Um dos grandes nomes do cinema independente norte-americano, o diretor e roteirista Hal Hartley não é uma das figuras mais presentes nas telas – seu último filme a ser exibido comercialmente por aqui foi Fay Grim (2006), há mais de uma década. Mesmo assim, ele possui uma legião fiel de fãs, que ficam sempre à espera de um novo trabalho. Em uma carreira que começou no início dos anos 1980, já realizou mais de 35 projetos diferentes, entre curtas, longas, vídeos e programas de televisão. Premiado nos festivais de Cannes, Berlim e Sundance, foi o grande homenageado do Festival do Rio em 2015, quando esteve no Brasil pela primeira vez. Na ocasião, apresentava no país o aguardado Ned Rifle (2015), que segue inédito nas telas nacionais. Nós tivemos uma oportunidade única de conversar com o realizador na ocasião, e como esse seu último longa segue sem ser exibido por aqui, esse bate-papo permaneceu inédito. Ao menos, até agora. Aproveitando o lançamento da mostra O Cinema de Hal Hartley, que está acontecendo na Caixa Cultural Rio de Janeiro até 04 de fevereiro de 2018, com a apresentação especial de 14 longas assinados pelo diretor – inclusive Ned Rifle – nós publicamos, agora, essa entrevista exclusiva, na qual ele fala sobre o projeto, seus atores favoritos e sobre o futuro do cinema e da televisão. Confira!

 

Olá, Hal. Ned Rifle, seu último filme, é o terceiro capítulo de uma trilogia. Quando você fez o primeiro, As Confissões de Henry Fool (1997), já imaginava essas duas sequências?
Não, de forma alguma. Fazer Henry Fool, para mim, foi apenas a chance de realizar um grande filme. Mas, durante as filmagens, confesso que fiz uma ou outra piada, comigo mesmo, sobre a possibilidade de fazer outros filmes a partir daqueles personagens. Foi quando algo muito bacana aconteceu: me apaixonei por aqueles atores, por aquela família que formamos, e por isso foi fácil imaginá-los envolvidos nos mais diversos tipos de problemas. Volta e meia dizia: “bom, isso a gente deixa para o próximo filme”, ou “aquilo vamos aproveitar no longa seguinte”. A minha piada pessoal é que esse é o meu Star Wars (risos). Pelo resto da minha vida, me vejo envolvido com essa louca família e com o que irá acontecer a cada um deles, até estarmos todos bem velhinhos.

Em Hollywood, quando uma continuação é feita, na maioria das vezes é por motivos econômicos, em busca de maiores bilheterias. Imagino, no entanto, que esta não tenha sido a sua motivação…
Bom, com certeza não foi o único motivo. Porém, tenho minha própria companhia, que é mantida pelos filmes que faço, então a questão financeira sempre está na mesa. E Henry Fool é o meu filme com melhor desempenho comercial até hoje. Foi por isso que, sete anos após o seu lançamento, começamos a trabalhar no capítulo 2 – Fay Grim (2006), com a Parker Posey como protagonista. Foi um desafio, artisticamente falando, muito interessante. Mas, além disso, me possibilitou um novo olhar sobre os mesmos personagens. Percebi que poderia compreendê-los melhor.

 

As Confissões de Henry Fool foi premiado como Melhor Roteiro no Festival de Cannes. Um reconhecimento como esse também serviu de motivação para seguir escrevendo sobre os mesmos personagens?
Não necessariamente. Foi apenas algo legal que aconteceu. Mas, como disse antes, a ideia era anterior. Enquanto estava editando o filme – ou seja, longe do processo de escrita do roteiro – ficava ao mesmo tempo me perguntando: “o que farei depois disso?”. Uma coisa, no entanto, era certa para mim: se fosse continuar a história, neste segundo momento o que mais me interessava era centrar minhas atenções na Fay. Também pelo fato de que, até aquele ponto, ainda não havia feito um filme com a Parker Posey como protagonista. E, enquanto fazia o Henry Fool, ficava olhando para ela e pensando: “este é o tipo de atriz que eu gosto”. Ela é brilhante, tanto ao se posicionar em cena, de forma física, mas também ao vocalizar suas emoções. Ela é como Buster Keaton, entende? Uma das melhores.

 

Ela está ótima em um dos últimos filmes do Woody Allen, Homem Irracional (2015), não sei se você chegou a assistir…
Sim, vi e adorei. É exatamente isso que você está dizendo, ela pode fazer qualquer coisa. E era por isso que queria começar por ela. Mas, ao mesmo tempo, sabia que, caso fizesse a Parte 02, também teria que fazer a Parte 03, e esta seria sobre o filho. Foi quando me dei conta de que seria possível. Poderia esperar até Liam Aiken ficar velho o suficiente para contar a história que eu havia imaginado para o personagem dele.

Parker Posey e Hal Hartley durante as filmagens de Fay Grim

Você parece ter um relacionamento muito próximo, íntimo até, com seus atores favoritos, como Parker Posey e Martin Donovan. O que eles possuem de especial para que você siga trabalhando com eles?
Talvez seja diferente hoje em dia, mas nos anos 1990, eles eram atores que conseguiam perceber que eu estava fazendo algo diferente dos outros cineastas. Quem sabe fosse com os diálogos, ou com a postura física dos personagens. Não sei ao certo. Mas era algo novo para eles, e lembro de tê-los deixado frustrados na primeira vez em que tiveram que atuar do modo que eu queria. Mas, após fazerem do jeito que estava pedindo, e perceberem a diferença do que havíamos conseguido, juntos, era como se “ok, entendi”. Surgiu, entre nós, mais do que uma amizade – é claro, somos bons amigos – mas uma conexão. Começamos a falar na mesma língua. E isso é muito importante para mim. Por isso era tranquilo para todos nós seguirmos trabalhando juntos. O primeiro filme que fiz com Donovan, por exemplo, foi Confiança (1990). Quando o chamei para Simples Desejo (1992), já não era para ser o protagonista, tinha apenas um papel de coadjuvante. Disse para ele: “olha, não é o principal, mas é um bom personagem. Você gostaria de fazer?”. E ele, bem direto, respondeu: “claro”.

 

Uma vez estabelecida essa relação, fica mais fácil o trabalho?
Sim, pois já tínhamos uma experiência em comum. Então não eram mais necessárias tantas explicações. Era só: “ok, vá lá e faça o seu trabalho”. Com a Parker foi a mesma coisa, porém no sentido contrário. Ela desempenhou uma série de pequenos papeis comigo, até ter em mãos a Fay. Antes havia feito uma participação em Surviving Desire (1992), e também em Flerte (1995), até chegar o As Confissões de Henry Fool, no qual pode ser coadjuvante, mas certamente tem a melhor performance de todo o elenco. Foi quando me dei conta que queria seguir trabalhando com ela.

 

E com o Liam, como foi essa descoberta? Afinal, ele era somente uma criança em Henry Fool, com 5 ou 6 anos…
Exato, nunca sabemos o que irá acontecer quando as crianças crescem, não é mesmo? Mas trabalhar com ele foi a melhor experiência que já tive com uma criança. Ele parecia entender exatamente o que precisávamos em Henry Fool. E, aos 16 anos, quando fizemos Fay Grim, já tinha uma longa carreira e estava bem mais seguro. Sabe, sem estrelismo de nenhum tipo. Não era “o ator”, era apenas um garoto no set que sabia o que tinha que fazer. Era como se fosse o meu irmão mais novo. Ele gostava de ‘não atuar’, simplesmente viver o momento, e eu entendia. Sabia como lidar com isso.

Hal Hartley e Liam Aiken, então com 6 anos, no set de As Confissões de Henry Fool

Era mais fácil trabalhar com ele quando criança ou adolescente?
Era apenas diferente. E por isso segui de olho nele, enquanto os anos se passavam e, ao menos uma vez por ano, ligava e o convidava para um café para conversarmos um pouco. Apenas para ver de perto como estava crescendo. Nem tinha escrito nada a respeito desse terceiro filme, mas sabia que teria que ser com ele. Então, lembro como se fosse hoje, ele já tinha 19, e entrou no restaurante em que eu o esperava, e era como se fosse a própria Parker caminhando. No intervalo de um ano, um ano e meio, aquele garoto havia virado um jovem adulto. E tivemos uma ótima conversa, ele realmente estava levando a sério a profissão de ator, havia decidido que era isso que queria fazer, e tinha fortes ideias a respeito de que tipo de atuação desejava se envolver. E enquanto falava sobre quais tipos de personagens gostaria de fazer, percebia o quão parecido com Martin Donovan ele havia se tornado. Assim me convenci de que havia chegado o momento de Ned Rifle: ele realmente era um pouco de cada uma daquelas duas pessoas que eu tanto admirava.

 

Liam Aiken pode ser o protagonista, mas Ned Rifle também traz uma dramática atuação de Aubrey Plaza, uma atriz mais ligada à comédia. Como foi trabalhar com ela?
Foi incrível. Mas preciso dizer: ela estava um pouco receosa no começo das filmagens. Mas é muito corajosa, e conseguiu dar o seu melhor. Ela é também muito disciplinada, não tem medo de trabalhar duro, e acho que foi por isso que aceitou esse desafio. Ela é representada pelo mesmo agente da Parker Posey, e como essa já estava envolvida no projeto, tudo ficou mais fácil. Ele foi um dos primeiros agentes que procurei para me ajudar com essa outra personagem feminina do filme, e foi quando me indicou Aubrey. Não a conhecia, e por isso passei semanas assistindo à maioria dos trabalhos anteriores dela. Tinha, de fato, muita comédia, produções meio que padronizadas, e aquilo não era atuação, era só uma fórmula. Até que a assisti em um pequeno filme chamado Sem Segurança Nenhuma (2012), e foi quando se deu o clique! Somente ali tive certeza de que ela seria a atriz certa para o meu filme.

 

Você mencionou o Star Wars, mas ao assistir a Ned Rifle a primeira referência que me veio à mente foi Boyhood: Da Infância à Juventude (2014), por trabalhar com os mesmos atores em diferentes momentos das suas vidas. Como você vê o atual cinema independente norte-americano?
Não sei dizer, principalmente por não trabalhar em Hollywood. Mas, em Nova Iorque, por exemplo, que é onde vivo, posso afirmar que o cinema independente não existe mais. Não é possível viver desse tipo de cinema hoje em dia. Eu, mesmo, tive que mudar e fazer coisas diferentes. Filmes de baixo orçamento, financiados de forma independente, até podem existir, mas não oferecem nenhum tipo de segurança. No final do último século era diferente. Mais ou menos como foi nos anos 1940 ou 1950 para a literatura, quando todos pareciam estar escrevendo o próximo grande romance americano. Não custa tanto, nos dias de hoje, fazer um bom filme. Então, é interessante perceber como os mais diferentes tipos de cineastas estão conseguindo contar suas histórias. Mas, do ponto de vista comercial, eles não são viáveis. E é essa a questão: como levar ao público todos estes longas que estão sendo feitos? É por isso que acredito tanto na televisão atualmente.

Aubrey Plaza e Liam Aiken em cena de Ned Rifle

Ned Rifle foi premiado no Festival de Berlim. O que pensa sobre festivais em geral?
O que percebo é que os festivais têm adquirido uma importância cada vez maior, principalmente para os realizadores desse tipo de cinema independente. Até os anos 1990 era muito corações e mentes, entende? Muitas conversas, encontros e negócios sendo feito a todo instante. Hoje é mais movido pela curiosidade, para descobrir o que os outros estão fazendo. Mas talvez seja apenas uma percepção egoísta da minha parte, afinal, estou mais velho. Gosto de apenas estar presente e assistir aos filmes dos meus amigos, ou dos novos talentos. Antes, nunca havia tempo para isso. Agora dá pra ser mais casual.

(Entrevista feita ao vivo no Rio de Janeiro)

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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é crítico de cinema, presidente da ACCIRS - Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (gestão 2016-2018), e membro fundador da ABRACCINE - Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Já atuou na televisão, jornal, rádio, revista e internet. Participou como autor dos livros Contos da Oficina 34 (2005) e 100 Melhores Filmes Brasileiros (2016). Criador e editor-chefe do portal Papo de Cinema.
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