Há vinte e cinco anos, o cinema brasileiro era terra devastada. O Governo Collor, no início dos anos 1990, acabou com a produção e divulgação da produção nacional no país e no exterior. O resultado foi calamitoso, e foram necessários anos para que os primeiros sinais de recuperação fossem dados. É por isso que 1995 é considerado o ano-marco da Retomada. É justamente o que o Especial 25 Anos tem como objetivo resgatar: ouvir dos responsáveis por estas realizações como foi ter feito parte da construção de obras que perduram até hoje e se tornaram fundamentais para esse resgate pátrio. Os quatro “novos clássicos” que escolhemos foram significativos, cada um a sua maneira. Menino Maluquinho: O Filme foi um dos primeiros sucessos voltados a um público infantil. Carlota Joaquina: Princesa do Brazil, foi o grande sucesso de público. O Quatrilho nos levou ao Oscar! E assim chegamos ao mais emblemático de todos: Terra Estrangeira, de Daniela Thomas e Walter Salles. Para saber mais a respeito, falamos não apenas com os diretores, mas também com os protagonistas – Fernanda Torres e Fernando Alves Pinto – e com o produtor Flávio Tambellini. Eles lembraram dessa aventura com carinho, dividiram histórias, impressões e o que significou ter feito parte desse projeto.
UMA IMAGEM COMO ORIGEM
O filme Terra Estrangeira nasce de uma fotografia, uma imagem emblemática que acabou servindo também para o pôster do filme. Quem explica é Walter Salles, pois foi quem viu a foto e, a partir dela, teve a ideia para aquele que seria seu segundo longa como realizador. “Uma imagem em preto e branco me veio à cabeça: a de dois jovens frente à um navio emborcado na areia, num país distante. Pouco a pouco, foi ficando claro que aquela cena refletia formas distintas de exílio: político, econômico, afetivo. Ela contém o filme como um todo e reflete a crise identitária que o país vivia naquele início dos anos 90. Os personagens de Alex e Paco nascem dessa percepção”, comenta o cineasta.
“Um dia o Walter falou sobre essa imagem, que tinha visto num livro de fotografia, com um navio encalhado numa praia. Achava que era uma metáfora visual potente da condição de ser brasileiro naquele momento que estávamos vivendo. Foi muito sedutor quando me contou essa ideia”, confirma Daniela Thomas, que primeiro havia sido chamada para assumir a direção de arte do projeto, mas aos poucos foi adquirindo mais responsabilidades. “O Terra Estrangeira foi a coisa mais incrível que aconteceu na minha vida”.
Daniela explica melhor seu envolvimento: “o Walter escreveu um primeiro tratamento. Quando li, não reconheci nada, e por isso escrevi a minha versão a partir daquilo que tinha me contado antes. Quando ele leu, decidiu jogar fora o que havia escrito antes, e recomeçar a partir da minha versão. Isso é parceria. Nisso, me tornei também co-roteirista. Achei que o Nando, que é meu primo, tinha uma beleza de cinema. Por isso fiz um pequeno filme com ele pra mostrar para o Walter, algo mais ou menos como imaginava que teria que ser o nosso longa. Quando mostrei, me olhou e disse: “tu não quer dirigir comigo?”. Primeiro fui chamada para ser diretora de arte, depois como co-roteirista, e por fim, para dirigir ao lado do Walter”, relembra.
Uma imagem em preto e branco me veio à cabeça: a de dois jovens frente à um navio emborcado na areia, num país distante. Pouco a pouco, foi ficando claro que aquela cena refletia formas distintas de exílio: político, econômico, afetivo
UM NOVO CINEMA
Walter Salles e Daniela Thomas não teriam conseguido sem alguém focado nas questões mais práticas. Foi quando Flávio Tambellini foi chamado para integrar o time. “Na época, eu e o Walter estávamos fazendo muitas coisas juntos, publicidade, documentários. Antes, ele tinha feito o A Grande Arte (1991), que não foi uma experiência que tinha gostado muito. Foi caro, perdeu um pouco o controle, nada saiu como havia imaginado. E por isso queria fazer algo completamente diferente”, comenta o colega. “Terra Estrangeira foi uma experiência fundadora de cinema para mim, e acredito que para Daniela também. Foi a primeira vez que encontrei o mesmo prazer na ficção que sentia no documentário”, ressalta Walter Salles, em plena sintonia com seus parceiros.
“O Terra Estrangeira está no DNA de como o Walter filma. Os planos do Walter e da Daniela são pensados também no ator. E foram filmando tão rápido, que o plano de filmagem começou a cair. Acho que a importância do Terra é que foi nesse filme que o Walter fundou a maneira dele de filmar e foi quando a Daniela veio para o cinema”, relembra Fernanda Torres, convidada para viver e emigrante Alex.
FERNANDA TORRES É ALEX
“A Nanda foi a nossa fonte de inspiração e nosso metrônomo. Alex foi escrita para ela. Admiro a sua inteligência interpretativa, a sua sensibilidade à flor da pele, a sua capacidade de fazer a transição da comédia ao drama em um ápice de segundo. É uma grande atriz, e é possível guiá-la de forma milimétrica”, revela Salles. A atriz continua: “não me identifiquei especificamente com a Alex, mas tinha a situação dos brasileiros exilados porque o Brasil não era mais possível. Depois de ser premiada em Cannes, o meu futuro era fazer cinema. Só que aconteceu o contrário, veio o Collor e acabou com tudo. Passei dois ou três anos fora. Quando veio o Terra Estrangeira, percebi que um pouco autobiográfico pra mim, pela minha relação com Portugal, que foi onde morei durante esse tempo”, relembra.
“A Fernanda apareceu logo cedo como Alex. Ela, em determinado momento, ajudou a escrever também. Muitos dos diálogos da personagem foram feitos por ela”, revela Thomas. Essa é a deixa pra Nanda Torres falar, com muito bom humor, da sua importância para o filme: “um dia o Walter falou no set: “A Nanda é a coisa mais cara de todo esse filme, fora o helicóptero”. Quando ouvi, respondi: “olha, o helicóptero não garanto, mas tenho certeza que valho cada centavo”, diz sem conseguir segurar o riso.
Eu era muito parecido com o Paco. Um jovem sonhador, chegando numa terra estrangeira, absolutamente entregue. Foi um mergulho completo
FERNANDO ALVES PINTO É PACO
Chega a vez do Fernando Alves Pinto comentar como surgiu seu envolvimento com Terra Estrangeira: “estava morando em Nova Iorque. Um dia, cheguei em casa, tinha um recado do Walter Salles. Fiquei esperando por uma segunda ligação, e nada aconteceu. Só me deixou na vontade”, ele recorda. E continua: “a Dani que teve essa ideia de fazer um vídeo comigo, andando pelas ruas e mostrando um pouco da minha rotina, pro Walter saber quem eu era (…) Topei fazer Terra Estrangeira porque queria fazer cinema. Era o sonho da minha vida”, confirma.
“Fernando nos trouxe o frescor e a inocência que estávamos buscando para Paco, além de um raro grau de imersão e de uma aptidão pelo risco. Fernando era o Paco com quem tínhamos sonhado. Um Paco “gauche na vida”, para lembrar Drummond”, relembra Salles, deixando claro que o fato dele ser um estreante não chegou a ser um problema. “Isso do ator inexperiente você não pensa. O Nando era o Paco, pela virgindade dele. Saímos dali amigos, nos amando. Era um filme de família. Esse caráter da inexperiência muitas vezes é bem-vindo. Ela traz algo de pureza. Você não fica pensando “nossa, sou premiada e faço isso há anos, e estou atuando ao lado de alguém que começou ontem”. Às vezes essa é a própria essência do projeto”, afirma Fernanda Torres.
A atriz continua: “o Nando, coitado, era um menor-abandonado. Era o próprio personagem, o Paco. A nossa relação era muito parecida com a dos protagonistas. A Alex era descolada, e o Paco é um ingênuo. Ele é currado por Lisboa. Tentei cuidar dele, mas também manter uma certa frieza, pois isso era da Alex”. E quem finaliza essa questão é o próprio ator: “sem dúvida, eu era muito parecido com o Paco. Um jovem sonhador, chegando numa terra estrangeira, absolutamente entregue nas mãos da Dani e do Waltinho. Foi um mergulho completo”, confessa Alves Pinto.
ELENCO DE ESTRELAS
Walter Salles dá a pista sobre como foi o processo de formação do elenco. “Laura Cardoso, Alexandre Borges e Luís Melo eram atores que Daniela e eu vimos no teatro e admirávamos, e o convite veio daí. Em Portugal, nos apresentaram atores excelentes como João Lagarto, e uma série de jovens que, como Miguel Guilherme, estavam começando no cinema português”. “A Laura Cardoso é muito importante no filme. Adorei trabalhar com ela. Como ensaiamos bastante, nos tornamos íntimos. Nossas cenas me fazem chorar até hoje. Depois que você perde alguém, é quando percebe essa dor. Quando a mãe estava ali ao lado, o Paco achava um saco, reclamava. Mas quando ela morre, ele sente muita dor”, se emociona Alves Pinto, que foi quem dividiu mais cenas com a veterana atriz.
“Como era um filme de baixo orçamento, e éramos jovens, a gente topava qualquer coisa. Pegamos um voo para Lisboa, classe econômica, lotado, com seis escalas! Quando chegamos em Lisboa, eu e o Alexandre já éramos casados, havíamos virado os personagens. Estávamos há 22 horas babando em cima do outro, roncando, escovando os dentes. Tivemos um mergulho de quem eram os personagens. Certamente a Alex e o Miguel pegaram aquele voo quando foram para Lisboa”, revela Nanda Torres em mais uma das tantas histórias que guarda dos bastidores.
Acho que esse casal tem essa coisa das almas perdidas. O filme fala muito, pra mim e pro Walter, dessa sensação de não-pertencimento. Uma vez que perde essa relação umbilical com a sua terra, você pertence a qual lugar?
PACO E ALEX
“Acho que esse casal tem essa coisa das almas perdidas. O filme fala muito, pra mim e pro Walter, dessa sensação de não-pertencimento. Uma vez que perde essa relação umbilical com a sua terra, você pertence a qual lugar? Os dois representam isso, um para o outro, essa ideia de pertencimento”, afirma Daniela Thomas. E quem continua é seu primo: “o Paco estava sem razão de ser. Era uma presa fácil. Tinha acabado de perder a mãe, não tinha motivo para viver, não tinha grana. E queria viajar, conhecer a terra da mãe”.
“O fato de já ter trabalhado em Portugal me ajudou na construção da Alex. Tenho uma intimidade muito grande com aquela terra. Acho que isso está impresso na tela. Era um pouco o meu chão também”, recorda Torres. E quem finaliza é Salles: “naquele momento, pessoas se exilaram por razões diferentes. Paco não buscava partir – era filho de uma imigrante basca que elegeu o Brasil para morar. É esse desejo de pertencimento que se quebra com a morte da mãe durante a crise dos anos Collor, expelindo-o para fora do Brasil. Para Alex, partir fazia parte de um projeto amoroso que implode em Portugal. Paco e Alex são personagens que se encontram quando confrontam os mesmos sentimentos de perda e de orfandade”.
ENSAIOS
“A gente ensaiou bastante. A Daniela é espetacular, e por ter feito muito teatro – o que faz até hoje – tem uma sensibilidade muito grande. Eu tinha morado fora por seis anos. Cheguei e o Brasil era uma terra estrangeira pra mim também. Quando cheguei em São Paulo, fui morar no apartamento do Paco, como o meu personagem, pra viver o que ele passava”, reforça Nando. E Dani Thomas continua: “o Walter sentia uma necessidade grande de ter um reforço na questão do ator. Entrei por causa da minha experiência com o teatro, e ensaiamos o Terra Estrangeira inteiro, antes das filmagens”.
A gente podia morrer ali, não ia ter filme, mais nada. Foi uma das experiências mais maravilhosas de cinema que já tive
WALTER E DANIELA
“Foi um trabalho coletivo. O filme é do Walter e da Dani, que assinaram a direção. Mas tudo foi discutido em conjunto”, adianta Tambellini. E quem continua é Fernando Alves Pinto: “fico dizendo que a Dani era minha mãe, e o Waltinho era o pai severo. Aquele que a gente tem medo de apanhar. O Waltinho não era fácil. Mas a Dani só faltava nos pegar no colo. Ele é encantador, eu sei. Mas quando chega na hora do trabalho… é fogo!” Essa é a deixa para a Fernanda Torres contar outra história: “o Walter é incrível, mas rigoroso. Quando você rende, é um diretor grato a você. Agora, quando não acontece como o esperado, fica puto (risos). Lembro que a primeira cena que fizemos era com o Alexandre Borges, num dos mirantes de Lisboa, quando a chamo de “cidade branca”. E falo isso de uma forma poética. Era cedo, e tenho uma certa dificuldade com cenas poéticas (risos). Estava péssima. Quando acabou, o Walter mal falava comigo (risos). Foi quando pensei: “tenho que começar a render a partir de amanhã, porque senão vai me mandar de volta para o Brasil”. A Dani ficava muito nos bastidores. O Walter dominava a filmagem. Eles iam batendo uma bola. Era como Pinky e Cérebro (risos)”, se diverte.
Mas Nanda não foi a única a sofrer para alcançar na tela o que os diretores estavam esperando. “Na cena que a Alex e o Paco fogem de carro, ela brinca com a arma e dá um tiro no vidro de trás. Depois tínhamos que parar o carro, num cavalinho de pau. E era algo que eu simplesmente não conseguia. O Waltinho foi ficando puto, furioso mesmo. Acabou comigo. E eu, de dentro do carro, fiquei desesperado. Me fechei e comecei a xingar também, mas baixinho, com a cabeça baixa. Quando levantei, percebi que estava com o microfone de lapela ligado, e todo mundo ouviu os meus xingamentos. O Waltinho só tirou o fone dele, virou as costas e saiu (risos)”, se diverte Alves Pinto.
Ainda sobre essa cena, Fernanda Torres continua: “era um carro tão velho, que mal andava. Cinto de segurança, então, nem pensar. O Walter dirige muito bem, e como não havia dublê – e como o Nando não acertava a marcação – ele próprio se ofereceu pra dirigir. Acontece que o primeiro cavalo de pau não funcionou, repetimos e também não deu certo. Na terceira, o carro deu uma levantada e quase capotou. Quando parou, olhei pra ele e disse: “Walter, nós somos dois malucos”. A gente podia morrer ali, não ia ter filme, mais nada. Foi uma das experiências mais maravilhosas de cinema que já tive”.
PORTUGAL E CABO VERDE
Flávio Tambellini avança na questão e revela que o filme poderia ter sido bem diferente desse que conhecemos hoje. “No início, o roteiro era um thriller, com o roubo do violino. Aos poucos, fomos buscando questões que estavam acontecendo no país, e incorporando-as ao roteiro. O Plano Collor, aquela mãe, sozinha no apartamento, isso não existia nos primeiros tratamentos. Entrou a partir dos acontecimentos. Da mesma maneira quando fomos visitar locações em Lisboa, e encontramos muitos emigrantes africanos. Isso também foi incorporado depois”, lembra o produtor. É o ponto para Walter continuar: “o roteiro continuou a evoluir até o último dia de filmagem. Filmamos rapidamente, em quatro semanas e em três continentes, com uma equipe reduzida. Pensamos o filme todo antes, mas não paramos de improvisar ao longo da filmagem. Como produtor, Tambellini foi fundamental para tornar essa filosofia possível. Foi um processo único, e dificilmente reproduzível”.
“Foi uma loucura. Fomos numa equipe de 8 pessoas para até Cabo Verde, uma estrutura super reduzida. Era uma praia violenta, que não nos permitiu criar o romantismo que buscávamos. Por isso, tivemos que fazer algumas cenas em São Conrado, no Rio de Janeiro, e montamos na edição. Portugal foi muito tranquilo, como uma família. Trabalhamos com o mesmo espírito de como foi feito no Brasil”, recorda Thomas. “Terra Estrangeira foi filmado no Brasil, Portugal e Cabo Verde. A gente filmou primeiro em São Paulo, depois fomos para Lisboa. E em Cabo Verde fomos fazer apenas aquela cena do navio. O país fica no meio do caminho entre a África e o Brasil. Tinha apenas um voo de ida e um de volta por semana. Tivemos que ser espertos para ficar o mínimo possível por lá. Foi tudo feito em etapas”, conclui Tambellini.
No início, o roteiro era um thriller, com o roubo do violino. Aos poucos, fomos buscando questões que estavam acontecendo no país, e incorporando-as ao roteiro
VAPOR BARATO
“Foi a Nanda que teve a ideia dessa música. Ela resolveu o filme”, afirma, sem meias palavras, Daniela Thomas. E quem dá mais detalhes é Walter Salles: “todo o final deve ser creditado à Nanda. Ela estava escutando uma música no walkman. Passei perto e pedi para ouvir. Era Vapor Barato, do Waly Salomão e Jards Macalé. Foi como um estalo. Jogamos fora o roteiro, e mudamos inteiramente a cena final – que era verbosa demais na sua versão original. Lembro até hoje de Daniela se deparando com uma cena final totalmente diferente. Estávamos tão afinados que gostou imediatamente da mudança”.
Mas a co-diretora se lembra desse episódio de um modo diferente. “No dia que iríamos filmar essa sequência, tive que sair para ir até a fronteira, a menos de um quilômetro, pra ver se a direção de arte estava pronta. Quando volto, encontro tudo diferente. Falei: “vocês ficaram loucos, saio por cinco minutos e isso aqui vira um musical?” (risos). Entrei em parafuso, era só o que me faltava. Mas acabaram me convencendo, e ficou muito bom”. Bom, ao menos o desfecho corrobora a versão de Salles: “esse era o espírito do filme. Se era possível encontrar algo improvisado mais interessante do que a cena no papel, ficava a improvisação”.
Bom, faltava a responsável pela sugestão contar como Vapor Barato foi parar em Terra Estrangeira. “Tinha aquela imagem do navio, e por causa dela lembrei dessa música, que ouvia na minha casa”, recorda Fernanda Torres. E continua: “Vapor Barato é de uma época que o Brasil também exilou pessoas, ainda que por uma outra causa, dessa vez política. Então, tinha essa ligação com uma outra vez que o Brasil também se tornou inviável”.
CABO ESPICHEL
“A gente estava no Cabo Espichel, um lugar mágico, em Portugal. É a ponta da Europa. A gente se deu conta que estava faltando uma desculpa para que os dois personagens, a Alex e o Paco, fossem transar. Sentei numa pedra e comecei a escrever um diálogo. O Walter, por sua vez, ficou andando, até que disse: “já sei”. Imaginou um plano-sequência que acho digno do Antonioni! Você não se apaixona, no cinema, falando. É tudo no olhar. Os dois se aproximam, vão andando, até desaparecerem naquele branco. Céu e terra, tudo junto, sem horizonte. Até hoje, quando conto essa história, me dou conta que estive na frente de alguém que domina o dizer, a grafia do cinema. É muito bacana ter vivido isso”, relembra Daniela Thomas.
Quem também recorda dessa cena específica é a Fernanda Torres: “lembro daquela cena da grua, em Cabo Espichel. Foi uma hora que nos demos conta de que estávamos fazendo um filme de verdade. O Walter Carvalho ficou pendurado naquele abismo, com um vento, correndo risco de vida. Isso tem a ver com esse espírito aventureiro de se fazer cinema. A beleza daquele plano, e a certeza de que, enfim, estávamos fazendo um filme de gente grande”.
Esse era o espírito do filme. Se era possível encontrar algo improvisado mais interessante do que a cena no papel, ficava a improvisação
PRETO E BRANCO
“O filme nasce em preto e branco desde a foto que o Walter viu em Paris, do navio naufragado. Tenho uma sensação de que é como se o preto e branco tirasse o adereço e deixasse o essencial. Toda a questão da arte, da palheta, das informações, somem. A realidade é suja, é cafona. Isso, no cinema, fica feio. Por isso você começa a manipular até assumir a pegada que você quer. E o preto e branco elimina essa construção”, comenta Daniela Thomas.
Quem segue sobre esse tópico é o produtor Flávio Tambellini: “a nossa preocupação era que tivesse significado, que fosse diferente. A fotografia daquele livro, do navio encalhado em Cabo Verde, criou um pouco essa imagem emblemática do filme ser em preto e branco. Quando tava pra ficar pronto, o co-produtor português insistiu para que fosse colorido, porque achava que não iria vender. Era uma questão de linguagem. Isso que é o bacana, não tínhamos medo de correr riscos, fazia parte do projeto”, se diverte.
Walter Salles explica melhor a opção por filmar em preto e branco: “Robert Frank disse uma vez que o preto e branco revela com precisão as sensações de esperança e o desespero. Terra Estrangeira fala de uma condição existencial que oscila constantemente entre esses dois estados. Walter Carvalho foi um companheiro de viagem notável. Considero-o um co-autor, alguém que sabe que cada plano deve conter o filme como um todo. Nenhuma imagem pode, portanto, ser aleatória”.
APRENDIZADO
Walter Salles lembra de ter ficado bastante impactado com a recepção que Terra Estrangeira recebeu ao chegar aos cinemas. “Sinceramente, não tinha a menor ideia como o filme seria recebido. O mais importante para a gente era que ecoasse no Brasil, participando do renascimento do cinema brasileiro, depois de anos de silêncio”. “Eu, graças a Deus, não tinha noção da responsabilidade que assumi quando aceitei ser protagonista. E digo isso porque, se tivesse percebido, era capaz de ter travado. Era a coisa que mais queria fazer na minha vida”, confessa Alves Pinto. Daniela Thomas se debruça sobre o desfecho da trama: “não tenho ideia do que acontece com eles. Gosto de filmes que fazem isso, que deixam o espectador terminar a trama por contra própria. Não é o meu desejo entregar tudo pronto. Gosto de deixar essa possibilidade, assim como é na vida”.
A nossa preocupação era que tivesse significado, que fosse diferente. A fotografia daquele livro, do navio encalhado em Cabo Verde, criou um pouco essa imagem emblemática do filme ser em preto e branco
SEXO
“Terra Estrangeira é muito sexy. Há um subtexto relativo a uma suposta homossexualidade do Igor, personagem do Luis Melo. Puxa, estão os dois sozinhos, num bar, e ele manda um uísque pro moleque. É claro que quer comer o menino! Com certeza há uma libido ali”, reflete Alves Pinto. E voltando ao personagem dele, confessa: “nunca havia prestado atenção no sexo como um componente do filme. Mas é real, uma questão forte. A Alex come o Paco na primeira oportunidade que tem, pois sente saudade do marido. Ele nem se dá conta que está sendo usado por ela”, se diverte. Daniela Thomas também refletiu sobre essa questão: “o sexo, no cinema, é o maior dos clichês. É até curioso, pois sempre me questiono sobre qual maneira filmar a milionésima cena de sexo. Trabalhamos algo desconstruído. A cena de sexo, no filme, é vista em pedaços. Você vê uma boca, um pedaço do corpo. Nós, que estamos assistindo, montamos o conjunto”.
A Alex come o Paco na primeira oportunidade que tem, pois sente saudade do marido. Ele nem se dá conta que está sendo usado por ela
REPERCUSSÃO
“A importância e o bonito desse filme é ter um diretor que abandonou a ambição pelo grande filme e, justamente por isso, fez algo inesquecível através de um longa de guerrilha. E, com isso, encontrou sua maneira de filmar”, afirma Fernanda Torres. “Esse filme é lindo, tem um frescor único. Tem muita coisa sendo aprendida. Tava todo mundo descobrindo como fazer cinema ao mesmo tempo. O resultado é reflexo do amor que todos colocaram no projeto”, comenta Alves Pinto. “Não era a nossa preocupação. Talvez por isso, tenha se tornado um clássico que acabou atravessando os tempos. Foi feito com muita sinceridade. É o pequeno grande filme”, analisa Flávio Tambellini.
CRÍTICA
“Não estávamos preparados para o tamanho que o filme adquiriu. Foi pouco celebrado no começo. Mas o que aconteceu é que foi ficando. O público foi aumentando. As pessoas falavam umas para as outras”, lembra Daniela. E continua: “a crítica é quase uma ciência. Como olhar e entender um filme. Ler a crítica sobre o seu próprio filme, e sobre cinema em geral, faz parte de aprender a fazer e viver cinema. O que penso ser problemático é quando se resume ao gostei ou não gostei. O que quero é que me contextualize, por quê não gosta, ou por quê gosta. Tínhamos noção que estávamos fazendo algo incrível, no sentido de que merecia ser visto”, finaliza.
Walter Salles também destaca a importância da fortuna crítica que o longa gerou: “lembro imediatamente da importância que a crítica teve para Terra Estrangeira. Graças às críticas vieram os convites para mais de 40 festivais independentes, ganhando uma série de prêmios. Os Prêmios Guarani, por exemplo, foram fundamentais em um momento em que a cinematografia brasileira renascia”. O produtor Flávio Tambellini dá sua opinião sobre o papel da crítica para o sucesso de Terra Estrangeira. “A crítica tem um papel fundamental. E a crítica brasileira sempre foi forte. Mas precisamos diferenciar os críticos daqueles caras que poderiam estar fazendo qualquer outra coisa, indo a um restaurante, ou sei lá o que. Sem cultura cinematográfica não dá pra fazer crítica de cinema”, conclui.
A crítica tem um papel fundamental. E a crítica brasileira sempre foi forte. Mas sem cultura cinematográfica não dá pra fazer crítica de cinema
25 ANOS DEPOIS
“Quando vi o filme pela primeira vez, meu perfeccionismo gritou. Não gostei de mim, da minha atuação, queria mudar tudo. Mas achei deslumbrante. A fotografia te leva, a trilha e as imagens são belas, e a dramaturgia vai te conduzindo. Mas aquela realidade infelizmente está de volta. O passaporte brasileiro, mais uma vez, não vale nada. O brasileiro não vale nada. Terra Estrangeira ajudou a gente a se curar disso, mas tudo voltou vinte e cinco anos depois”, lamenta Nando. E continua: “ver o filme 25 anos depois dá uma tristeza quando percebemos que a autoestima da nação está no mesmo lugar daquela época, com a mesma indignação. Dá também uma saudade daquele renascer. O filme mostra uma perda, e com isso, incita uma vontade pela volta. A vontade da recuperação”.
Fernanda Torres revela sua relação com o filme. “Fico nervosa ao rever longas que participei. Tem uns que, quando aparece na minha frente, falo “ai, meu deus, vão passar de novo”. Mas com o Terra, não. Não só é um filme da minha filmografia que sobreviveu, que me dá orgulho de ter feito. É da minha juventude, do meu caminho para a maturidade, e de uma época muito viva. É um turning point na minha carreira”. Ao analisar os paralelos entre o Brasil de hoje e o de vinte e cinco anos atrás, reflete: “O filme tem ainda tanto a dizer. Estamos vivendo uma situação diferente, mas parecida. Hoje, a gente só não se exila porque nenhum país do mundo está aceitando brasileiros. Hoje, o tom do país é mais bélico. Acho que nós não temos mais aquela doçura. Perdemos até nosso tom melancólico e poético”.
“Tenho a sensação que é a coisa mais grave que aconteceu com a gente foi a perda da ideia de algo particularmente brasileiro que a gente parecia estar construindo. Estávamos elaborando um ser abstrato, brasileiro, que era indestrutível, que só ia se aperfeiçoando. Mas descobrimos que existe um antípoda também brasileiro. Um ser humano boçal, anti-intelectual, anti-espiritual, anti-transcendental, anti-poético, anti-humano, que tá disputando o pódio do ser brasileiro com esse outro. Seria um filme de nicho se fosse feito agora, para nós, saudosos desse ser incrível que pode ser o brasileiro que a gente sonhava, que dava pertencimento à Alex e ao Paco”, analisa Daniela Thomas.
Os anos Collor foram horríveis, mas acabaram. Espero que esse pesadelo que estamos vivendo agora também acabe em breve
A diretora continua: “faz uns 15 anos que vi Terra Estrangeira pela última vez. E ainda gosto muito. Reflete as nossas manias, gostos e ingenuidades, uma pequena joia de desejos bem realizados dentro da gramática do cinema e da emoção. Até hoje, ao ouvir a música, me transporta para um lugar feliz. Fala demais sobre essa questão de pertencimento, de não se identificar com o próprio país, e nem por isso perder essa identidade. O que somos uns com os outros, o que nos une? O que é ser brasileiro? E o que é ser estrangeiro?”
E o pai de toda essa história, Walter Salles, finaliza com uma lembrança recente. “Assisti ao filme numa retrospectiva no Festival de Lisboa e Sintra, no ano passado. Raramente revejo filmes que dirigi ou co-dirigi, há sempre o perigo de pensar que poderia ter feito melhor. Mas com Terra Estrangeira isso não sucedeu. Revê-lo trouxe uma série de boas lembranças. E me fez lembrar que os anos Collor foram horríveis, mas acabaram. Espero que esse pesadelo que estamos vivendo agora também acabe em breve…”. Esse desejo dele, aliás, é também o de todos nós.
TERRA ESTRANGEIRA 2?
“Acho difícil. É um filme específico. Principalmente, pelo que o Walter queria. É uma situação que não se repete”, reflete, sem hesitar, Flavio Tambellini. A Daniela Thomas também divide algumas ideias a respeito: “a gente brinca sobre isso. Uma vez, imaginamos que os dois chegavam em San Sebastian, iam para um hospital, se curavam e tiveram muitos filhos. Mas falando sério, isso não acontece. Não faz parte do nosso repertório. Tudo que havia para ser dito, está nele”.
Fernando Alves Pinto dá a última palavra: “num Terra Estrangeira 2, o Paco não teria morrido e sobreviveram, foram felizes para sempre. Os dois estão querendo fugir de alguma coisa que não está explícita, de algo que não está funcionando. Ela quer voltar para o Brasil, mas não quer também. Podia ser uma história bonita entre eles. Se ele conseguiu dar um jeito de não morrer naquele carro, é capaz que estejam juntos até hoje”, imagina ele”.
(Agradecemos imensamente aos cineastas Daniela Thomas, Flávio Tambellini e Walter Salles, e aos atores Fernanda Torres e Fernando Alves Pinto, que dedicaram horas conversando conosco para a realização dessa matéria)
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