Costumamos chamar atores e atrizes de estrelas. Hoje em dia, qualquer um que tenha saído em manchetes e/ou protagonizado alguns blockbusters recebe a alcunha, o que é uma lástima, pois ela deveria ser resguardada apenas a quem realmente adorna o firmamento do cinema. A francesa Jeanne Moreau merece, como poucos, ser comparada a um corpo celeste, pois passou pelas salas escuras iluminando a nossa relação com a arte, especialmente a francesa, da qual se tornou um dos principais faróis. Luz é o que verdadeiramente emanava do sorriso maroto dessa mulher nascida em Paris, em 1928, apenas um ano depois do cinema ter aprendido a falar e a ouvir. Filha de um barman francês e de uma bailarina inglesa, ela estudou no Liceu Edgar Quinet antes ingressar no prestigiado Conservatório de Paris, onde se formou atriz clássica. Com 19 anos, teve papeis de destaque no palco do emblemático Comédie Française – teatro estatal, um dos únicos da França com companhia fixa. Estreou lá no fim dos anos 1950, com a peça Les Caves du Vatican, de André Gide, sob a direção de Jean Meyer, interpretando uma prostituta. Virou capa da famosa revista Paris Match, assim, de cara.

Mais ou menos nesse período, precisamente em 1949, então aos 21 anos, Moreau fez seu debute no cinema, no drama Dernier Amour, de Jean Stelli, com função secundária, posição similar a que desempenharia em diversos filmes até o marcante ano de 1958, quando, de fato, nasceu enquanto astro essencialmente cinematográfico. Nos palcos, havia saído do Comédie Française e entrado no não menos importante Théatre National Populaire, de Jean Vilar. Mas foi sob a batuta do cineasta Louis Malle que Moreau conseguiu o primeiro sucesso nas telonas, vivendo a protagonista de Ascensor para o Cadafalso (1958), uma mulher que convence o amante a matar o marido industrial. A esse êxito, pelo qual chamou a atenção, seguiu-se outro de semelhante envergadura, também em colaboração com Malle. Por Os Amantes (1958) o cineasta venceu o Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza. O filme causou furor por apresentar uma mulher sexualmente livre, que desafiava os costumes da época.

Historicamente, estamos próximos da eclosão da nouvelle vague, momento de renovação estética e temática do cinema, não somente o francês, já que espalhou-se pelo mundo como uma onda contagiante de vanguarda. E Moreau estava destinada a ser um de seus rostos principais. Ela fez uma pequena participação em Os Incompreendidos (1959), como uma transeunte que passeia com seu cãozinho. Logo depois, foi consagrada com o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cannes por Duas Almas em Suplício (1960), do britânico Peter Brook. A ascensão seguiu no ritmo da contribuição com cineastas notáveis. Em 1961, contracenou com Marcello Mastroianni em A Noite, segunda parte da emblemática Trilogia da Incomunicabilidade do italiano Michelangelo Antonioni, na qual vive uma esposa em crise por conta do relacionamento moribundo. O cinema definitivamente se rendia ao seu talento maiúsculo.

Moreau já era uma personalidade de renome internacional quando voltou a trabalhar com François Truffaut, concebendo um papel que muitos consideram o seu melhor, entre tantos excepcionais. Em Jules e Jim: Uma Mulher para Dois (1962), ela novamente dá vida a uma mulher de espírito livre, que vive seus amores ao sabor da chama que os mantém acesos, sem importar-se demasiadamente com os ditames da sociedade. Numa das cenas mais icônicas do longa-metragem, a atriz mostra seu talento patente de cantora. Em meio aos homens que a adoram, ela entoa Le Tourbillon de La Vie, música que fala sobre o turbilhão da vida que pode unir e separar corações com a mesma intensidade. A partir daí, continuou explorando cinematografias e línguas distintas, expandindo a mítica em torno de si.  Foi dirigida por Joseph Losey (Eva, 1962), Orson Welles (O Processo, 1962), Jacques Demy (A Baía dos Anjos, 1963), Marcel Ophüls (Banana Peel, 1963), John Frankenheimer (O Trem, 1964), Luis Buñuel (Diário de uma Camareira, 1964), entre tantos. Em 1967, venceu o BAFTA de Melhor Atriz Estrangeira por Viva Maria! (1965), filme de Lous Malle no qual atuou ao lado de Brigitte Bardot. Os anos 60 foram realmente dela, sem alguém, minimamente, para lhe fazer frente.

Já na década de 70, desembarcou no Brasil para atuar sob a direção de Cacá Diegues, então um dos remanescentes do Cinema Novo – movimento tão influenciado pela nouvelle vague –, em Joana Francesa (1973). Ela interpreta a dona de um prostíbulo paulistano que resolve aceitar a proposta de um cliente alagoano para morar no seu engenho de açúcar e assumir, num âmbito amplo, a chefia de uma casa/família marcada por inúmeras tensões. Curiosamente, na produção brasileira, Moreau foi dublada por Fernanda Montenegro, outra gigante. Continuou, agora no patamar de diva, plenamente na ativa nos anos 80, 90 e 2000, emprestando sua aura de lenda, sobretudo, a produções europeias. Além de atriz e cantora, foi cineasta. Dirigiu três filmes: Lumière (1976), L’adolescente (1979) e Lilian Gish (1983), documentário sobre uma precursora, assim como ela.

Em 1992, recebeu o Troféu Honorário do Festival de Veneza por sua contribuição ao cinema. Em 2000, foi agraciada com o Urso de Ouro Honorário do Festival de Berlim pelo Conjunto da Obra. Já Cannes, palco constante de seus êxitos, lhe concedeu uma Palma Honorária, em 2003. Além disso, foi indicada três vezes ao César (o equivalente francês do Oscar), vencendo como Melhor Atriz por La Vieille qui Marchait Dans la Mer (1991). Ainda foi homenageada com dois César Honorários, um em 1995 (Conjunto da Obra) e outro em 2008 (60 Anos de Cinema), e com o Oscar pelo Conjunto da Obra, em 1998.

Jeanne Moreau foi encontrada morta em seu apartamento, em Paris. Quando da escritura deste In Memoriam, a causa mortis ainda não havia sido divulgada. Embora a centelha de sua vida tenha se apagado, ao cinema, seu fiel companheiro, meio pelo qual expressou as angústias da mulher moderna, entre outras urgências, cabe o digno papel de eternizá-la, fazendo com que o lastro de seu brilho permaneça fulgurante às novas gerações.

Filme imprescindível: Jules e Jim: Uma Mulher Para Dois (1962), de François Truffaut

Primeiro filme: Dernier Amour (1949), de Jean Stelli

Último filme: Le Talent de mes Amis (2015), de diretor Alex Lutz

Guilty pleasure: Para Sempre Cinderela (1998), de Andy Tennant (Ela interpreta a Rainha da França, que chama à sua presença os próprios Irmãos Grimm, na breve introdução)

Oscar: Recebeu o Oscar Honorário pelo Conjunto da Obra, em 1998

Frase inesquecível: “A idade não nos protege contra o amor. Mas o amor, até certo ponto, protege-nos contra a idade”

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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