A pandemia da Covid-19 mudou drasticamente a configuração dos festivais de cinema. Sem as salas e demais espaços de exibição – o fechamento deles foi recomendado por autoridades de saúde –, como os eventos continuariam sem a migração temporária ao âmbito online? Para alguns, se trata de uma mudança pontual e passageira, mas para outros é apenas o começo de uma nova era: a dos acontecimentos, ao menos, híbridos. De toda forma, uma das características dos festivais de cinema é a profunda conexão com as suas regiões, a possibilidade de palco e tela aos artistas locais. Uma das mostras de maior destaque do 15º Curta Taquary é justamente a Pernambucana, que nos oferece a oportunidade (agora estendida ao Brasil todo) de ver filmes feitos no estado da bela Taquaritinga do Norte. Há diversidade de propostas, abordagens e execuções. Por exemplo, temos entre os filmes selecionados uma produção singela que não esconde a própria inocência. Vivências, de Everton Amorim, mostra um avô contando ao neto algumas aventuras de infância. Se trata de algo menos enfático e maduro do que o excelente Per Capita, de Lia Letícia, no qual há acontecimentos supostamente aleatórios que evocam os cinemas de David Lynch e David Cronenberg num processo instigante. Ler aqui a nossa crítica completa.
Insurreição, de Okado do Canal e Rita de Cácia Oenning da Silva, traz corpos, movimentos, música e pinturas numa evocação da ancestralidade. Não há trama, mas uma sucessão de pequenas apresentações num fluxo descontínuo. O choque entre imagens e sons ganham corpo a partir do acúmulo de fragmentos. Ainda dentro dessa ideia menos convencional de fazer cinema temos O Movimento dos Pássaros, de Bako Machado. Videopoema com pouco mais de um minuto de duração em que corpos humanos e de pássaros são fundidos para aludir poeticamente à lógica da migração. Nem tanto pela pouca duração, mais por sua natureza meramente ilustrativa, o filme talvez seja o menos memorável da mostra Pernambucana do 15º Curta Taquary. Algo que nem de longe pode ser dito de Angustura, de Caio Sales, cuja proposta semelhante, no entanto, tem um resultado destoante do colega de seleção. Se trata de uma carta em formato audiovisual. A redução do quadro, a disputa de “território” entre imagens e palavras e a proposital falta de coerência aparente em meio ao seu processo de geração de sentidos torna o resultado um esforço instigante de fazer poesia utilizando o cinema como valioso suporte. De qualquer maneira, elas são obras que se conectam.
EM TEMPOS DE PANDEMIA…
Um dos assuntos recorrentes nos filmes da mostra Pernambucana do 15º Curta Taquary é a pandemia da Covid-19. Em pelo menos dois dos curtas-metragens essa verdadeira tragédia de proporções globais é um elemento fundamental às questões debatidas direta ou indiretamente. Ethxô Nandudya, de Fernando Matos, Narriman Kauane, Raryson Freitas, Tayho Fulni-ô e Thales Matos, mostra o povo indígena Fulni-ô sendo duramente afetado pela doença. Os idosos têm dificuldade de permanecer em casa. Nem mesmo ao receber notícias alarmantes via televisão eles aderem facilmente aos protocolos recomendados. Já do ponto de vista econômico, o filme toca na vulnerabilidade que atingiu, sobretudo, os artesãos que não mais podiam ir aos grandes centros para vender sua produção. Embora seja um filme simples, que somente costura depoimentos, ele mostra como os povos originários situados numa cidade interiorana enfrentam uma crise sem precedentes nas últimas décadas. Ele forma uma bela sessão dupla com Disputa, de William Tenório. Neste, há a movimentação eleitoral na pequena cidade de Ingazeira, no interior do Pernambuco, em meio à pandemia da Covid-19. Atos com aglomerações irresponsáveis (repletos de pessoas sem máscara) são coibidos apenas por decisões judiciais. Uma disputa ferrenha de cabos eleitorais e simpatizantes que lotam as estreitas ruas de Ingazeira quando o recomendado era evitar terminantemente as multidões. Fica implícita a utilização da população como massa de manobra de candidatos inescrupulosos.
GUARDIÃS NORDESTINAS
Mas, o principal dos temas que volta e meia surge entre os filmes da mostra Pernambucana do 15º Curta Taquary é o que neste artigo chamaremos de Guardiãs Nordestinas. São curtas sobre mulheres que mantém vivos bens imateriais de valor incalculável. Eu Sou Raíz, de Cíntia Lima e Lílian de Alcântara, é sobre Maria José Gomes dos Santos, conhecida como Mariinha. Ele enfatiza a luta dessa mulher resistente que preserva as tradições quilombolas, tais como cantos, danças e benzeduras. Mariinha é uma personagem fascinante que ainda reflete sobre a ciência do pertencimento ao dizer que até a geração anterior à sua não existia essa noção de origem. Já em Eu Faço a Minha Sambada, de Juliana Lima, conhecemos Dona Glorinha do Coco, figura imprescindível do Coco (mistura de ritmos africanos e bailados indígenas nascido nos engenhos de açúcar da região canavieira do Pernambuco). Pena que o curta de cinco minutos seja, na verdade, apenas uma apresentação da personagem, com uma revoada ligeira sobre sua existência. Certamente, Dona Glorinha do Coco, à beira dos 100 anos, merecia um maior tempo de exposição nas telonas e telinhas. Parecida com ela é a Dora, a protagonista de Dona Dora. A Mística do Boi, de Adalberto Oliveira. Doralice Barreto da Silva, popularmente conhecida como Dona Dora, é a fundadora do Boi Rubro Negro, bloco carnavalesco que se tornou parte indissociável da cultura de Camaragibe. No entanto, aqui a personagem é desenhada a partir dos depoimentos alheios, ou seja, sabemos de sua importância por meio dos testemunhos.
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