Por um triz a Mostra Internacional do Curta Taquary 2022 não pode ser chamada de Mostra Latino-Americana. Não fosse pela presença de um curta-metragem francês, teríamos apenas filmes vindos de países que são nossos colegas continentais. E o grande destaque entre essas produções da América Latina é, sem dúvida, o chileno Bestia, de Hugo Covarrubias, indicado ao Oscar 2022 de Melhor Curta-Metragem de Animação. A escolha pela Academia de Artes e Ciência Cinematográficas de Hollywood certamente foi fundamental à visibilidade dessa pequena pérola que está longe do ideal pueril frequentemente associado às animações – sim, ainda tem gente acreditando que animação é apropriado somente às crianças. A história se passa no Chile agitado pela ditadura militar (tão sangrenta e autoritária quando a que desgovernou o Brasil por 21 anos). A ambientação é perceptível por determinados detalhes dos cenários, bem como por outras concepções que sugerem o passado. Por exemplo, a protagonista fuma em pleno voo e abre um compartimento para o descarte das cinzas entre as poltronas do avião. No entanto, o mais relevante aqui nem é isso, mas a coragem de tocar em assuntos espinhosos, social e intimamente falando, numa narrativa envolta por um tom macabro. Em stop-motion, o filme ressalta as texturas para falar de morte e perversidade.
Temos acesso à história por uma fissura na cabeça da protagonista de porcelana – fratura que também é, simbolicamente, a do Chile sob jugo dos milicos. Bestia tem cães decapitados, cadáveres violados e alguém se satisfazendo sexualmente com o auxílio da língua de um cachorro. Um filme duro que dita o dado reflexivo de boa parte dos demais selecionados para a Mostra Internacional do Curta Taquary. Aliás, outra coisa que é importante pontuar: os filmes aqui agrupados são documentários e/ou animações. Alguns são quase ilustrações e/ou abstrações, como Ambar, de Melina Menendez e María Belén Tagliabue, curta animado argentino em que a realidade simbólica embala um pequeno conto sobre o ciclo da vida. Vale, basicamente, pela beleza da técnica. O também argentino Una Carta de Letícia, de Irene Blei, traz à tona a carta enviada por uma jovem antes de ela ser sequestrada e nunca mais aparecer. Já La Creación Segun La Madre Tierra, de Aldana Loisea, outra animação vinda de nossa comadre Argentina, é interessante porque utiliza moldes de barro para fazer uma fábula sobre a criação do mundo e discutir a inserção da arte como motor de propulsão da vida. E essa ponderação sobre aspectos da existência está também presentes no documentário peruano Mamapara, de Sebastián Pinto e Rosario López. Nele, a vivência de uma mulher simples que vende produtos na esquina de uma rua deserta, mas que faz questão de manter a dignidade. Aliás, outro filme (assim como Bestia) em que há uma relação fundamental entre uma mulher e seu estimado cão.
CONSCIÊNCIA AMBIENTAL
No entanto, os grandes assuntos, aqueles que permeiam a maior parte dos selecionados à Mostra Internacional do 15º Curta Taquary, são as causas ambientais. No único europeu, o francês Migrants, de Hugo Caby, Antoine Dupriez, Aubin Kubiak, Lucas Lermytte e Zoé Devise, há uma metáfora da crise imigratória mundial. De quebra, o filme vislumbra o preocupante tópico do aquecimento global (que pode ser entendido como metáfora das ocorrências que obrigam pessoas a saírem de suas casas). Os ursos protagonistas são feitos de tecido e essa escolha estética ganha um porquê amargo no encerramento. Aliás, é curioso como esse filme estabelece uma ponte com Bestia justamente pelo fato de utilizar texturas bem específicas para construir seus personagens – respectivamente, o tramado dos ursos no europeu e a porcelana das bonecas no latino-americano. Já a animação argentina Bosquecito, de Paulina Muratore, apresenta a simultaneidade do crescimento de uma pequena planta recém-brotada (até se transformar numa árvore resistente) e de uma menina pequenina (até ela virar uma mulher adulta). Ele se encerra com o alerta contra o desmatamento que causa enchentes, nesse ponto se aproximando do seu conterrâneo Ley de Humedales, de Marina Lisasuain, Mauricio Manassero, nada mais do que uma vinheta publicitária de pouco mais de 30 segundos que mostra a destruição do cenário natural e também acaba com a divulgação de um alerta na tela sobre a necessidade da aprovação de uma lei contra queimadas indiscriminadas e tão nocivas ao meio ambiente.
ECOLOGIA ATRELADA AO POVOS ORIGINÁRIOS
Dentro dessa preocupação com o meio ambiente, a Mostra Internacional do 15º Curta Taquary tem uma subcategoria sintomática do recorte latino. Em pelo menos três filmes há uma investigação das mudanças climáticas em convergência (num diálogo) com a identificação dos efeitos disso para os povos tradicionais do continente. Nesse sentido, a mais instigante das abordagens é a do documentário peruano 13 Grados Sur, de Francesco Garello e Manuel Peluso, que encara em 30 minutos o impacto das alterações climáticas no povo Q’ero, considerado o último remanescente dos Incas, situado na região montanhosa dos Andes. Eles são xamãs capazes de prever o clima, mas até isso está sendo abalado pelas variações drásticas do clima, resultado da sanha extrativista/produtiva humana. O filme ainda observa a reponsabilidade das grandes mineradoras na alteração da paisagem andina, inclusive com a expulsão de povos originários que são os verdadeiros donos das terras exploradas. A construção de habitações “modernas” para abrigar os filhos desterrados dessa terra é apresentada como uma evidência concreta da falta de respeito com as culturas ameaçadas pela ganância das corporações multinacionais. Algo muito semelhante é visto na animação chilena Choyün, Brotes De La Tierra, de Sebastián Pinto e Rosario López. Nela, uma mapuche narra os passos da destruição da natureza local pela voracidade das empresas madeireiras e pondera melancolicamente sobre como isso afeta profundamente não apenas o ecossistema local, mas também uma vivência ancestral de seu povo.
Por fim, sem o recorte ambiental como guarda-chuva, o mexicano 68 Voces, de Gabriela Badillo, é uma coleção de micro curtas com aspectos das origens de várias populações com raízes ancestrais. O intuito é enfatizar a tradição oral, um bem imaterial de valor incalculável que está em risco diante das prioridades mercantis das empresas que perseguem lucros avidamente. Como tinha acontecido na Mostra Brasil, aqui na fatia Internacional do Curta Taquary é possível identificar a comunicação entre alguns filmes de propostas e suportes distintos. Aliás, especialmente as animações sucintas (com menos de cinco minutos) funcionam melhor como peças de um painel então possibilitado pela curadoria do que isoladamente. Já os documentários têm um desenvolvimento mais consistente, seja do ponto de vista do levantamento das informações (caso de 13 Grados Sur) ou da capacidade de observar sensivelmente um recorte de vida que espelha tantas em semelhante desamparo (caso de Mamapara). E, se fizemos um esforço de aproximação entre eles e os filmes da Mostra Brasil, há certamente marcas convergentes que apontam para preocupações e/ou inquietudes análogas. Tais pontos de contato estão mais evidentemente visíveis na observação dos povos originários latino-americanos. Há a ciência do risco que os indígenas correm numa atualidade repleta de elementos e agentes perigosos à sua existência e à preservação de sua memória.
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