A fim de valorizar o cinema realizado em seus arredores, o 16º Curta Taquary fez uma seleção de seis curtas-metragens pernambucanos e os colocou em uma mostra. Dois ficcionais, dois experimentais e dois documentais. Ao aproximar os exemplares de seus consanguíneos, por assim dizer, encontramos: a preocupação documental com a memória e o pertencimento; o investimento experimental num terreno fronteiriço com o da performance; e o ficcional representado por filmes mais descolados um do outro, com propostas, resultados e intenções completamente diferentes. De todo modo, se trata de uma oportunidade valiosa para entender melhor o cenário cinematográfico pernambucano, um dos mais pujantes do Brasil nos últimos anos, do qual saíram grandes nomes que dignificaram o cinema brasileiro até diante de plateias internacionais. É comum ouvir nos eventos especializados coisas do tipo: “deve ter alguma coisa na água do Pernambuco para vir tanto filme bom de lá”. Na verdade, não há nada mágico e/ou misterioso nessa riqueza, pois, do ponto de vista prático, ela é fruto dos investimentos estatais em fomento, formação, produção, distribuição e exibição. Bora conferir os resultados disso?
DOCUMENTAL
Nosso Morro, Meu Universo, de Carol Correia e Mannu Costa é parte documentário sobre a efervescência cultural do Morro da Conceição, no Recife, parte a respeito de Bhrendo Barbosa, jovem periférico que movimenta a cena das quadrilhas juninas. Os planos aéreos da comunidade expõem os contrastes entre as regiões centrais (repletas de prédios altos) e a periferia (com residências baixas e humildes). No entanto, o principal foco é Bhrendo, principalmente a sua disposição de remar contra dificuldades financeiras e eventuais preconceitos (é assumidamente homossexual) para liderar um grupo que mantém acesa a chama do folclore. Bhrendo é utilizado como um exemplo catalisador, alguém por meio do qual entendemos melhor o panorama cultural de resistência daquela comunidade. No entanto, por vezes o filme fica demasiadamente atrelado aos elogios a Bhrendo. Já o ótimo Pedro e Inácio começa com uma ressignificação valiosa. Antes engenho, tipo de negócio que carrega em seu histórico práticas abusivas, Camarazal agora é um assentamento do MST, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra. A Casa Grande, outro ícone de opressão, virou a sede do Assentamento Pedro e Inácio, assim batizado em homenagem aos homens assassinados no chamado Massacre de Camarazal, acontecido em 1997. O cineasta Caio Dornelas vai remontando com habilidade e capacidade sintética a vida desses ativistas que pagaram a luta por dignidade que resultou numa efetiva transformação social na região. A única fotografia de Pedro e Inácio está deteriorada. E Caio utiliza a restauração da imagem como dispositivo que entremeia os depoimentos, fazendo do processo de renovação um ato simbólico de preservar a imagem dos mártires. O grande mérito do filme é mesclar aspectos humanos, políticos e sociais sem que um deles sobreponha o outro.
EXPERIMENTAL
Experimental é aquele cinema que apresenta fórmulas, abordagens e o elementos que destoem dos padrões estritamente narrativos. Dentro dessa perspectiva, Dorme Pretinho, de Lia Letícia, é um filme classificado por sua produção como experimental. Do ponto de vista da imagem, a única coisa que vagamente foge do clássico são as tomadas caleidoscópicas de Lia de Itamaracá enquanto ela canta Dorme Pretinho. No mais, esse caráter experimental talvez tenha mais a vez com a dificuldade para categorizar o curta-metragem, metade videoclipe e metade o flagrante da conversa de mulheres marisqueiras. Portanto, é dentro desse espectro de difícil definição que se encontra o que podemos entender como experimental, ainda que o hibridismo seja plenamente absorvido pelas narrativas comerciais. Já em Corpo Onírico, de Marina Mahmood, o dado experimental está na ausência de trama, pois o curta-metragem é uma sucessão de performances em que o corpo feminino se expressa ludicamente. Uma senhora transita por um rio numa canoa; uma jovem cavalga sobre a ponte antes de mergulhar nua no mesmo rio onde adiante duas outras mulheres se juntam a ela, como se formassem uma tríade mítica; depois, esses mesmos corpos performam numa floresta repleta de fumaça, na qual se transformam em pontes por baixo das quais suas companheiras passam num bailado ritualístico; na sequência, uma coreografia na escuridão iluminada pelo fogo do chão e também por aquele preso aos braços das bailarinas. Uma peculiaridade: a versão à qual tivemos acesso possui áudio descrição, dispositivo de acessibilidade para pessoas com deficiência visual. Então, todas as cenas eram minuciosamente descritas por uma narradora, o que certamente conferiu uma textura diferente à experiência, sobretudo porque a voz da narradora se integra à proposta do curta-metragem.
FICCIONAL
Dentro das ficções da Mostra Pernambucana, em Quebra Panela, curta-metragem de Rafael Anaroli, o cinema se transforma numa maquinaria impositora de limites à protagonista. Solange é manicure e moradora da rua onde a equipe de filmagem está rodando um filme sobre cultura popular. De início, o cinema restringe Solange, pois qualquer palavra em timbre alto atrapalha os trabalhos. Além disso, clientes anunciam dificuldades de chegar para fazer a unha por conta da movimentação. É interessante que, na primeira metade do filme, o cinema surge extracampo, ou seja, fora da tela, sendo uma presença incômoda e restritiva anunciada por sons e pelo relato de terceiros. Aos poucos, porém, ele vai se fazendo visualmente presente, processo concomitante ao interesse de Solange por esse circo maravilhoso. Por sua vez, Estampido, de Djaelton Quirino, é um curta-metragem de execução rudimentar. A montagem tem falhas visíveis, os personagens mudam de direção repentinamente e o mais importante é a mensagem. Dois irmãos brincam no meio rural. Seu tio mora na cidade, comprou uma arma e induziu o pai deles a fazer o mesmo – o pai indignado com o porte da pistola rapidamente pensa em comprar uma espingarda. Embora o título do filme seja autoexplicativo, não há qualquer estampido em cena, apenas a sugestão de uma tragédia antecipada desde que o cineasta atrela criança e armas para anunciar o suspense. O resultado parece uma campanha publicitária de conscientização da população contra o porte de armas. Portanto, sobretudo num país que sobreviveu à presidência bélica de Jair Bolsonaro, a mensagem é vital e positiva, ainda que a execução deixe a desejar.
Formas distintas de fazer cinema, domínios variantes da linguagem cinematográfica, temas que se comunicam subterraneamente. Tudo isso faz da Mostra Pernambucana do 16º Curta Taquary uma das mais interessantes até agora desse evento que está caminhando ao seu encerramento.
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