O jovem Kelner Macedo é uma das grandes revelações do cenário cultural brasileiro dos últimos anos. Desde que despontou como protagonista de Corpo Elétrico (2017) – filme premiado no Brasil e no exterior, em festivais em Guadalajara, Los Angeles, Lisboa, Bilbao e São Paulo, entre outros – o rapaz nascido na pequena Rio Tinto, no interior da Paraíba, tem cada vez mais se preparado para ocupar todas as frentes. Entre curtas e longas ainda inéditos e uma atividade constante nos palcos, tem marcado presença também na televisão, como uma participação que chamou bastante atenção na série Sob Pressão (2019), da Rede Globo, e agora como um dos personagens principais de Todxs Nós (2020), que estreou no último domingo na HBO. Preocupada com questões de representatividade e as múltiplas manifestações da sexualidade humana, o programa criado por Vera Egito e Daniel Ribeiro deverá acompanhar, ao longo dos próximos episódios, o cotidiano de três amigos – um rapaz gay, uma garota heterossexual e uma pessoa não binária – em plena São Paulo. Para saber um pouco mais sobre o projeto, conversamos com exclusividade com o ator. Confira!
Kelner, quem é o João Vinícius? E o que ele representa em Todxs Nós?
O João Vinícius, ou apenas Vini, é um homem cis gay de 25 anos, que mora no centro de São Paulo com a amiga Maia. Ele trabalha no teatro, pois é ator, mas cuida também do café, se envolve com a administração daquele espaço. Aos poucos, vai entendendo que prefere mais esse lado exato da vida, dos números, da articulação das coisas, ao invés dessa ocupação mais artística, quando está atuando. Na real, ele irá começar a perceber que tem vivido até ali as projeções que a mãe criou para ele, e não quem ele é de verdade. Por isso, vai partir em busca desses sonhos, que são dele, e não da mãe. É um cara que tem desejos de uma vida mais tradicionais, heteronormativos, um pouco conservadores, até. A gente acompanha essa transformação a partir da chegada de Rafa, prime dele que vem do interior e o ajudará a romper barreiras de pensamentos, da binaridade das coisas. Será essa a jornada dele e que iremos acompanhar nessa temporada de estreia.
O Vini é um rapaz gay, claro, mas não me pareceu um tipo óbvio, cheio de discursos. Ele soou como a ponte com o espectador, como se também tivesse que percorrer essa curva de aprendizado e adaptação. Você concorda?
É muito bom ouvir isso, obrigado. Fico feliz, de verdade, pois não é algo óbvio, que todo mundo pode identificar. Acho que as três protagonistas são muito importantes dentro da estrutura narrativa da série, mas cada uma no seu lugar. O Vini traz consigo uma grande mudança de pensamento. É como você falou, se trata de um cara gay, mas que está negando a caixinha que reservaram para ele. Aquilo que diz que todo gay tem que ser militante, dar pinta, close… ele não, vai na posição contrária. Não quer ser apenas o que as pessoas esperam que ele seja. Vem negar esse lugar pré-estabelecido. Desde a profissão até relacionamentos.
Você estreou no cinema, e está acostumado a fazer teatro. O formato televisivo é muito diferente?
Olha, confesso que um pouco, sim. O sistema de produção da televisão é mais agitado. Temos um trabalho muito corrido, é preciso pegar logo o personagem, pois de outra forma você se perde. Mas, acima de tudo… como posso falar… primeiro, muda a linguagem, né? É diferente de tudo que havia feito até aqui. Talvez seja um pouco mais próximo da minha trajetória e experiências que tive no teatro. Todxs Nós é uma comédia dramática, enquanto que no Corpo Elétrico era outra construção, por exemplo. A questão da linguagem a ser empregada é que me pega mais forte. O Sob Pressão também estava em outro lugar, pois tinha uma tensão, muito mais dramático. O importante é conseguir equilibrar. Além de ser tv ou cinema, é a escolha da linguagem que me chama atenção. No Todxs Nós, queremos falar de coisas sérias, mas brincando… teremos altos e baixos, com diferentes graus de energia. O que mais me atraiu foi isso, essa curva da linguagem.
Em Corpo Elétrico, seu primeiro filme, você encarou o desafio de ser o protagonista. Em Todxs Nós, como foi lidar com o fato de estar ao lado de outros personagens que possuem igual destaque?
Foi maravilhoso. Tem uma coisa que converso muito com os atores, quando estamos trabalhando, que é poder dividir, e me pego muito nesse lugar. Quando estamos no set, muitas vezes, só temos uns aos outros. Na hora de gravar uma cena, ou me concentro, e foco na minha energia, ou pode não funcionar. Dividir esse protagonismo é muito importante, portanto. Afinal, todo personagem tem sua importância. Nesse sentido, dividimos tempo, vida, escolhas, trabalhamos muito junto. Teve muita discussão, os três, sobre como poderíamos colaborar com cada um desses personagens.
Como foi participar da construção de Todxs Nós? O quanto vocês, do elenco, puderam participar desse processo de criação?
Foi um processo muito horizontal. E fala com bastante sinceridade, pois muitas vezes não é assim que as coisas são. Acontece seguido de você receber o roteiro já pronto, e você tem apenas que ler o que está escrito, como se fosse algo imposto, sem acrescentar nada. Aqui, felizmente, não foi assim. A Vera e o Daniel falavam sempre para ficarmos à vontade para mudarmos o que fosse necessário, desde uma palavra, a maneira de dizer, ou até mesmo situações. O Vini é muito diferente de mim, para você ter uma ideia. Pensamos, agimos de maneiras distintas. Isso me colocou em muitos momentos em crise! Tipo, lia o roteiro, e pensava “sério que ele vai fazer isso?”. Eu questionava, levava essa preocupação adiante. O processo de preparação foi muito importante para delimitarmos esses lugares, sempre juntos.
Você precisou fazer algum tipo de laboratório? Teve algo que leu no roteiro que desconhecia, que precisou ir atrás de mais informações?
Tem todo um preparo de referências, que a própria série teve desde o começo e vinha já dos diretores. Enquanto linguagem, tive me acostumar com essa coisa da comédia dramática. Foi uma construção muito intuitiva. Pois era uma busca para entender esse corpo, de alguém que fazia teatro, mas que a cabeça era de exatas. A minha formação é completamente diferente. Mas, parte disso, já existia dentro de mim. Por isso mesmo, precisava trazer esses ruídos para a minha experiência, com memórias, observação de corpos que não estavam tão abertos. Veio muito da minha vivência, do que observava em amigos, colegas, gente que conhecia do curso de teatro… tudo isso veio à tona de um ou outro jeito, até que cheguei nesse Vini.
O que podemos esperar do Vini nos próximos episódios de Todxs Nós?
Olha, o Vini é um personagem muito divertido. Ele é ranzinza, reclama de tudo, está sempre meio de mau-humor. Por outro lado, é doce, tem uma ternura muito característica, demonstra a todo instante sua preocupação com as pessoas. Ele é muito próximo da Maia, e vai mostrar essa mesma empatia com e Rafa. É uma pessoa de verdade, que sofre e goza, que tira muita onda, que é ácido nos comentários. Mas, ao mesmo tempo, está aberto e envolvido numa grande transformação. Uma pessoa de verdade, que está realmente vivendo esse mundo tão frenético pelo qual todos nós passamos.
Num Brasil como o atual, com um governo de extrema-direita no poder, o que uma série como Todxs Nós representa?
Tenho pensado muito sobre isso, e da importância dessa série nesse momento. Estamos vivendo, no Brasil, um período de muito retrocesso, de assassinato dos nossos direitos. Acho que Todxs Nós traz uma possibilidade de uma nova vida, de perspectiva sobre como podemos encarar as coisas. Desde que recebi o roteiro, começou a me dar uma esperança, de alguma coisa que poderia transformar essa realidade que nos cerca. É importante que nós, e outros como a gente, tenha mais espaço, que essas pessoas estejam no protagonismo da dramaturgia. A nossa comunidade é imensa. Como as pessoas negras, que são maioria no Brasil, por exemplo. Estamos aqui, e não sairemos. A série vem como um raio de luz no meio de toda essa escuridão.
(Entrevista feita por telefone em março de 2020)
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