Tantas Almas (2021) é o primeiro filme de ficção do cineasta colombiano Nicolás Rincón Gille, realizador experiente na escola do documentário. E essa bagagem fica evidente pela forma como a câmera se comporta e nas aparentes contradições internas que sustentam a narrativa – sobre as quais conversamos com ele. Nicolás atendeu o Papo de Cinema para um breve e remoto bate-papo sobre esse longa-metragem que está chegando aos cinemas pela Vitrine Filmes no dia 26 de maio e que se trata de uma coprodução com participação verde e amarela. A história dá conta de um ribeirinho que vive numa realidade colombiana tomada por grupos paramilitares (equivalentes às milícias brasileiras). O sujeito humilde imagina que seus dois meninos foram assassinados e empreende uma verdadeira jornada à beira do rio para tentar resgatar os cadáveres, atravessando regiões dominadas pelo medo e tendo contato com bandidos que vacilam um pouco apenas quando a superstição sugere a existência de algo que escape às balas. Confira mais este Papo de Cinema exclusivo, no qual conversamos com o cineasta colombiano Nicolás Rincón Gille.
Como você se interessou por esse universo complexo das milícias e dos paramilitares?
Venho trabalhando com isso desde 2005, mais especificamente em três documentário. Tenho curiosidade sobre a população campesina colombiana nesse contexto. Me interessava o recorte, pois essas populações são as primeiras vítimas dos paramilitares. Me horroriza como essa violência é estratégia e tem motivação econômica, já que afasta o pequeno produtor para impor estruturas enormes. Comecei a me interessar cada vez mais pela temática, principalmente pelo fator da resistência. Para mim, Tantas Almas é uma exploração cinematográfica sobre duelos e masculinidade. O que é ser um pai em meio a tanta violência? Tinha uma necessidade de explorar isso.
Como encontrou o José, esse protagonista impressionante?
Fomos a uma zona na Colômbia afetada pela história do filme. Achamos um povoado de pescadores no norte do país. Os moradores nos receberam e começamos a pensar o filme por ali. Buscamos naquele espaço pessoas que queriam participar, fizemos umas 200 entrevistas. E Arley era uma presença mágica. Por exemplo, a câmera enquadrava cinco pretendentes, mas somente conseguíamos prestar atenção nele, em silêncio. Suas presença e sensibilidade me chamaram muito a atenção. Há algo de realmente bastante forte nele. E os exercícios de atuação posteriores foram ótimos. Arley entendia muito bem a história do filme, pois ela estava próxima da sua, Claro, nunca mataram seus filhos, mas quase. Todas as emoções estavam nele, foi uma sorte encontra-lo. É um homem formidável e único.
Essa é sua primeira ficção e fica evidente na estrutura narrativa que tem ali alguém escolado no documentário. Como foi fazer essa transição e/ou trabalhar nessas fronteiras borradas?
Efetivamente, o que você diz faz todo sentido para mim, não apenas como cineasta, mas também como cinéfilo. Gosto dos filmes imersivos, daqueles que estabelecem proximidade com as pessoas. Gosto mais de filmes em que há uma comunicação entre o mundo e o cineasta, não tanto quando o cineasta impõe a sua visão de mundo ao espectador. Para mim era fundamental que o espectador sentisse a existência de muitas marcas de realidade, sendo a ficção o dispositivo para ele sentir e ter um espaço próprio de construção. Não há músicas extradiegéticas, há um trabalho de imagem e som para conseguirmos essa imersão, a fim de que ficássemos o mais próximo possível daquela realidade. O cinema que me interessa centraliza a realidade e tenta encontrar meios de entende-la.
Me interessa as aparentes contradições narrativas. Você cria um road movie, mas não pressupõe um trajeto de transformação; também há uma urgência imposta pela decomposição, mas é um filme muito lento e compassado. Essas aparentes contradições sempre foram fundamentais?
Sim, total. É bonito te ouvir falar dessas coisas. Realmente, nos road movies há uma transformação do personagem e aqui José é um obstinado, ele quer de toda forma encontrar e sepultar seus filhos. Queríamos deixar o espectador se perguntando o que motiva essa jornada, porque isso é tão importante para ele. Ao longo do trajeto, José vai ficando mais frágil, com sua camiseta suja, mas mesmo assim continua. Era muito importante que tivéssemos um personagem movido por uma ideia fixa. Então, isso que você apontou era uma grande vontade nossa desde o começo. E a outra coisa que você disse também soa ótima, pois geralmente no cinema parece que ou o filme é lento e contemplativo ou é ação e comercial. E às vezes essa leitura é bem dicotômica, mesmo. Mas, podemos mesclar os dois, criar espaços intermediários. Nosso filme precisava desse tempo para o espectador carregar as questões.
Diante do cenário comercial hegemônico atual, seu filme me parece subversivo, justamente porque nos confere tempo à contemplação. Essa relação com o tempo era algo inegociável para você?
Sim, totalmente (risos). A gente pode contar uma história de ação com outro tempo, claro. Não se trata tanto do efeito, mas da sensação. Nosso personagem está diante de uma impossibilidade, então era importante investir nas repetições, no cansaço, na perda de sentidos. Por exemplo, quando ele toma um café. No meio daquilo tudo, da busca de cadáveres naquela situação repleta de agressividade e perigos, um café adquire outra importância. Compartilhar um copo d’água com alguém passa a ser um gesto maravilhoso. Os tempos eram muito importantes, inclusive porque estabelecem uma analogia com a natureza, que parece tranquila, mas nem sempre é.
Seu filme está chegando ao Brasil, um país que também sofre com a atuação das milícias. O que você espera da recepção do espectador brasileiro?
Não imaginava que nosso filme pudesse ter tanta relação com a realidade brasileira. Mas, é verdade que José poderia estar em alguns lugares do Brasil, vivendo coisas bem parecidas. Ainda continuamos a nos perguntar como sobreviver a essas barbáries que nos são impostas. Como confrontar a milícia sem armar-se e mudar os rumos do cotidiano? Como encontrar um sentido para a vida em meio a tantos horrores? Brasileiros, colombianos, somos muito latino-americanos, alegres, extrovertidos, de fácil contato. Então, essa violência é algo praticamente contra a nossa essência e cultura. Creio que, independentemente de nossas diferenças, sempre estamos muito próximos.
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