Rodrigo de Oliveira é um dos nomes de destaque do novo cinema brasileiro. Nascido em Volta Redonda, Rio de Janeiro, em 6 de fevereiro de 1985, começou no cinema já causando impacto: com apenas 26 anos, assinou seu primeiro longa como diretor, As Horas Vulgares (2011), no mesmo ano em que estreava também como roteirista, com o documentário Quebrando o Tabu (2011), de Fernando Grostein Andrade e Cosmo Feilding-Mellen. O segundo foi premiado como a melhor produção do gênero pelo júri popular no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, enquanto que o primeiro passou por vários festivais, como a Semana dos Realizadores e a Mostra de Tiradentes. Seu trabalho seguinte foi o roteiro do drama Exilados do Vulcão (2013), de Paula Gaitán, grande vencedor do Festival de Brasília, para seguir com uma volta ao trabalho mais autoral como realizador em Teobaldo Morto, Romeu Exilado (2015). Pois foi depois desse longa que recebeu uma missão muito especial: homenagear os oitenta anos – e sessenta de carreira – de um dos maiores nomes do cinema nacional: Paulo José. O resultado é o documentário Todos os Paulos do Mundo, feito em parceria com Gustavo Ribeiro e já em cartaz nos cinemas. E nós conversamos com o diretor, que nos contou mais sobre o projeto. Confira!
Olá, Rodrigo, tudo bem? Como surgiu a ideia dessa filme-homenagem ao Paulo José?
Foi curioso, pois cada um morava num lugar diferente. Eu em Vitoria, aqui no Espírito Santo, enquanto que a Vania Catani, responsável pela produção, tá no Rio de Janeiro, e o Gustavo Ribeiro, que co-dirigiu o longa comigo, em São Paulo. Porém, nós três compartilhávamos, cada um ao seu jeito, de um amor muito profundo pelo Paulo José. Mas isso era algo que nem sabíamos um a respeito do outro. Afinal, nosso contato era mais profissional, estava cada um em sua cidade. A ideia surgiu do Gustavo, que ligou para a Vania, mesmo sem saber da relação dela, mas por causa do trabalho dela como produtora. Após assistir ao O Rei da Noite (1975), ligou para ela e sugeriu: “vamos fazer um documentário de montagem sobre o Paulo?”. Ao mesmo tempo, eu já estudava a carreira dele, havia sido apresentado a ele pela própria Vania, e talvez por isso ela tenha tido a ideia de nos unir.
Mas vocês três nunca haviam conversado a respeito antes?
Não, foi tudo muito rápido. No ano passado, o Paulo comemorou seu aniversário de 80 anos, e queríamos que o filme fosse como um presente. Eu e o Gustavo, para teres ideia, nos conhecemos pessoalmente somente no dia em que assinamos para fazer o filme. É mais uma dessas habilidades da Vania, pois surgiu ali uma parceria que deu muito certo. Depois, é claro, fomos pedir a benção para o Paulo, e até a estreia, no Festival no Rio, se passaram apenas onze meses. Foi incrível.
Assistir a Todos os Paulos do Mundo nos remete a outros documentários recentes, como Cinema Novo (2016), do Eryk Rocha, e Histórias que Nosso Cinema (não) Contava (2017), da Fernanda Pessoa. Por que fazer um filme nesse estilo ‘colcha de retalhos’?
Havia uma questão central muito importante: a gente não iria conseguir falar com o Paulo. Digo, fazer uma grande entrevista com ele, pois, por causa da doença, está mais complicado. Então, por que não acreditar que o trabalho dele fala por conta própria? O Paulo é um desses atores que sempre trabalhou, constantemente, dos anos 1960 pra cá, e nunca parou. Conviveu com muita gente diferente, estrelou filmes emblemáticos, passou por todos os movimentos, teve uma atuação muito presente também na televisão. Por quê não contar a história, a verdade do Paulo, qualquer que seja, através da mentira que ele produziu, ou seja, da ficção? A gente tinha certeza que encontraria essa linha narrativa. Um ator como o Paulo, quando faz um filme, obviamente que se preocupa com aquele personagem específico que irá interpretar, mas também esta falando de si mesmo, das condições que envolveram cada produção. Desde o começo, havia essa confiança de que os filmes responderiam muitas coisas para nós, que se espalhavam por toda a biografia dele. Talvez uma entrevista, ou mesmo uma série de conversas, não conseguisse ir tão a fundo.
Imagino que a pesquisa tenha sido imensa. Como foi esse trabalho?
A primeira coisa que fiz, quando li a tua crítica aqui no Papo de Cinema, foi avisar nossa pesquisadora, a Amanda Baião. Porque você comenta sobre esse trabalho, que, realmente, foi fundamental para chegarmos ao filme que estávamos procurando. A parte de cinema, em si, nem demandou muito tempo. Queríamos lidar com todos os filmes. Só houve um que não conseguimos assistir, justamente um dos primeiros, feito no Rio Grande do Sul: Gaudêncio: Centauro dos Pampas (1971). Não conseguimos encontrar uma única cópia em condições, acreditamos que esteja perdido, irrecuperável. O que é uma pena. No entanto, com todos os outros, foi tranquilo.
Mas Todos os Paulos do Mundo não é composto apenas pelos filmes que ele fez, não é mesmo?
Exato. O trabalho de pesquisa pesado foi nos acervos de entrevistas. Uma coisa que sabíamos desde o começo é que nosso filme seria 80% na voz dele, baseado em materiais de arquivo, cinema, tv e teatro, mas costurado exclusivamente pelas palavras do próprio Paulo, porém nas vozes dos seus principais parceiros. Ele está, hoje em dia, com a voz meio tímida, por causa do Parkinson. Não teria como entrevistá-lo. Então, tudo que não pudesse ser aproveitado, mas nos interessasse, seria gravado por outros. Assistimos a praticamente tudo que ele fez, entrevistas de 1959 até 2016. Tudo! Em áudio, televisão e rádio, e também o que tinha sido para veículos impressos. O volume era muito grande.
Em que momento perceberam que não poderiam usar apenas a voz do Paulo?
Justamente quando nos deparamos com esse material impresso e com outros que não haviam sido preservados. Por isso, decidimos chamar esses atores, amigos, familiares e colegas, para emprestarem suas vozes. Aí foi muito profundo. O Paulo, desde cedo, talvez até por causa da geração que faz parte, sempre foi um ator-pensador. Ele fez parte de uma turma de artistas que eram pensadores do Brasil, da cultura, da arte. A gente sabia que tinha produzido um pensamento, ao longo da vida, que ia para além dos filmes. E descobrimos coisas incríveis. Algumas mais óbvias, como entrevistas para a revista Veja, para o programa Roda Viva, até uma do início dos anos 1990 na TVE RS. Eram entrevistas longas, bonitas. Tinha coisa que falou para um jornal de Porto Alegre em 1959, muito material de quando fez uma residência com o Grupo Galpão, em Belo Horizonte… enfim, primeiro tivemos que escavar isso tudo e, com esse material em mãos, foi possível desenhar a narrativa.
Você já havia trabalhado em parceria, com o Vitor Graize, em um outro filme (As Horas Vulgares). Como foi a parceria com o Gustavo Ribeiro em Todos os Paulos do Mundo?
A gente fez tudo junto. Foi um processo muito solitário. É um filme todo de montagem. Passamos dois meses inteiros em uma ilha de edição. Revimos todos os filmes, as cenas de cada novelas em que ele apareceu, as peças que conseguimos imagens. Tudo que nos interessava. E fomos montando aos poucos, assim que ia chegando a pesquisa dos textos. Nós dois, o tempo inteiro. Foram cinco meses ao todo. Passávamos 15 dias em Vitória, depois outros 15 dias em São Paulo. Ficou um pouco mais com cara de filme somente no último mês. Nesse momento, decidimos que queríamos ficar mais perto do Paulo, então fomos para o Rio, até para poder filmar coisas com ele e gravar com esses atores todos. Foi quando o projeto se abriu mais. Tínhamos um acordo com ele, de mostrar um corte por semana. A primeira exibição foi na casa dele, para o Paulo e a Vania, apenas. As vozes estavam todas em rascunho, com atores que gravamos em Vitória. Nada estava finalizado e, mesmo assim, choramos os quatro, muito. Porém, cinco minutos depois, no fim da sessão, o Paulo já estava com uma lista de coisas que queria comentar. Era sempre como uma espécie de peregrinação, pois ele mora no Alto da Gávea, então para ir até lá tem que subir o morro. O processo era sempre esse: choradeira, discussão e montagem.
O filme tem um elenco de narradores impressionante. Como foi a escolha destas vozes e o que foi preciso para reunir todos estes talentos?
A resposta simples é essa: a única chance de ligar para Fernanda Montenegro e ela responder no dia seguinte, de forma positiva, é dizer que era para o Paulo Jose. O filme aconteceu muito rápido por causa disso. Ser o Paulo facilita muito, Ele é muito amado. Lá na gênese do projeto sabíamos que teríamos algumas coisas que não estavam na voz dele. Decidimos, então, chamar os parceiros de cena. Isso ecoa ainda mais a ideia que buscamos no título, de Todos os Paulos do Mundo, de emular essas facetas. Sendo sobre Paulo Jose, é também sobre o cinema brasileiro. Tanto sobre o Paulo, como os parceiros de cena.
Cada escolha tem também um significado, não? Nada é aleatório.
Percebemos isso quando chegou o momento em que tivemos que envolver a família. Quando falamos da Dina Sfat, por exemplo, as vozes são das três filhas dos dois. Isso dá um peso, deixa clara a ideia de continuidade. Era uma preocupação não fazer um documentário póstumo para alguém que está vivíssimo. Com todas as debilitações dele, o Paulo segue sendo muito ativo, com a cabeça a mil. Era importante que isso aparecesse no filme. Por isso trazer essas figuras. Temos a Helena Ignez, durante as cenas de O Padre e a Moça (1966), e falando as palavras dele. Essa ideia pré-concebida que as pessoas tem do que um ator da estatura dele deve ser, se desmonta com o Paulo. Ele é muito humilde. A vaidade se manifesta de uma forma diferente. Ele quase não acreditou que essas pessoas haviam sido selecionadas, convidadas e tinham aceitado. Foi muito emocionante.
Houve algum assunto tabu, ou algo que quiseram abordar e não foi possível?
Nada. O Paulo nos deu carta branca, é uma pessoa muito generosa. Tivemos liberdade absoluta para falar sobre tudo. Acontece que, primeiro, o Paulo viveu uma vida sem grandes polêmicas. É um cara voltado para o ofício, um homem de família. Não no sentido burguês, mas que sempre reconheceu a importância de manter boas relações. É amigo do Flavio Migliaccio há sessenta anos, por exemplo. Então, não tinham muitos assuntos ‘proibidos’ que pudessem ser trazidos para o filme, de qualquer forma. E as mais complexas, ele mesmo encara de frente. Desde o diagnóstico do Parkinson, lá no início dos anos 1990, ele sempre falou muito abertamente. Nunca escondeu. O filme queria mostrar como é que se misturava arte e vida, e a doença é importante neste trajeto. Agora, é impressionante: ele fez mais filmes depois do que antes de descobrir essa condição. Encerrar o filme com isso é prestar tributo a essa abertura.
Como foi o envolvimento do Paulo José, antes, durante e depois do filme pronto?
A gente até soube, depois, já com o projeto em andamento, que no começo ele ficou um pouco reticente. Isso que falei, da vaidade natural do ator, se mistura com uma timidez absurda. Humildade, mesmo. Foi a Kika Lopes, sua esposa, que o convenceu. Ela é muito amiga da Vania, que, por sua vez, é quase uma afilhada do Paulo. Por isso teve como chegar até ele e dizer: “olha só, tem esses dois meninos que conhecem sua carreira mais do que você mesmo. Vai deixar passar?” Passado esse receio inicial, se abriu muito, e a equipe toda dele, que trabalha ao seu lado, cuidando do acervo, das atividades que ainda se envolve. Conseguimos acesso imediato a praticamente tudo. Escrevia e-mail para nós, de vez em quando, perguntando coisas, e respondendo, também, as nossas dúvidas. Ele foi muito presente.
E depois, com o filme pronto. Como ele reagiu?
É realmente muito bonito o que o filme tem feito por ele. Obviamente, é muito emocionante. Na estreia, no Festival do Rio, estava todo mundo. Depois, em São Paulo, veio mais um monte de gente. A Fernanda Montenegro, o Domingos de Oliveira, os parceiros todos. Os atores jovens, como a Mariana Ximenes, Matheus Nachtergaele, estava sempre cercado pelos amigos. Foram momentos de acolhimento, de reencontro, de poder revê-lo, e de reencontrar tudo que aconteceu nos filmes, de uma maneira que ele processa e absorve cada vez de um modo diferente. É possível que ele já tenha visto no cinema o longa mais vezes que eu e o Gustavo. Está sendo muito bonito acompanhar esse processo ao lado dele. Muita gente queria vê-lo, pois passou os últimos três anos um pouco recolhido, consequência do processo natural da doença. Foi muito bom filmá-lo, também. Afinal, ele não é objeto, é um ator em cena, mesmo se tratando de um documentário. Foi incrível. Ele tá muito feliz. Isso alimenta ele.
(Entrevista feita na conexão Porto Alegre / Vitória em maio de 2018)
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