Embora nascido em João Pessoa, Paraíba, Paulo Caldas acabou sendo um dos nomes mais fortes do novo cinema pernambucano, onde estudou e lançou seus primeiros filmes. Logo na estreia em longa-metragem, com Baile Perfumado (1997), codirigido por Lírio Ferreira, ganhou o candango de Melhor Filme no Festival de Brasília, o mais antigo do Brasil. Com o trabalho seguinte, o documentário O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas (2000), codirigido por Marcelo Luna, foi selecionado para o Festival de Veneza e premiado em Havana, Cuba. O sucesso continuou em alta com Deserto Feliz (2007), que lhe valeu o kikito de Melhor Direção no Festival de Gramado e o prêmio do Festival de Guadalajara, no México. Tudo estava trilhado para se consagrar como um dos maiores realizadores contemporâneos do país até lançar País do Desejo (2012), seu projeto mais ambicioso até o momento, recebido com frieza pela crítica e ignorado pelo público. Havia chegado o momento de pisar no freio e decidir o que fazer a seguir. A resposta veio cinco anos depois, quase como numa volta às origens, com o documentário Saudade, uma coprodução entre Brasil, Angola e Portugal, que teve as primeiras exibições durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2017, e chega agora aos cinemas de todo o país. Foi sobre esse trabalho, e sobre o que ainda está por vir, que o cineasta conversou com exclusividade conosco. Confira!
Como surgiu a ideia de fazer um filme sobre a saudade?
Estava com muita vontade de voltar ao documentário. O último havia sido O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas (2000). Desde então, até fiz outros no gênero, mas não no cinema. E durante muito tempo procurei por algo que me atraísse. Sabia que não queria fazer nada biográfico, histórico, ou musical, porque já tem muita gente produzindo nessa linha. Nesse meio tempo, me peguei sentindo saudades de pessoas que haviam trabalhado comigo e que já partiram para outro plano, como o Feijão – o grande Paulo Jacinto dos Reis – que fotografou todos os meus filmes, ou o Germano Coelho Filho, que foi produtor do Baile Perfumado e do Deserto Feliz. Os dois morreram mais ou menos na mesma época. Foi quando me dei conta que estava justamente na saudade a resposta para o que estava procurando. Era precisa fazer um filme com sentimento. E isso era difícil, até pra saber por onde começar.
Essa parece ser a maior dúvida. Com um tema tão aberto à diversas interpretações, como dar o primeiro passo?
Então, foi muito difícil. Ainda mais que, quando você começa a pesquisar, descobre muitas outras coisas que nem havia imaginado. Começamos a levantar quais poderiam ser os entrevistados, e também foi preciso uma pesquisa, junto com a produtora, de como ilustrar tudo isso, a seleção de imagens. Foi o que nos fez sentir o potencial do tema. A palavra, o sentimento é que nos fez continuar. Foi um processo investigativo. Você tem a ideia, mas não sabe o que vai acontecer. A primeira surpresa que tivemos foi que as pessoas que entrevistamos no começo, ainda em São Paulo, cada uma tinha um pensamento, uma relação diferente com a saudade. Isso me chamou atenção, pois não tinha me dado conta de que isso seria possível. Mas também nos entusiasmou. Assim foi possível elaborar um roteiro e estabelecer princípios básicos, como filmar em vários países de língua portuguesa, além de entrevistar o maior número possível de pessoas. Numa primeira leva, eram só conhecidos. Foi a partir desses artistas que conversamos, nossos amigos, que percebemos que eles eram sensíveis a ponto de poder interpretar melhor o sentimento, sem falar em como refletiam também na obra de cada um.
Como surgiu a possibilidade de filmar em Angola e em Portugal?
Há uns quinze anos, havia feito um trabalho em Angola. Foi o primeiro DVD ao vivo feito naquele país, e se chama Quintal do Semba – que é como eles chamam o samba. Foi com um produtor brasileiro, o Sergio Guerra, que já morava há anos por lá. O tempo passou, e quando surgiu a ideia do Saudade, fui falar com ele. Quando disse que queria filmar parte do projeto em Angola, ele topou cuidar da produção desse segmento. Foi muita sorte, na verdade. Porque estava prestes a desativar a produtora, e Angola está atravessando uma crise muito forte. Em 2016 estive lá pela última vez, e quase não reconheci o lugar. Era outro país. A miséria aumentou muito, há muitos imigrantes, principalmente chineses. Um caos por todos os lados. Se tivesse sido adiado, não teríamos conseguido filmar lá. Já em Portugal tem a Fado Filmes, que é uma produtora com quem havia trabalhado antes também. Ela é muito envolvida com o cinema português. Foram eles que produziram o Fados (2007), do Carlos Saura, por exemplo. E como nos conhecíamos, ficaram responsáveis por produzir a parte feita por lá. Foram apoios fundamentais.
O objetivo sempre foi, além do Brasil, filmar também nestes outros países?
Nós tivemos que ir nos adaptando. Tanto que tivemos uma exceção, que foram as cenas feitas na Alemanha. Fomos para o Festival de Berlim com um outro projeto, no meio disso tudo, e tivemos a ideia: já que estaremos por lá, que tal filmar os artistas brasileiros que moram em Berlim? Foi assim que conseguimos o Karim Aïnouz. Isso nos possibilitou descobrir como pensam as pessoas alfabetizadas na língua portuguesa, mas que vivem em um outro país. Ainda mais num frio como a Alemanha – o festival é sempre em fevereiro, ou seja, no meio do inverno. Lá encontramos uma outra reação, um outro tipo de saudade, de certa forma até maior. A pessoa que está fora do Brasil tem a saudade mais calcificada.
Mas o filme não sairia se as filmagens ocorressem apenas no Brasil?
Não, desde o início a gente queria essa coisa global. Nossas intenções eram ir até a Ásia, também. Só não fomos por questão de cronograma e orçamento. Portugal foi o último a ser filmado. Não foi proposital, mas acabou calhando bem no projeto. Até porque Portugal e Brasil eram imprescindíveis. A África veio depois, e foi ótimo. O universo da língua portuguesa, misturado com a cultura africana, gerou algo completamente diferente e novo. Outro lugar que pensamos em ir foi o Cabo Verde, mas acabou não acontecendo. O José Eduardo Agualusa, escritor angolano e meu amigo, era um que nos dizia: “vocês tem que ir até lá”. Por ser um arquipélago de ilhas, o Cabo Verde fica muito isolado, e a saudade acaba tendo outras conotações. A Cesária Évora, que é cabo-verdiana, tem uma canção chamada “Sodade”, né? Outra música dela, “Mar Azul”, é cantada no filme. E o engraçado foi que, quando chegamos em Portugal, achava que iria me deparar com aquela coisa cultural, aquele culto à saudade como uma característica marcante de todo um povo. Só que lá também acontece a mesma coisa, cada um tem a sua definição. Os artistas mais novos, com quem também conversamos, possuem uma relação até mesmo de reação a esse pré-conceito, que é muito forte. Como se fosse uma coisa que estaria atrapalhando o desenvolvimento cultural do povo português.
Quanto tempo o projeto levou ao todo, da ideia à finalização?
Uns três anos. Mas tivemos várias interrupções, não foram seguidos. Mas do começo até agora, se passou todo esse tempo. O período de montagem também foi muito demorado, principalmente por causa das duas propostas.
Pois é, explica isso melhor: o filme vai virar série para a televisão?
Sim, vai ser uma série que será exibida pelo Arte 1. O canal é coprodutor, tanto do filme como da série. A estreia na telinha está marcada para abril. Mas será um produto bem diferente: para ter uma ideia, serão oito episódios de uma hora cada. E, ao contrário do filme, ela terá um aspecto temático. E a maior parte do que está no filme, não estará na série – um complementa o outro, portanto. Tínhamos um material muito grande em mãos, mais de 300 horas, com quase 100 entrevistados.
Falando nisso, a maior parte dos entrevistados são artistas. Essa foi uma escolha consciente ou foi ao acaso essa combinação?
Tem as duas coisas, na verdade. O primeiro entrevistado, e que aparece também no começo do filme, foi o Marcos Pontes, que é astronauta. Mais adiante tem aquela mulher, moradora do Capão Redondo, que o filho morreu. Ou seja, começamos mais abertos. Pensamos em conversar com prostitutas em Santos, com coveiros, aposentados. Só que depois, como acabamos escolhendo pessoas com algum tipo de proximidade conosco, ou alguma relação de amizade ou admiração, entendemos que seria amplo demais, que seria necessário um recorte. E se ficasse muito genérico, seria difícil elaborar uma ideia mais concreta a respeito. Outra coisa interessante, que muita gente não percebe, mas, no meu entender, é o grande diferencial do nosso filme, é que todo material é inédito. Tudo que é exibido foi filmado especificamente para o filme e para a série. Nada é arquivo – ok, aquele plano da Terra, logo no começo, não é nosso (risos). Mas o resto todo é. E tudo pensado para possibilitar aquelas conexões poéticas.
O pensar artístico é mais propenso a sentir saudade?
Talvez. Com certeza, há mais sensibilidade envolvida. Isso foi algo que percebemos quando fomos atrás de grupos de teatro, como o Oficina, ou a companhia Deborah Colker, ou mesmo aqueles envolvidos em performances artísticas enquanto falavam conosco. Todos estão na série, mas no filme era preciso ter um recorte mais objetivo – foi muito difícil. Quem assistir à série, vai pensar que nela tem coisas incríveis que poderiam ter estado no filme, e vice-versa. É da natureza do projeto, e tivemos que aceitar isso.
Com mais de 300 horas de material bruto, ter que transformar tudo isso em um filme de pouco mais de 70 minutos, qual foi o principal objetivo com o longa?
Foram dois anos de montagem. Entre a série e o longa. Eram dois montadores diferentes, trabalhando ao mesmo tempo. Num segundo momento apenas é que houve uma troca de colaborações entre eles, em que coisas da série foram parar no filme, e o contrário também. Foi uma escolha mais temática. Optamos por assuntos, temas e reflexões que não estavam incluídos nos capítulos da série. Alguns são comuns, como a morte e o amor, por exemplo. Mas a questão portuguesa, ou da migração, dos exilados, refugiados, são muito mais aprofundadas no filme.
Você acha que a saudade é diferente entre brasileiros, portugueses e angolanos?
Eu acho. Por incrível que pareça. No português, é trágico. É muito forte o elemento da tragédia. No brasileiro, estamos entre o drama e o humor. Há uma certa galhofa. E o africano tem uma outra relação, mais difícil definir. Talvez mais pura, primitiva. Mais direta, sem tanta filosofia. O cabo-verdiano, por outro lado, já é mais melancólico, como o português. É aquela coisa da ilha, dos barcos, todo mundo, a todo instante, partindo para ir ao longe. É muito distante do continente, e isso, de um modo ou de outro, acaba influenciando.
Você chegou a falar com pessoas que não entendiam o conceito de saudade?
Tem uma atriz alemã no filme, mas ela foi entrevistada no Teatro Oficina, em São Paulo. Para ela era difícil entender. Na série, temos vários angolanos que moraram na Alemanha. O discurso dele era também diferente. Tem uma fotógrafa que prefere se referir à ‘dor do mundo’. É muito lindo. Cada um tem a sua palavra para definir. Não é que saudade não tenha tradução. É que cada um tem muitas saudades. As saudades são múltiplas. Não há uma só. Por isso que é difícil traduzir em uma coisa. A saudade de uma pessoa você até pode encontrar uma outra definição, mas como explicar a saudade da comida da minha avó? Não tem como. E aquelas pessoas que sentem saudade do futuro? Isso, sim, é inexplicável. Todas as pessoas sentem saudade, independente de como expressam.
Saudade é o teu primeiro longa desde País do Desejo, um filme que teve uma recepção bastante controversa. Por que todo esse tempo? Era preciso se reinventar enquanto cineasta?
Não sei dizer. Acho que a opinião do controverso está mais em quem o assistiu do que comigo. Ao mesmo tempo, estou envolvido já com outro filme, que vai ser filmado no meio do ano. E o próprio Saudade, que era para ser mais rápido, acabou que, quando surgiu o acordo para a série, o projeto cresceu e ganhou uma outra dimensão. Por isso que demorou mais do que o planejado, além de ter mudado muito durante essa trajetória. Antes de irmos para Portugal, por exemplo, tínhamos um corte que gostávamos muito. Achávamos que seria inserida só uma coisa ou outra, e era isso. Só que quando voltamos, tínhamos em mãos tanta coisa nova e interessante, que tudo mudou. O filme tem uma narrativa muito mais contemporânea, com essa coisa da reflexão, uma pegada mais política, retrato do momento. E a série é mais estética, dos artistas. Mais atemporal, por causa da questão temática.
Saudade teve sua primeira exibição na Mostra de Cinema de São Paulo, no ano passado. Como você percebeu essas reações iniciais?
Tem sido muito legal. O que foi surpreendente é que desde a época do projeto, quando a gente inscrevia nos editais, as reações eram sempre ótimas, interessadas. Quando fizemos as primeiras imagens e conseguimos montar um teaser, mostramos pro Arte 1 e ele abraçou na hora a ideia. As pessoas podem pensar que um filme sobre saudade vai ser melancólico, saudosista, e o nosso não tem nada disso. Tem uma outra pegada. Uma outra vontade, uma outra velocidade, uma outra reflexão. E por isso a receptividade tem sido incrível.
Para encerrarmos: o que você pode nos adiantar sobre esse novo projeto, que será filmado ainda nesse ano?
Se chama Sertão Mar. É um projeto de ficção, uma história que se passa em 1942. Vai ser um filme de pós-cangaço. É o último casal de cangaceiros, fugindo do que seria a última milícia. E a cangaceira quer conhecer o mar. Paralelamente, desde o começo, acompanhamos um submarino alemão na costa do Brasil. Veja bem, estamos em plena Segunda Guerra Mundial. Ele naufraga, e sua tripulação, para se salvar, precisa nadar até a costa brasileira. Isso aconteceu mesmo, há várias histórias sobre esses náufragos que são contadas até hoje. Alguns desses marinheiros, ao chegarem na praia, encontram esses cangaceiros. Desse encontro acontecerão coisas incríveis, e isso é tudo que posso dizer (risos).
(Entrevista feita via Skype na conexão direta entre Porto Alegre/Rio de Janeiro em janeiro de 2018)
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