Não é exagero dizer que, desde a Segunda Guerra Mundial, a humanidade não se via em um momento tão drástico quanto a atual pandemia de coronavírus. Muito ainda será dito e escrito sobre as origens e consequências deste momento, mas já se sabe que o mercado cinematográfico não será mais o mesmo. Não propriamente por causa do vírus, mas pelas mudanças por ele impulsionadas, algumas delas já ensaiadas.

O cinema como experiência coletiva

 

Há tempos, e aos poucos, o ato de ir ao cinema mudou. Da migração das salas de rua para os multiplex em shoppings ao aumento contínuo do preço do ingresso, assistir a um filme na sala escura tornou-se um programa caro. Também por isso as plataformas de streaming – leia-se, Netflix – fizeram tanto sucesso: a um preço acessível, disponibilizam uma infinidade de filmes e séries ao alcance de um dedo, ou clique. Estreou o filme novo do Adam Sandler ou do Martin Scorsese? Não é preciso pagar um centavo a mais por eles, o que, é claro, potencializa seu acesso ao público.

Como forma de se resguardar, o cinema mudou e passou a investir, cada vez mais, na experiência sensorial. Daí vieram IMAX, 3D, sala VIP e vários outros penduricalhos, mas, ainda assim, uma legião cada vez maior se contentava em assistir em telas cada vez menores, sem se preocupar com som ou imagem. A geração que cresceu assistindo ao YouTube não se importa tanto com tais detalhes.

Pois eis que o coronavírus chegou e fechou milhares de salas mundo afora. Goste-se ou não do streaming, ou mesmo da velha TV, não há outra alternativa: se você deseja ver um filme, qualquer filme, é lá que terá que recorrer. Ou seja, a experiência mudou. Na marra. E trará consequências.

O streaming como experiência individual

 

Uma delas será econômica, e neste aspecto há dois pontos a observar. Um é o lado do exibidor, fechado por motivo de saúde pública, mas ainda pagando impostos e salários. No Rio de Janeiro, a rede Kinoplex colocou todos seus funcionários em férias coletivas e a Cinemark lançou um plano de demissão voluntária. Nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, já se pede subsídios governamentais para resistir à clausura. Mesmo que tais medidas venham, é possível – ou provável – que várias salas mundo afora fechem definitivamente as portas. Especialmente se a pandemia se alongar por meses, uma possibilidade real.

Há ainda o outro lado deste mercado, o distribuidor. Este, sem a pressão do custo físico, já encontrou no streaming a tábua de salvação. A Universal disponibilizou em VOD três filmes ainda em cartaz nos cinemas americanos e um quarto, Trolls World Tour, terá estreia simultânea nas duas plataformas. Bloodshot, Aves de Rapina e vários outros filmes tiveram sua janela de exibição estilhaçada, com o lançamento em VOD antecipado. Mas isto, no fim das contas, não é algo propriamente novo. Há tempos existia esta ideia, o que faltava era oportunidade para executá-la.

Com a cadeia econômica forjada pelas salas de cinema desmontada, os estúdios se viram livres da necessidade em cumprir pré-requisitos referentes às janelas de exibição. E tendem a lucrar com isto, pois, mesmo com o “ingresso” em VOD mais barato, este não só está mais acessível ao grande público como, neste momento, não há outra alternativa para vê-lo. Haverá interesse dos estúdios em retomar as velhas práticas quando a situação normalizar? Tenho minhas dúvidas, ou talvez haja um número ainda maior de filmes que sequer chegue às salas de cinema. Ela não será mais necessária.

Há ainda outro vértice neste cenário: o público. Tamanha ruptura não só quebra o hábito de ir ao cinema como potencializa a sedução do streaming, em relação ao conforto na experiência individual. Este, por sinal, talvez seja o maior reflexo do coronavírus no meio cinematográfico: o vírus que exige o distanciamento social também impede a sensação coletiva em assistir a um mesmo filme. Metáfora do mundo contemporâneo, onde o eu vale mais que o nós.

O fascínio em ir ao cinema retratado em “Cinema Paradiso”

 

É claro que o cinema não acabará quando a pandemia terminar, ou ao menos diminuir. Mas as semanas – ou meses – que se avizinham tendem a provocar mudanças bruscas na experiência em assistir a um filme como poucas vezes se viu, tanto no âmbito social quanto econômico. Quem viver, verá.

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Jornalista e crítico de cinema. Fundador e editor-chefe do AdoroCinema por 19 anos, integrante da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCRJ (Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro), autor de textos nos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros", "Documentário Brasileiro - 100 Filmes Essenciais", "Animação Brasileira - 100 Filmes Essenciais" e "Curta Brasileiro - 100 Filmes Essenciais". Situado em Lisboa, é editor em Portugal do Papo de Cinema.
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