Petrus Cariry respira cinema desde muito cedo. Filho do consagrado Rosemberg Cariry, ele relutou para entrar na área, afinal a sombra do pai era grande. Contudo, não declinou quando o chamado da sétima arte se fez mais intenso que o receio. Com os primeiros e elogiados curtas-metragens, e os celebrados longas que formam a chamada Trilogia da Morte, Petrus conseguiu se estabelecer, mostrando uma assinatura muito própria, colocando-se entre os melhores realizadores da geração que está fazendo do Nordeste uma referência em termos qualidade cinematográfica. Neste bate-papo, que ocorreu durante o Cine Ceará, ele falou sobre carreira, influências, temas recorrentes, o próximo filme, entre outras coisas. Confira.
Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois encerra a chamada Trilogia da Morte. Nela, percebemos a recorrência de determinados temas, que reverberam de um filme ao outro. O que te instiga a isso, a voltar a esses temas?
A Trilogia da Morte foi pensada desde o princípio. A morte é um tema que me fascina bastante, e ao mesmo tempo me causa medo. Todo mundo tem medo da morte, né? Por mais que a gente fale que não, relaciona morte a fim. Engraçado, a maioria da população é cristã, acredita em vida pós-morte, mas quando alguém morre é aquela coisa. Não que eu estude, mas leio bastante sobre budismo e tento absorver. Tento trabalhar a morte como o fim de um ciclo de vida, que leva a um recomeço. Mas, claro, tenho medo, também. A morte é um tema que me fascina, na verdade. O Clarisse era para ser o segundo longa-metragem da trilogia. Mas como eu tinha ganhado dinheiro para fazer um curta, eu peguei o Mãe e Filha (2011), que era inicialmente um curta, e resolvi fazer um longa, montar uma equipe de amigos, viajar para o sertão e fazer. Ele tem aquela carga psicológica bem pesada e flerta um pouco com o cinema de horror. É um filme denso, pesado.
Tem aquilo do bebê, uma presença constante, embora a gente não o veja. E tu consegue nos fazer imaginar essa criança.
É uma presença fantasmagórica. A gente tinha a opção de mostrar o bebê, inclusive até tínhamos um reborn (bonecos hiper-realistas) que parecia para caramba (risos). Mas quando eu comecei a fazer o filme, que foi gravado em ordem cronológica para que as atuações fossem crescendo, eu não filmei (o bebê), achei que não precisava, pois ele estava (simbolicamente) presente desde o primeiro fotograma. Aquele menino perpassa o filme todo. As pessoas vinham e me diziam “Petrus, como é impressionante esse não visto”.
No debate do Cine Ceará você disse que é mais fácil fazer também a fotografia dos filmes, para não perder tempo com discussões conceituais. Como é isso?
Eu fiz a fotografia de O Grão (2007) com o Ivo Lopes de Araújo, que é um grande profissional, nós somos bem afinados em termos de estética, somos da mesma geração, pensamos bem parecido. Mas quando foi para o Mãe e Filha não deu para ele ir. Aí decidi fazer. Eu já tinha fotografado alguns trabalhos. Percebi que o fato de eu mesmo fotografar tornava o processo mais rápido, por mais cansativo que fosse. É um processo exaustivo fotografar e dirigir ao mesmo tempo. Às vezes quero fazer até mesmo os travellings. Tem o ator para direcionar, tem de passar instruções a toda hora. Mas é rápido eu mesmo fotografar porque não tenho justamente essas discussões conceituais sobre a fotografia do filme. Tem que ser muito amigo e estar muito afinado com a proposta para dar certo essa colaboração. Lógico, nos próximos vou fazer fotografia com outras pessoas, até para mudar a estética dos filmes, porque senão fica só o meu gosto pela pintura, pela fotografia em si. É raro diretor fotografar.
É incomum, mesmo, o diretor também fazer a fotografia…
Com certeza. Meus filmes dependem muito da fotografia e da mise-en-scène, eles respiram, muito isso. As narrativas são muito simples. Por mais que, por exemplo, Clarisse tenha muita coisa cifrada, enigmas para resolver, as narrativas são simples. O que define são as coisas que acontecem dentro do quadro. O Mãe e Filha tem bem isso, os quadros são fixos e as pessoas se movimentam neles. Aliás, Clarisse poderia ser um Pai e Filha (risos).
Petrus, a nossa sociedade está passando por uma série de transformações, de como são encarados as diferenças e o papel da mulher. Pode-se dizer que o Clarisse tem uma chave feminista, por isso de romper com a opressão do macho. Tu acha que o cinema também precisa ser agente dessas mudanças?
O título Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois fala dela e o pai, dela e o irmão que se foi, mas fala muito da relação do filme comigo, da personagem comigo, às vezes eu me espelho na personagem. Se você faz cinema, de alguma forma está fazendo política, pelo menos o cinema autoral. Também o blockbuster, que faz muitas vezes um tipo de política com a qual eu não concordo, mas é política, sim. Então, eu acho que o Clarisse carrega essa bandeira feminista, da luta da mulher contra a opressão machista. Nós temos que nos policiar com relação a isso. Tem pessoas que dizem levantar a bandeira feminista, mas são completamente machistas. Antes, quando entre amigos, eu via um comportamento machista e não falava nada, sabe aquela coisa do deixa pra lá? Agora eu meio que aprendi a reprimir e a falar na hora. A gente tem de lutar contra isso. Então, acho que meu filme levanta essa bandeira feminista, de uma forma sutil, lógico, mas esse componente está lá. Tanto que logo depois da sessão aqui no Cine Ceará algumas mulheres vieram conversar comigo sobre isso, e eu fiquei muito feliz.
Falando sobre o começo, tu vem de uma família de cinema, tem um pai com uma carreira que dispensa apresentações. Para alguns, isso poderia ser problemático, representar uma sombra. Queria que tu falasse um pouco a respeito da tua relação desde cedo com o cinema, e de como tu encara essa potencial sombra.
No começo, quando eu resolvi fazer os curtas, era bem complicado, porque meu pai já tinha uma carreira e não havia como escapar das comparações. Eu tinha medo. Só não comecei a fazer cinema mais cedo porque era realmente uma sombra muito grande, meu pai já tinha uma filmografia consolidada, sobretudo aqui no Nordeste, tinha terminado de fazer o Corisco e Dadá (1996), o filme estava participando de festivais internacionais. O medo era grande, tanto que antes eu tinha uma banda de rock, queria fazer uma coisa completamente diferente para fugir um pouco disso. Mas teve uma hora que eu vi que o que tinha de fazer era isso mesmo (entrar no cinema) e eu resolvi encarar. No começo é complicado, até você se afirmar. Aí os curtas foram acontecendo. Eles possuíam, também, uma temática de sertão, mas com uma visão tão diferente, inclusive em termos de referência, pois tinha (Andrei) Tarkovsky, (Abbas) Kiarostami, enfim, era outra visão de cinema. Ao mesmo tempo, a gente tem a segurança de trabalhar junto hoje em dia. Eu fotografo os filmes dele, como Os Pobres Diabos (2013), então essa coisa ficou leve ao ponto de trabalharmos juntos e não ter problemas com relação a isso. É um nome de parceiro nos créditos.
E que legal que esse nome (o do pai) tá ali…
Claro, é um parceiro que tá ali do meu lado. Desde muito pequeno eu via papai montando os filmes em casa e, cara, isso é muito rico, é coisa que nenhuma academia vai te dar, toda essa vivência de cinema, você escutar as discussões sobre o começo de um roteiro, os bastidores, acompanhar sets de maneira privilegiada, isso é fantástico. A gente sabe o que deu errado e o que deu certo, você vai pegando o que funciona no set, qual é tipo de postura a se adotar, acompanha os fotógrafos. Claro, a academia te dá isso também, mas quando você termina uma faculdade existe só a teoria e a prática é totalmente diferente, mas muito diferente. E eu acompanhei isso desde muito cedo, foi uma experiência muito rica. Hoje eu fico feliz que meu pai tem o trabalho dele, que eu admiro bastante, e que de alguma maneira reverbera, lógico, nos meus filmes, e ele, de certa maneira, já começa a ter alguma influência minha. Você vê no Os Pobres Diabos a fotografia tem uns planos meus, o uso do scope, a mise-en-scène, ele já confia, entre eu e ele já virou uma parceria de muita confiança.. Eu sou super grato, feliz e honrado por ser filho dele.
Uma coisa que me chamou a atenção no Cine Ceará foi teu nome nos créditos de vários curtas. Como é a tua relação com essa nova geração, que já tá chegando com produções sólidas?
Cara, muita gente me liga, me manda e-mail solicitando equipamento e a gente vai atendendo conforme dá, porque não dá para atender a todo mundo (risos). É muito filme, a produção é muito grande. Algumas pessoas eu conheço, ou são amigos de amigos. São filmes feitos, muitas vezes, sem dinheiro algum. Você se sente no lugar da pessoa ali, começando um filme, numa época que tem uma quantidade enorme de filmes. Para a pessoa começar a ser reconhecida e a aparecer ela tem de dar uma ralada. No Ceará estão sendo feitos muitos filmes interessantes, geralmente com nada ou muito pouco dinheiro. Então, no que eu posso ajudar, eu ajudo. No Janaina Overdrive, por exemplo, eu fiz a correção de cor, refiz a correção de cor do Cinemão, tem uns para os quais eu cedi câmera, travelling, etc. No início da minha carreira eu recebi ajuda de algumas pessoas, então eu tento sempre retribuir. É uma cena que vai dar o que falar daqui a algum tempo. É todo mundo saído da escola de cinema agora, da Vila das Artes, que faz um trabalho maravilhoso aqui, da UFC (Universidade Federal do Ceará). Acho que o cinema cearense está num caminho bem interessante, o que tem de fazer é investir mais, pois as verbas ainda são muito escassas. É um cinema muito arriscado, que não tem medo. Sempre penso isso quando vejo, por exemplo, os filmes da Alumbramento, eles são livres, sem preocupações mercadológicas. O caminho é este mesmo, o que se está a fim de fazer, sem amarras. Acho que mais na frente, o cinema cearense vai acontecer de forma efetiva, assim como aconteceu em Pernambuco.
Tu falou no debate aqui no Cine Ceará sobre influências. E, embora Clarisse seja um filme completamente autoral, a gente nota que tem ali um flerte com signos do cinema de gênero. Como é tua relação com os filmes de gênero, tanto como cinéfilo quanto na condição de realizador?
Na verdade eu não sei direito como eu absorvo e processo isso, mas eu gosto e realmente vejo muito (filmes de gênero). Você pega, por exemplo, o Contos da Lua Vaga (1953), do (Kenji) Mizoguchi, aquilo bate em mim do mesmo jeito que – é até esquisito o que eu vou falar – um filme do John Carpenter, que reverbera muito forte. Agora, como eu digiro isso e boto pra fora, realmente não sei. Todo cinema que eu faço vem de coisas que eu gosto muito. Às vezes as pessoas se impressionam quando eu digo que gosto de Carpenter (risos). É fantástico. Por que eu posso citar Tarkovsky e não Carpenter? Wes Craven tem umas coisas que eu acho geniais. Eu acho interessante porque tem uma cinefilia que ignora esse cinema, como se fosse um subproduto. Eu consigo venerar o Carpenter e o Tarkovsky. São cinemas totalmente distintos, propostas totalmente diferentes, mas, para mim, eles estão no mesmo patamar. Lógico, Tarkovsky é Tarkovsky (risos), mas para mim o Carpenter é tão bom quanto, entende?
E sobre o projeto novo, O Barco? O que tu pode falar sobre ele?
Ele tá filmado, é baseado num conto do Carlos Emilio Correia Lima, escritor cearense, que conta a história de uma mulher que tem 24 filhos, cada um deles correspondendo a uma letra do alfabeto. Ela decifra o futuro por meio da posição dos filhos, formando frases. Mas aí o filho A decide abandonar a vila de pescadores – o filme se passa por volta de 1950 – o que causa uma revolução. É um filme de um homem em busca de romper…Olha aí o rompimento de novo (risos), só que desta vez com a sociedade matriarcal. As filmagens ficaram muito bonitas, os atores estão muito bem. Sâmia de Lavor, atriz cearense, Rômulo Braga, Everaldo Pontes e Verônica Cavalcanti formam um elenco muito afinado. Agora, o que muda é a luz, a forma de iluminar. De alguma forma, retoma o processo de Mãe e Filha, porque também utiliza basicamente luz natural, aproveitando bastante a chamada “hora mágica”, ou seja, os começos de manhã e o finaizinhos de tarde. Estou feliz com o resultado. Vi o copião de quatro horas, pré-montado, já que tinha um montador lá para ir alinhando o material. Agora, no que vai se transformar, não sei, porque meus filmes realmente mudam muito na sala de montagem. De qualquer maneira, é um filme mais solar, mais otimista, não é pesado como Mãe e Filha e O Grão, não é. É um filme mais lírico. Tem uma chave de mudança, mas é um filme do Petrus (risos).
Dá para perceber que tu é apaixonado pelo que faz, que a tua relação com o cinema é bastante visceral, então o que vai pra tela é sempre um fragmento teu…
Sim. Quando um autor faz um filme, um projeto que vem de você, cara, tu tá lá de alguma forma. Às vezes nem isso, porque, por exemplo, tem uns filmes do Carpenter de encomenda que são Carpenter, não importando de quem seja o roteiro. O que eu fico mais feliz é quando as pessoas vêm falar da minha assinatura, não sei se isso é bom ou ruim. Mas eu acho legal, porque você começa a definir uma caligrafia e as pessoas já percebem. Com relação à dedicação, o meu gostar de fazer cinema é muito intenso, eu me dedico muito, fico dias, meses montando, remontando. Tanto no set quanto na pós-produção, tudo é muito intenso. A parte que eu participo menos é a exibição em festivais, mas é que eu tinha uma coisa de não gostar de voar, mas já tá melhorando, tou começando a circular mais. Tem gente que pensa que é esnobismo, muito longe disso, é que realmente eu tinha uma onda com avião (risos). E essa parte de exibir o filme e conversar com as pessoas é onde ele se completa, porque até então tá com você e sua equipe. O filme se completa de verdade na tela. Eu fico feliz de fazer parte dessa novíssima geração – não sei mais se usam esse termo (risos) -, um grupo de cineastas super talentosos. Tem muita gente talentosa no Brasil, e eu acho que o cinema brasileiro só vai acontecer de verdade lá fora…que dizer, já tá acontecendo, essa coisa do Kléber (Mendonça Filho) com o Aquarius, em Cannes foi fantástico. O filme lá, na mostra competitiva de um festival gigantesco, como Cannes, fico muito feliz. Acho que nos próximos anos, até 2020, vai ter muito mais cinema brasileiro participando dessas mostras paralelas e até mesmo das competitivas, de Veneza, Cannes, Locarno, Roterdã, que são essas grandes vitrines. Enfim, eu fico muito feliz de fazer parte dessa turma nova e de ser reconhecido.
(Entrevista concedida em junho de 2016)
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