Nascido no começo da década de 1980 na Bélgica, o cineasta Bas Devos estudou cinema na LUCA School of Arts e, como boa parte dos realizadores, começou sua carreira fazendo curtas-metragens. Desde a estreia no formato, chamou a atenção de críticos e curadores dos principais festivais europeus em virtude de uma forma singular de trabalhar as bordas dos acontecimentos, se atendo frequentemente ao revelado por gestos aparentemente menores dentro de um contexto. Recentemente, chegou ao Brasil (via Supo Mungam Plus) seu mais recente longa, Trópico Fantasma (2019), que teve a honra de encerrar a Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes de 2019. O filme mostra uma mulher muçulmana numa longa jornada madrugada adentro, isso depois de cochilar no metrô e não encontrar alternativa de retorno à casa senão a pé, lidando com transeuntes, trabalhadores e vagantes noturnos. Conversamos por e-mail com Bas Devos para saber um pouco mais sobre suas motivações ao realizar essa meditação profunda sobre a convivência numa grande capital europeia. Confira esse bate-papo exclusivo.

 

Porque era importante ter uma personagem muçulmana como protagonista?
Há uma grande população muçulmana em Bruxelas. No entanto, ela é totalmente sub-representada tanto em filmes quanto em séries de TV. E, se um personagem muçulmano é retratado, ele quase sempre é estereotipado. Conheci muitas mulheres muçulmanas enquanto estava preparando meu segundo longa-metragem. Eram as mães dos meninos com quem eu trabalhava na ocasião. Fiquei impressionado com elas. Foi ali então plantada a semente para fazer um filme sobre uma delas. Queria realizar algo a respeito de uma mãe, mulher, trabalhadora. Acho que não estou na posição certa para fazer um filme sobre ser muçulmano e o que isso pode significar para a identidade de alguém. Mas, trabalhar num filme sobre uma mulher que, por acaso também é muçulmana, me pareceu valioso.

 

Como foi o trabalho com Saadia Bentaïeb, visto que grande parte da potência do filme não está nas ações e nas reações, mas numa espécie de residual. Você deu a ela uma compreensão geral ou apenas moldou cenas específicas que, encadeadas na montagem, geraram sentidos?
Esse filme surgiu num espaço de tempo curto. Senti que deveria confiar nas minhas experiência e intuição. Tive tão pouco tempo para discutir, refletir, aprofundar… Apenas tentei me sintonizar e sentir o caminho ao escrever e posteriormente filmar. Nem sempre sabia realmente se minhas escolhas eram corretas, mas confiava que elas fariam sentido de alguma forma. Ao trabalhar com Saadia, era a mesma coisa. Quase não tínhamos preparação, apenas nos conhecíamos, conversávamos e gostávamos um do outro. Essa acabou sendo a melhor base possível ao filme. O significado surge de como a protagonista se move, fala e respira e ela entendeu isso muito bem. Conhecê-la foi um grande presente. Ainda sou muito grato por isso e gostaria de poder vê-la com frequência. Sinto falta de Saadia.


Ambientar o filme à noite aumenta seu contorno reflexivo, pois estamos numa cidade menos efervescente, na madrugada pela qual transitam apenas figuras específicas. Também te parecia essencial evitar um cenário dispersivo por sua miríade de sons e movimentos?
Na verdade, não. Fui atraído pela noite principalmente pelo desejo de falar sobre o lado obscuro da economia que precisa funcionar 24 horas por dia, sete dias por semana. As pessoas acordadas à noite estão assim por necessidade econômica ou por dever. São invisíveis e frequentemente colocadas à margem, mas nos permitem dormir em paz.


Em vários momentos do filme, coisas perdem sua função (o ônibus quebrado, o caixa eletrônico sem saldo, a máquina sem chá). Isso faz parte de uma ponderação sua a respeito da instrumentalização das coisas e, por conseguinte, também das pessoas?
De certa forma. Mas, eu estava procurando pequenos obstáculos diários que forçariam Khadija a se conectar e lidar com as situações. Portanto, as coisas que se quebram também têm uma – no sentido narrativo – funcionalidade.


No fim das contas, fiquei com a impressão de que você está mais interessado em meditar sobre a intermitência das mudanças, num sentido existencial e filosófico, do que seguir uma tendência atual do cinema de olhar com melancolia a reconfiguração das paisagens, das cidades e dos locais a serem habitados. É mais ou menos por aí?
Não sei se entendi bem a pergunta, mas meu desejo principal era falar de nós, seres humanos frágeis, de nossa interconexão e da conexão estabelecida com o que nos cerca. Talvez não seja esta a hora ideal para pensar isso?


Você conhece o cinema brasileiro? Se lembra particularmente de algum filme nosso ao qual assistiu mais recentemente?
Não sei muito sobre o cinema brasileiro! Me sinto envergonhado por isso. Em parte, devido à Covid-19, perdi muitos festivais, minha principal fonte de novos e emocionantes filmes. Correrei atrás do tempo perdido, prometo.


Seu filme está chegando ao Brasil diretamente em streaming, inclusive porque nosso país ainda está sofrendo muito em virtude da pandemia. Mas, te parece irreversível essa gradual distribuição prioritária por meios digitais, haja vista a ocupação ostensiva das salas de cinema por filmes de apelo comercial?
Claro, existem tantos filmes emocionantes que não encontram distribuição nas telas limitadas. Cada vez mais serviços de streaming de nicho serão a maneira de descobrir essas joias (ocultas). Devemos, entretanto, continuar lutando pela tela grande, pela sala de cinema, pela experiência comunitária. Histórias que desafiam a lógica comercial são importantes. São histórias que, por definição, devem ser reunidas e apresentadas comunitariamente.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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