Ela é uma das grandes divas do cinema argentino. Dona de olhos profundos e um sorriso hipnotizante, Soledad Villamil, em quase trinta anos de carreira, apareceu em apenas dez filmes, fora algumas novelas e séries de televisão. Mesmo assim, não há quem a não conheça – ao menos no seu país natal. Dona de um Goya – o Oscar da Espanha – e de um troféu da Academia de Cinema Argentino, é dona também de dois Condor (o prêmio máximo dos críticos argentinos), para deixar claro que talento ela tem de sobra: o que precisa é de mais tempo para equilibrar suas duas paixões, o cinema e a música. Cantora de sucesso, está prestes a encantar também em português, ainda que o sotaque seja portenho. Afinal, é uma das protagonistas de Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos, longa do gaúcho Paulo Nascimento filmado em São Paulo e estrelado pelo galã global Edson Celulari. E depois, ela já tem outros dois filmes prontos para serem lançados, histórias que devem despertar interesse não apenas na Argentina, mas também aqui, no Uruguai e por toda a América Latina. Quer saber mais? Então confira o bate-papo inédito e exclusivo que tivemos com a atriz durante sua passagem pelo Brasil no final do mês de abril.
Soledad, ao ler o roteiro de Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos, o que lhe fez dizer sim para essa personagem?
A primeira coisa que me encantou foi essa ideia a respeito de alguém que, apesar de ter a possibilidade de ver, decide fazer a reversão da cirurgia e voltar a ficar cego. Todo o relato, aliás, me interessou. O tom do desenrolar da história, combinando um pouco de drama com comédia. Mas, acima de tudo, foi essa possibilidade, curiosa e chocante ao mesmo tempo. Não esperava por isso, foi uma das coisas que me surpreendeu quando li o roteiro pela primeira vez. Por isso que esse ponto de vista me pareceu tão interessante. E a possibilidade de contar essa história me pareceu que era algo que valia a pena.
O Paulo subiu numa moto e foi até Buenos Aires te convidar para esse filme, certo? Como foi tua reação inicial e como foi o trabalho com ele?
Bom, preciso dizer, foi um choque vê-lo pela primeira vez. Ainda mais quando me disse que tinha ido até lá de moto, desde Porto Alegre! Gente, é muito perigoso fazer sozinho essa viagem! Por favor, tenha cuidado! Mas passado esse susto, nosso trabalho foi muito interessante. Tivemos momentos distintos de trabalho, primeiro sobre o roteiro, depois nos personagens, aí fomos para os ensaios, e só então as filmagens. Houve um denominador comum entre nós, um ótimo diálogo que se estabeleceu. De ida e volta, desde o começo. Fiz observações, coisas que me inquietavam no roteiro e na personagem, coisas que fomos desenvolvendo durante os ensaios e filmagens. Pude sentir que ele se manteve o tempo todo aberto a essas colocações. Parece contraditório, mas não é: ele é um cineasta seguro do que quer e, talvez por isso mesmo, está disponível para ouvir o que os atores tem a contribuir. Isso enriqueceu tanto o nosso trabalho como o resultado também.
O Paulo mencionou que a Clarice, tua personagem, originalmente era mais ‘árida’ – esse foi o termo que ele usou. E disse também que foi você que a defendeu e a tornou como hoje vemos na tela. Como foi esse processo?
Creio que é algo que acontece com todo ator ou atriz: precisamos acreditar e defender nossos personagens. Precisamos compreender suas motivações para que eles sejam verdadeiros, tanto para quem o faz como para o espectador. No início, sentia que a Clarice estava restrita à força que precisaria demonstrar para que ocorresse a mudança que desejava na vida do marido, com a cirurgia nos olhos para recuperar a visão. É uma mulher que, de certa maneira, tenta manipular a vida do esposo. Ela estava focada nesse aspecto. Mas haviam outros pontos de vista que me interessavam, principalmente suas motivações. Por quê queria tanto essa mudança? Me parecia importante contar também isso, pois ela da mesma forma passava por uma crise. Estava naquela família há tanto tempo, acompanhando esse homem, quem sabe quantos sonhos havia deixado para trás por causa dele? Isso ficava em cima do personagem do pai dela, que é contrário ao casamento da filha. Aquilo que ele a diz quando se encontram, tratando o genro como um inválido, um homem diminuído, talvez fosse algo que ela vem escutando há vinte anos. E se antes isso não importava, agora ressoa dentro dela, justamente por não estar bem. Ela não está feliz, se sente incompleta. E foi esse olhar que tentei propor sobre a personagem. Tirar desse maniqueísmo, como se o Vitório fosse bom e ela fosse má. Não é tão simples. E não que o roteiro fosse assim, mas tive a impressão de que faltava reforçar que nada é tão simples desse jeito.
Você já conhecia o Edson Celulari, teu parceiro de cena?
Não, o conheci para fazer esse filme.
E hoje você tem ideia da popularidade dele no Brasil?
Agora sim (risos). É impossível atravessar um aeroporto ao lado dele, sempre surge alguém pedindo autógrafos e fotos. Não sei como não perdemos o avião.
Como foi trabalhar com ele e formar esse casal em cena?
Algo maravilhoso que aconteceu entre nós foi um entendimento muito fácil. Ele é uma pessoa carinhosa, aberta às sugestões, com um bom humor, que fica fazendo piadas a todo instante. É capaz de gerar um ambiente de troca muito especial. E isso me ajudou, pois estava chegando a um mundo que desconhecia. Outro país, outra língua, era a única argentina no set. Ele me ajudou para que me sentisse em casa. Não só para entrar no mundo que o Paulo Nascimento estava criando, mas também para que nós conseguíssemos nos conectar e gerar essa confiança necessária aos nossos personagens, para dar credibilidade a esse casal.
Essa foi a tua primeira experiência de filmagem no exterior?
Sim. Não, quer dizer, já havia filmado na Espanha, mas sempre em espanhol. Esta é a primeira vez que filmo em outra língua. O português é um desafio muito grande. Mesmo que tenha tido desde pequena uma afinidade enorme com o Brasil – sempre escutei música brasileira, é a minha favorita. Mas, claro, no momento em que tive que preparar as minhas falas, aí complicou.
Você sentiu uma diferença muito grande no processo de filmagem no Brasil em relação ao modo de se fazer cinema na Argentina?
Não posso dizer que tenha sentido uma diferença muito grande, não. Talvez aqui no Brasil as coisas sejam mais rápidas, se filma mais a cada dia, com mais cenas para se fazer. No início me parecia um tanto impossível, do tipo “nossa, não vai dar pra fazer tudo isso”. Mas é uma questão de ritmo, no Brasil se tem mais pressa, me parece. Se exige mais do ator. Mas o clima de trabalho era tão bom, que praticamente não se percebe esse esforço a mais, é uma proposta e todo mundo embarca junto. A cada dia, quando terminávamos as filmagens, seguíamos juntos: íamos jantar, cantar, um pegava um violão, havia uma convivência tão boa que tornava tudo mais prazeroso.
Você falou em cantar, e sabemos que também és uma cantora de sucesso. Nunca foi uma questão, ter que optar entre a música ou a atuação?
Não, nunca. A minha intenção é seguir me dedicando às duas coisas, uma de cada vez, enquanto for possível. Gosto muito de fazer tanto uma coisa quanto a outra, nem penso em abandonar uma delas. O que faço é organizar meu tempo para poder me dedicar a ambas, cada uma no seu momento. Não dá pra escolher. E é sempre, também, uma questão do projeto, do que me dá vontade ou não de fazer parte. Se estamos todos de acordo, sempre será possível combinar. Ainda que seja evidente que a música esteja assumindo um lugar cada vez mais de protagonista na minha vida, sigo apaixonada pela arte de atuar.
Para encerrar, vou te fazer uma pergunta que todo mundo já deve ter te feito, mas que não posso deixar de lado: como foi ter feito parte de O Segredo dos seus Olhos (2009)?
Sim, é verdade, essa é uma pergunta que já me fizeram milhares de vezes, mas entendo que seja inevitável. Este é, mesmo, um filme referencial na minha carreira. Mas foi uma grande surpresa. Nunca imaginei que seria o estouro que acabou sendo. Eu havia feito um outro filme com o diretor Juan José Campanella, dez anos antes – O Mesmo Amor, A Mesma Chuva (1999) – que foi uma experiência maravilhosa, tinha me deixado com uma vontade imensa de voltar a trabalhar com ele e com Ricardo Darín, é claro. Durante essa década, Campanella esteve no Oscar pela primeira vez com O Filho da Noiva (2001), e havia se tornado um diretor de grande prestígio. Já estava consagrado na Argentina, com obras de muito sucesso. Então, quando me chamou para esse segundo filme, foi bem diferente. Antes, foi quase uma aposta, foi legal, uma boa experiência. Se passaram dez anos, e quando veio o novo convite, já não era a mesma coisa: era o Campanella! (risos) Era quase uma ordem, sabe? E quando li o roteiro, imediatamente percebi que seria algo importante. Era uma história muito forte, li do início ao fim sem parar. Agora, tudo o que veio depois do filme estar pronto, para mim, foi inimaginável.
E o que seria esse “depois”, exatamente?
Bom, você sabe. Estatisticamente, é muito pouco provável que um filme argentino – ou brasileiro, ou de qualquer outra nacionalidade que não esteja inserida no grande circuito, por assim dizer – consiga tanta atenção do mundo todo, não é mesmo? Ser indicado ao Oscar já foi um espanto, agora, ganhar? Ninguém esperava por isso. As semanas ia passando e só pensava: “ok, isso já foi melhor do que podíamos querer”. E mesmo assim o filme ia adiante! Nós já estávamos mais do que satisfeitos, e mesmo assim seguíamos avançando. Primeiro foi aquela seleção dos nove semifinalistas, depois os cinco indicados, e por fim, a vitória. Quando ganhamos, fiquei sem fala. Então, sim, é um filme que marcou muito, e ficará para sempre na minha história.
Você não voltou a trabalhar com o Campanella ou com o Darín depois…
Não. Campanella só fez televisão depois desse filme, eu também fiz poucos trabalhos no cinema. E o Darín faz um atrás do outro, acho que ele é que não tem tempo para a gente (risos). Mas quem sabe, ano que vez fecha mais dez anos, talvez seja hora de mais um encontro.
Você chegou a assistir Olhos da Justiça (2015), a refilmagem norte-americana? O que achou?
Sim, vi. É bem feito, afinal, isso é algo que os norte-americanos sabem fazer. A minha personagem é feita pela Nicole Kidman, e foi uma boa escolha. Na verdade, é quase isso, pois fizeram mudanças no roteiro, alguns personagens foram combinados com outros. A Julia Roberts, por exemplo, é uma mistura do Ricardo Darin, o investigador, com Pablo Rago, que é o viúvo. Mas confesso que senti algo estranho ao assistir esse novo filme. Apesar de ser uma realização competente, falta alguma coisa. Há duas coisas que não conseguiram reproduzir, e que para mim são muito importantes. Uma, é o contexto histórico. Isso era muito importante para nós, esse período da Ditadura Militar, das perseguições, há um peso ao redor de tudo isso que não pode ser ignorado. Aquela cena do elevador, quando a ex-vítima e o ex-algoz sobem juntos, não é preciso dizer nada, pois toda essa carga já está presente, desse passado. E outra coisa é o humor. Não há uma única piada na versão em inglês. Mas, fora isso, é um bom filme.
Depois de um tempo afastada das telas, você está voltando com tudo, não é mesmo? Além do Teu Mundo Não Cabe Nos Meus Olhos, você já tem outros filmes prontos?
Sim, no ano passado filmei dois filmes. Uma já estreou em Buenos Aires, se chama Las Grietas de Jara (2018) e é um policial, adaptação de uma novela de Claudia Piñeiro, escritora que já teve vários outros textos adaptados para o cinema na Argentina, ela é muito famosa. O Oscar Martinez é o protagonista, ele é maravilhoso, e nesse filme está muito bem. E fiz também uma participação em um filme que ainda não estreou, é uma produção espanhola de um diretor uruguaio, Álvaro Brechner, que se chama Memorias del Calabozo (2018). É sobre a vida do Mujica, ex-presidente do Uruguai, quando esteve no cativeiro. Ele e seus companheiros chegaram a ficar 12 anos presos. É uma história muito bonita, que merece ser contada, e ainda que meu papel seja pequeno, o fiz com muita satisfação. Agora, para voltar a filmar no Brasil, só falta um novo convite (risos).
(Entrevista feita ao vivo em Porto Alegre em abril de 2018)
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