philip e Helena Bonham Carter encarnou a inconstante Margaret. No campo amplo, esse ano mostrou o desenvolvimento da capacidade política e burocrática da rainha, sobretudo ao lidar com as consequências da Segunda Guerra Mundial e a eleição de um trabalhista como Primeiro Ministro – sujeito que, a priori, representava um pensamento fortemente antimonarquista. Claramente, Olivia Colman constrói uma Elizabeth II com personalidade própria, e não poderia ser diferente. Mais sábia e calejada, a monarca demonstra menos hesitações que a interpretada por Claire Foy, ainda que observada em instantes de indecisão e fraqueza. Aliás, “fraqueza” é a palavra que ajuda a definir o sucesso da série. Se vistos como semi-divindades (como os assessores os vendem à imprensa), os membros da família real pouco sobressairiam, senão para uns poucos nacionalistas ferrenhos. Mas, Peter Morgan está mais interessado nas pessoas do que nos cargos, ainda que estes definam aquelas.

 

A GUINADA DA QUARTA TEMPORADA
Pode-se dizer que a quarta temporada, ambientada no final da década de 1970 e em boa parte da de 1980, as coisas mudaram de figura, ainda que em linhas gerais a tônica de revelar a realeza permaneça. Isso, pois duas personagens históricas importantíssimas foram incluídas, rivalizando em questão de protagonismo com a rainha Elizabeth II. A chegada de Lady Diana Spencer (Emma Corrin) permite que tenhamos contato com a gênese de um dos casos mais midiáticos relacionados à realeza britânica. Pivô de um casamento sem tanta afetuosidade com o herdeiro imediato do trono, ela aparece em constante crise, se tornando um elo poroso mesmo publicamente, ou seja, uma anomalia no que tange ao relacionamento da realeza com o público externo. Porém, essa natureza marcante de Diana também se dá no fato dela ser carismática como nenhum outro portador de título real. Tal dicotomia é pouco aprofundada e, no mais das vezes, Morgan reduz a complexidade psicológica e moral dessa personagem numa concessão justamente ao sensacionalismo vigente. Tanto que até mesmo o príncipe Charles (Josh O’Connor), um dos maiores destaques da terceira temporada exatamente por herdar o fardo trágico da família, acaba virando uma pessoa monocórdica.

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Realidade vs Ficção

 

Outra personagem que entra para rivalizar em atenção com a rainha Elizabeth II é Margaret Thatcher (Gillian Anderson), eleita primeira-ministra britânica, uma das peças vitais para compreendermos a ascensão do conservadorismo (econômico, político, social, comportamental, etc.) nos anos 1980. Assim como Lady Diana Spencer, ela acaba subaproveitada, pois sua participação forte se torna episódica e esporádica. É como se os criadores não conseguissem lidar com a presença de três potenciais protagonistas, unindo-as pelos escândalos e não mantendo a excelência na abordagem que pautou os três anos prévios. Com um mundo em transformação, os anos 1980 mostraram a força dos tabloides, dos jornais ansiosos por notícias bombásticas e sensacionalistas como forma de sustentar o interesse dos leitores e vencer a concorrência. Em poucos instantes The Crown apresenta vontade de compreender o cenário e, de certa forma, apropriar-se de tal leitura da coletividade britânica, inclusive para abarcar o fascínio crescente das histórias de alcova da realeza. Cada vez mais, os leitores/espectadores esperavam não apenas que os nobres fossem “rebaixados” ao nível dos mortais, mas que se mostrassem piores, mais mesquinhos e falíveis.

 

O FUTURO IMEDIATO DE THE CROWN
Dentro da estratégia de produção de The Crown, cada temporada representa, mais ou menos, 10 anos de reinado da rainha Elizabeth II. Além disso, os elencos permanecem por dois anos, sendo praticamente trocados após isso. Nas quintas e sextas temporadas, anunciadas como as derradeiras da série, Imelda Staunton viverá a rainha; Jonathan Pryce será Philip; Lesley Manville assumirá o papel da princesa Margaret; e Elizabeth Debicki encarnará Diana, isso para ficarmos apenas no núcleo principal. Vale aqui lembrar, antes de continuar, que Peter Morgan chegou a dizer que The Crown acabaria na quinta temporada, antes do tempo previsto em conjunto com a Netflix. Mas, em junho de 2020 a gigante soltou um comunicado voltando atrás e confirmando a produção do sexto ano: “Quando começamos a discutir as histórias da quinta temporada, logo ficou claro que, para fazer justiça à riqueza e complexidade da trama, deveríamos voltar ao plano original e fazer uma sexta temporada”, disse Peter Morgan. Certamente o fôlego da quarta parte nas premiações contribuiu para a surpreendente decisão anterior ser revogada.

Levando em consideração que a quinta temporada falará sobre os anos 1990, provavelmente nela teremos como protagonista a grave crise instaurada no seio da realeza, primeiro, por conta do agravamento da turbulência matrimonial entre Charles e Diana e, segundo, em virtude das consequências da morte da antiga postulante ao cargo de rainha. Algumas das principais conjecturas que podemos fazer dizem respeito ao tom. A julgar por outros papeis por ela desempenhados, Elizabeth Debicki pode ampliar as tintas trágicas de Diana, roubando a cena e se transformando num estopim-protagonista. Mas, não esqueçamos que a montagem do elenco para essa fase crucial da família real britânica provavelmente levou em consideração a necessidade de ter intérpretes capazes de evocar intensamente os fantasmas a serem encarados. Imelda Staunton, uma das maiores atrizes da Grã-Bretanha, tem estatura para dar conta do turbilhão enfrentado por Elizabeth II nesse período. Um exercício interessante é pensar no quê sua interpretação diferirá da de Helen Mirren em A Rainha (2006), filme escrito por Peter Morgan no qual vemos a monarca nesse turbilhão. E, qual espaço a série dará à atribulada vida política da Inglaterra? Haverá terreno suficiente para a observação tão relevante nos anos anteriores, tendo em vista o tornado Diana Spencer?

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As rainhas

 

Vale ressaltar que a rainha Elizabeth II sofreu muitas pressões públicas após a morte de Diana, especialmente ao se recusar a cumprir certos protocolos fúnebres previstos à morte de um membro da família real. De acordo com a lei, um dos fundamentos da tradição que baliza a realeza, ela não precisaria fazer concessões, pois Diana era ex. Por exemplo, houve a recusa do palácio de hastear o Estandarte real a meio-pau, alvo de críticas na imprensa, mas na verdade esse símbolo nunca fica a meio-pau, pois ele representa o soberano, posição que nunca morre, afinal rei morto, rei posto. Em vez disso, a bandeira do Reino Unido foi rebaixada a meio-pau em sinal de respeito. Será que teremos uma abordagem complexa desse poder crescente dos meios de comunicação, inclusive do ponto de vista irônico? Sim,  pois foi por meio deles que a população pressionou seus mandatários a demonstrarem respeito pela falecida, mas Diana morreu num acidente automobilístico quando fugia de fotógrafos sensacionalistas na companhia do novo namorado. A curiosidade fica por conta da forma como os criadores equilibrarão tantas questões essenciais.

 

HÁ AINDA POSSIBILIDADES DE MAIS FUTURO PARA THE CROWN?
Atualmente, há uma crise praticamente sem precedentes quanto à imagem pública da realeza. O príncipe Harry e sua esposa Meghan Markle, respectivamente duque e a duquesa de Sussex, entraram em rota e colisão com as demais figuras da família real. Em meio à crise ocasionada pela pandemia da Covid-19, o casal anunciou sua retirada da realeza e uma transição prevendo manter a vida financeira fora dos bens da coroa. A tensões cresceram quando eles deram uma entrevista sem precedentes a apresentadora Oprah Winfrey, revelando preocupações do Palácio de Buckingham com a cor do filho de Harry e Meghan (numa demonstração institucional de racismo); as brigas com os demais membros da prole; os pensamentos suicidas que chegaram a passar pela cabeça de Meghan por conta das pressões reais; as conversas com amigas da falecida princesa Diana; as decepções de Harry com o irmão e o pai; e o corte financeiro que eles sofreram. No entanto, os dois fizeram questão de falar que possuem uma relação muito boa com a rainha: “Ela é minha coronel-chefe, certo? Ela sempre será”, disse Harry. Um prato cheio para aqueles momentos em que a monarca é levada a trair a sensibilidade humana em prol dos protocolos da realeza, não?

Especialmente aos que entendem um dos grandes apelos de The Crown como exatamente esse movimento de expor a humanidade que permeia a existência dos mitos, é sedutor imaginar que, assim como voltou atrás e garantiu uma sexta temporada, a Netflix possa repensar o fim da série e postergá-la para alcançar o presente. Mas, se depender de Peter Morgan, essa possibilidade é praticamente nula. Quando o escândalo estourou, ele foi questionado sobre isso e disse veemente que se manteria fiel à sua regra de 20 anos, ou seja, de apenas escrever sobre eventos que aconteceram há pelo menos duas décadas. “Só acho que as coisas ficam muito mais interessante com o tempo. Meghan e Harry estão no meio de sua jornada, e não sei como ela terminará. Fico muito mais confortável escrevendo sobre coisas que aconteceram há pelo menos 20 anos. Se trata de tempo e distância suficientes para realmente entender algo, entender seu papel, entender sua posição, entender sua relevância”, declarou Peter, que completou dizendo que há eventos hoje aparentemente importantes, mas que serão rapidamente esquecidos.

Provavelmente, apenas o transcorrer do tempo mostrará a importância de The Crown à concepção que os súditos têm sobre a realeza britânica. Numa pesquisa divulgada em 2020, encomendada pelo jornal The Sunday Times of London e conduzida pela empresa Focaldata, 35% do público entrevistado disse que passou a enxergar a monarca e seus familiares de forma “um pouco melhor” ou “muito melhor” desde a estreia da atração. Já cerca de 42% afirmou que a série não teve impacto nesse sentido. Ainda em 2020, o governo britânico solicitou que a Netflix colocasse antes de cada episódio da série um selo que classificasse previamente aquilo como uma ficção, não algo factual. “É uma obra de ficção lindamente produzida, então, como acontece com outras produções de TV, a Netflix deve ser muito clara no início que é apenas isso. Sem isso, temo que uma geração de espectadores que não viveu esses eventos possa confundir ficção com fato”, disse o secretário de cultura do Reino Unido, Oliver Dowden, signatário da requisição prontamente refutada pela empresa. É outra camada na discussão em torno de uma série que mostrou aos mortais as falhas dos “escolhidos” para ostentar a coroa de um domínio que resiste mesmo diante de sua aura de anacronismo. Mas, a julgar pelo sucesso de The Crown, a real família britânica não vai sair de moda tão cedo.

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Harry e Meghan sendo entrevistados por Oprah Winfrey. Foto/divulgação

Na bombástica entrevista concedida a Oprah Winfrey, Harry disse que ele e a esposa assiste ao programa da apresentadora norte-americana, claro, fazendo aquela política da boa vizinhança. Mas, para encerrar, vamos imaginar: será que a rainha Elizabeth II, com mais de seis décadas ocupando o trono britânico, assiste à The Crown? Se sim, o que será que ela acha das liberdades que o programa provavelmente toma? Como lhe parece a forma como seu relacionamento e até mesmo as dúvidas de mãe são abordadas? Se tivéssemos uma linha direta com Peter Morgan e a Netflix, certamente pediríamos algo improvável ao encerramento da série: que tal uma mesa redonda com Elizabeth, Claire Foy, Olivia Colman e Imelda Staunton discutindo como é ser rainha na realidade e na ficção?

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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