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Sinopse

Prestes a publicar seu aguardado livro de memórias, uma estrela do cinema francês recebe a visita de sua filha, que retorna dos Estados Unidos devido à ocasião festiva, ao lado de marido e filha. Entretanto, ao ler o livro, ela percebe que a mãe modificou sua história, omitindo trechos e inventando outros para torná-la mais interessante ao leitor.

Crítica

"Poesia é indispensável no cinema, independente do gênero". Tal frase, dita através da personagem de Catherine Deneuve, pode ser encarada como um resumo da filmografia de Hirokazu Koreeda. Especialista na tradução de relacionamentos humanos, o diretor japonês imprimiu como marca registrada a sensibilidade com a qual aborda suas histórias. Em A Verdade, não é diferente. Entretanto, este é um Koreeda diferente, fiel às suas origens na essência mas um tanto quanto deslocado em relação à ambientação francesa, como se tivesse uma certa dificuldade em lidar com seus signos comportamentais, ao mesmo tempo em que recorre a artifícios maniqueístas que, no fim das contas, diminuem o todo.

Para melhor entender tal dificuldade, é necessário saber que A Verdade é o primeiro filme em língua não-japonesa rodado pelo diretor. Situado na França e com um elenco que, além de Deneuve, reúne Juliette Binoche e Ethan Hawke, o longa automaticamente (e conscientemente) traz o conhecimento prévio em relação aos rostos que vestem tais personagens, deixando de lado a proposta tão comum aos filmes de Koreeda em relação à descoberta a partir da própria história, mérito daqueles que optam por pouco conhecidos no elenco. Entretanto, este no fim das contas é um mero detalhe. A questão maior é de postura e posicionamento, em uma trama repleta de mágoas acumuladas mescladas a uma certa boa vontade em oferecer alívios emocionais, onde tudo soa amigável até demais.

Se o estranhamento diante de tais momentos é inevitável, mais inusitada ainda é a forma como acontecem, especialmente em relação à trilha sonora. Koreeda opta por um instrumental agridoce que sempre surge em tais momentos agradáveis, o que se torna até mesmo um spoiler devido ao fácil reconhecimento de tal signo por parte do espectador. Além disto, a fotografia passa a ser mais luminosa, uma vez mais escancarando a intenção rumo a um feel good movie momentâneo. Por mais que tais transformações possam ser encaradas dentro da montanha-russa existente entre mãe e filha, personagens de Deneuve e Binoche, a forma com a qual são retratadas são tão díspares em relação ao restante da narrativa que soa, até, como pastiche. Ou uma tentativa estética mal executada, na busca por algum contraponto ao comportamento típico da sociedade francesa. Independente da resposta, Koreeda não está à vontade.

Ainda assim, há vários méritos em A Verdade. A começar por esta força da natureza chamada Juliette Binoche, aqui despida de maquiagem como contraponto à vaidade de sua mãe na ficção, cuja decepção e fascínio através do olhar dizem muito mais que qualquer palavra. Deneuve, por sua vez, interpreta uma personagem ferina nas palavras cujo objetivo maior é, sempre, a carreira. "Prefiro ser uma mãe e uma amiga péssimas e ser uma boa atriz", diz abertamente. Diante de tal postura, o ranço entre mãe e filha é inevitável e se propaga das mais diversas formas ao longo da narrativa, seja em embates diante da tela ou mesmo em propagações de fundo psicológico por vezes até inconscientes. É neste relacionamento, e na pluralidade de suas minúcias, que está a beleza do roteiro escrito por Koreeda. Trata-se do artista em plena forma, fazendo o que sabe melhor.

Há ainda outras duas subtramas que servem de ramificação ao conflito entre mãe e filha. Uma delas é até curiosa por, de novo, lidar com a questão do ineditismo do diretor em relação à língua: Ethan Hawke tem por função maior ser a persona norte-americana nesta história, sujeita ao desprezo habitual oriundo da cultura francesa tão associado aos blockbusters e filmes comerciais de Hollywood. Por mais que também tenha uma conotação afetiva dentro do contexto familiar, sua escalação tem muito mais a ver com o contraste de postura e comportamento que apresenta em relação a todo o elenco restante, inclusive sua filha. É como se fosse alguém deslocado naquela multidão, algo que remete também ao próprio Koreeda.

A segunda subtrama aponta um filme dentro do filme, metalinguagem essencial para demonstrar o fascínio ainda existente da filha em relação à mãe, ao vê-la atuando. Koreeda, por sua vez, brinca com um gênero que lhe soa anacrônico, a ficção científica, como se aproveitasse o momento para experimentar um viés mais filosófico, de novo sobre a natureza dos relacionamentos. Entretanto, por ser este um apêndice, tais questões não são aprofundadas, o que até é compreensível. Sua função é servir à narrativa central, a qual cumpre a contento.

Um tanto quanto irregular em relação à forma como apresenta a narrativa, A Verdade é um filme bem interessante em sua essência, mas que apresenta problemas na execução. Talvez pela dificuldade em relação a um ambiente inédito para o diretor, talvez por um mero risco mal calculado. Com um elenco competente em mãos, que segura firme a profundidade necessária transmitida através de sutilezas, trata-se de um filme cuja câmera busca o íntimo de seus personagens, seja através de olhares fortuitos ou mesmo ao focá-los de costas. Isso quando não resolve que tudo deve virar um mar de rosas de uma cena para outra, em uma transformação digna de Dr. Jekyl & Mr. Hyde. Pena.

Filme visto em Portugal, em julho de 2020.

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Jornalista e crítico de cinema. Fundador e editor-chefe do AdoroCinema por 19 anos, integrante da Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e ACCRJ (Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro), autor de textos nos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros", "Documentário Brasileiro - 100 Filmes Essenciais", "Animação Brasileira - 100 Filmes Essenciais" e "Curta Brasileiro - 100 Filmes Essenciais". Situado em Lisboa, é editor em Portugal do Papo de Cinema.
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