Um dos aspectos mais interessantes de conferir um festival de cinema é identificar as conexões entre os filmes. Às vezes essas simetrias podem ser formais, por exemplo, a utilização comum de determinado equipamento, a alusão compartilhada a certo tipo de filme que serviu de inspiração, etc. Mas, noutras vezes, essas pontes podem ser temáticas. O Curta Taquary tem tradicionalmente como um de seus eixos principais a preservação do meio ambiente, assunto que, evidentemente, estará mais à frente de outros no processo de curadoria. Dentro disso, o Curta Taquary 2023 apresenta 12 mostras competitivas, entre elas a Mostra Agreste, dedicada a dar visibilidade para filmes feitos no agreste de Pernambuco. Os seis curtas-metragens que compõem esse recorte têm estilos e abordagens diferentes. Mas, olhares um pouco atentos perceberão que a curadoria os organizou num programa em virtude das relações. A primeira coisa importante a ser ressaltada é que quatro desses curtas são dirigidos e/ou codirigidos por mulheres. A outra é que as causas ambientais neles estão atreladas à memória e ao pertencer.
PERTENCIMENTO VS PROGRESSO
Boa parte dos curtas-metragens selecionados à Mostra Agreste do 16º Curta Taquary oferecem retratos alarmantes de transformações nas paisagens naturais, cujas narrativas são justificadas pela “necessidade do progresso”. Nesses filmes, é latente o aspecto enviesado do discurso que antagoniza progresso e passado, como um não pudesse ter qualquer ligação com o outro. Na ótica dos liberais e capitalistas de carteirinha, a memória e o afeto são elementos descartáveis diante da “necessidade” de expandir negócios ou algo que o valha. Em Estão Destruindo Quem Sou!, de Tainá Gouveia, a performance é utilizada como um forte dispositivo para atingir a conscientização. Ela entrecorta a abordagem documental clássica, vídeo os depoimentos de moradores da região duramente afetada pelas mudanças impostas por empresas e movimentos imobiliários na região. O principal prejuízo observado é o da água, cujos poluentes anulam a sua potabilidade. Tal performance consiste num corpo feminino representando uma espécie de personificação da natureza angustiada pela ação do homem. Esse dispositivo lírico também está presente em Ingá, de Monique Xavier e Felipe Correia, filme experimental que mostra uma mulher idosa rememorando o passado, lamentando pela alteração drástica dos cenários de sua juventude (especialmente os naturais), enquanto uma jovem faz performances à beira do rio, embrenhada na mata. O efeito é uma conexão entre esses dois corpos, como se um fosse o desdobramento ou a reverberação do outro, dentro de uma perspectiva em que o feminino está umbilicalmente conectado com a natureza afrontada por novos tempos. Filme unidos por ecos.
O TERRITÓRIO AFETIVO
Outro ponto de encontro de alguns exemplares da Mostra Agreste do 16º Curta Taquary é a reflexão do território como espaço de construção de lembranças e manutenção de sentimentos. Raízes do Bandeira, de João Lucas e Adelmo Teotônio, é um documentário que observa os lastros históricos do Bandeira, localidade situada na zona rural de São Domingos/Brejo da Madre de Deus, em Pernambuco. O local é resultado das invasões holandesas no estado, com população derivada dessa miscigenação entre brasileiros e estrangeiros. O filme valoriza os causos de um passado glorioso, basicamente trazendo depoimentos de moradores e ex-moradores idosos, o que, somado ao aspecto rudimentar das residências de barro do Bandeira, remetem a uma ideia de tempo transcorrido. É um lançar de luzes sobre algo que merece (e deve) ser preservado. Curiosamente, nele vemos uma cena musical cantada pelo artista Fábio Xavier, músico que assina o videclipe A Botija. Trata-se de um pequeno filme sem diálogos que recorre a figuras do imaginário cultural nordestino para contar a história de um sertanejo que recebe a visita de três criaturas espirituais que lhe indicam o caminho de um tesouro enterrado. O desfecho deixa a desejar pela reutilização de uma estratégia para lá de surrada (que não vamos contar aqui), mas o filme tem charme na junção entre som e imagens. Além de Fábio, os filmes têm em comum a utilização de drones para garantir planos aéreos que dimensionem a natureza nesses contextos.
No melhor dos exemplares do recorte, Filhos Ausentes, de Jansen Barros e Virgínia Guimarães,
temos uma jovem de volta à sua cidade natal a fim de se despedir do pai que acabara de falecer. Ela é um corpo ausente, a voz poética e saudosa que vai costurando fragmentos de lembranças manifestadas por meio de imagens de arquivo com textura característica, discurso oral e entonação de saudade. Ao mesmo tempo, o filme discorre sobre a passagem do tempo, as mudanças urbanas, de certa forma associando a morte do homem ao fluxo ininterrupto de finitudes e novas vidas que a elas sucedem. Um curta muito criativo, com intrusões de animação que trazem um aspecto lúdico para esse monólogo em que uma filha mira a cidade modificada como se ela fosse a personificação do pai que acabara de partir. Por fim, ainda dentro da valorização da arte como manifestação cultural, temos Alto das Flores, de Daniele Leite, documentário sobre artesãs da região do Alto do Moura. Mulheres circundam a mesa de trabalho e falam das relações sagradas com o barro que significa subsistência financeira, mas também uma forma de concretizar impulsos criativos e artísticos. As artistas falam com muita reverência de seu ofício, assim expondo a dimensão cultural de uma atividade manual laboral.
Mesmo contando com filmes de forças cinematográficas variáveis – uns mais, outros menos interessantes e inventivos do ponto de vista da linguagem –, a Mostra Agreste do 16º Curta Taquary oferece um panorama muito coeso em que as denúncias sobre o aterramento da cultura dos povos estão umbilicalmente ligadas à consciência da necessidade da resistência.
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Obrigado pela resposta, sim , concordo que foi um exagero de minha parte e peço descupas.
Olá, Fábio Primeiramente, obrigado pela leitura e comentário. Não comentei a estratégia que me pareceu "surrada" para evitar de estragar a surpresa que ela ocasiona, ou seja, para evitar prejuízos a quem leu o texto antes de ver o clipe. Mas, realmente eu poderia ao menos ter sugerido alguma coisa para deixar isso mais claro. Até aí tudo bem. Porém, chamar o meu artigo de desonesto (que não é uma crítica, mas um breve e superficial comentário dentro de um artigo de mostra) é ir além do aceitável como forma de estabelecer diálogo, você não acha?
O meu nome é Fábio Xavier, sou o produtor de primeira viagem do video clipe A botija apresentado no festival. O critico falou: que o filme deixou a desejar pela reutilização de uma estratégia para lá de surrada (que não vamos contar aqui), achei a crítica desonesta pois não fala de fato o que deixou a desejar. Assim é fácil criticar.