Karim Aïnouz é um dos nomes mais importantes do atual cinema brasileiro. Nascido no dia 17 de janeiro de 1966 em Fortaleza, foi em Berlim, no entanto, o lugar que escolheu para morar. E é nestas duas cidades onde se passa seu mais recente longa como diretor, Praia do Futuro. Após ter trabalhado ao lado de diretores como Walter Salles (roteiro de Abril Despedaçado, 2001), Sérgio Machado (roteiro de Cidade Baixa, 2005) e Marcelo Gomes (é codiretor de Viajo porque Preciso, Volto porque te Amo, 2009), Aïnouz chega agora no seu quarto longa como realizador, e causando polêmica: exibido com um sucesso respeitoso no Festival de Berlim, o filme estrelado por Wagner Moura chegou aos cinemas brasileiros recebendo aplausos dos cinéfilos e causando protestos entre os espectadores que se espantaram ao assistir ao intérprete do ‘Capitão Nascimento’ (Tropa de Elite, 2007) em uma trama assumidamente gay. Durante o lançamento de Praia do Futuro o diretor conversou com exclusividade com o Papo de Cinema, e falou sobre esse e outros assuntos. Confira!
Como surgiu a história de Praia do Futuro?
O filme Praia do Futuro surgiu faz tempo, na verdade. Só não tinha virado realidade, mas estava comigo há um bom tempo. Nasci me Fortaleza, a Praia do Futuro sempre fez parte da minha vida. No começo da minha carreira profissional, fiz dois curtas lá, durante a década de 1990. Mas não havia sido suficiente, aquela paisagem ainda tinha muito a dizer pra mim. E pouco tempo atrás, quando estava no Brasil de férias, visitando minha mãe – que ainda mora por lá – mas com saudades de casa, de Berlim, começou a surgir esse tesão de filmar lá e cá, entende? Mas ao mesmo tempo, me perguntava: teriam que ser dois filmes? Ou seja, os cenários surgiram para mim antes mesmo da história.
E como que estes personagens entraram nessa proposta?
Primeiro me veio à mente essa vontade de dialogar com elementos clássicos, como um super-herói, e daí a figura do salva-vidas. É um cara real, pé no chão, mas ao mesmo tempo capaz de atos heroicos. Assim tinha alguém que vivia na praia, mas teria que ser um cara não muito popular, daqueles que passam o tempo todo olhando para o mar, esperando alguém que possa ir salvar. É uma profissão nobre, elegante.
Isso nos remete a um trabalho antigo teu, não?
Sim, com certeza. Um dos primeiros curtas que fiz se chamava Paixão Nacional (1996), e tinha esse garoto que tá sempre na praia e um dia some no mar, apenas para aparecer depois do outro lado do oceano, num lugar onde, enfim, possa ser feliz. Foi daí que me veio a conexão: e se esse salva-vidas fosse embora para Berlim? Assim começamos a traçar paralelos entre os dois lugares. Não queria apenas filmar na Praia do Futuro, mas queria aproveitar esse título, que pra mim é muito poético. Evoca muitas coisas em mim.
Quais as relações que via ser possível estabelecer entre a Praia do Futuro e Berlim?
São lugares opostos, radicalmente, mas também complementares. Meio que primos, entende? A Praia do Futuro era para ser o bairro do progresso na cidade, foi pensado para isso, mas daí quando começaram a ocupar descobriram o lance do sal, que corrói tudo. Crescer, ali, se tornou impossível. Assim consegui entender minha fascinação por Berlim, pois é um lugar que se reconstruiu, estava devastado e se reergueu. Quando você chega lá é como entrar em um canteiro de obras, tem construções para todos os lados. Mas daí você se pergunta: vai se desenvolver para qual lado? Queria aproveitar estes traumas históricos, mostrar uma história bonita de um cara que fez a travessia de um lugar a outro, na esperança de encontrar um novo mundo. Havia um encantamento com a possibilidade de fazer um filme que fosse como uma impressão íntima de um fato histórico. Os dois irmãos que se separam são como duas cidades que estão longe, mas conectadas. Onde isso tudo poderia dar? Essa era a pergunta que me movia.
Você escreveu o filme pensando no Wagner Moura, em desconstruí-lo?
Essa era uma vontade dele, na verdade, que abracei com todas as forças. Achei que seria muito bom fazer isso. Tenho com o Wagner um namoro de muitos anos, o conheci num dos meus primeiros trabalhos, quando roteirizei o Abril Despedaçado (2001). Ele tinha um papel muito pequeno nesse filme, mas foi o suficiente para ficarmos amigos. Sempre soube que para ele teria que ser um papel potente, importante, e isso ainda não havia acontecido em nenhum dos meus trabalhos anteriores. Mas quando mostrei o roteiro do Praia do Futuro para ele, vi que o deixei encantado. Essa confiança dele no projeto foi decisiva. Agora, mexer na imagem dele, esse foi um segundo momento. Eu não estava aqui quando aconteceu o fenômeno Tropa de Elite, portanto não fui contagiado por tudo aquilo. Minha imagem dele ainda era de um garoto que chegava no set bem discreto, mas aos poucos deixava transbordar uma energia incrível. Só conseguia olhar para ele e pensar: como vou conter esse vulcão, estimulá-lo até o momento da erupção mas não permitir que saia do controle. Trabalhos muito juntos para moldá-lo para esse papel.
E os demais atores? Como foi a escolha do elenco?
Desde o início sabia que queria trabalhar com um elenco limitado, não mais do que dois, três personagens. E queria que fossem fisicamente diferentes e também com personalidades distintas. Eles precisavam ser opostos e complementares, assim como as duas cidades. O Clemens Schick, esse alemão incrível, veio do teatro, é um cara acostumado com experimentações, ao mesmo tempo que já fez filmes do James Bond! E ele tem aquela cicatriz no rosto, tem tatuagens… é muito humano! Fiquei encantado com a ideia de tê-lo como um soldado que voltou do Afeganistão, com uma força interna muito grande, tudo através do olhar, com gestos contidos. Era um contraponto bonito ao personagem do Wagner. O Jesuíta Barbosa foi através de pesquisa, fizemos vários testes, conversamos com vários garotos, pois sabia que não encontraria alguém que estivesse pronto e que fosse tão jovem. Mas quando ele apareceu na nossa frente foi incrível.
Você precisou ensaiar muito com os três?
A gente ensaiou muito antes, quando chegou na hora das filmagens permiti que buscassem dentro deles os personagens. Gosto disso, de ser mais instintivo. Cada um deles representa um momento específico do filme, são como títulos que juntos formam uma tríade, com texturas muito próprias. Uma cena deles que me comoveu foi quando o irmão fala da morte da mãe, e o outro só observa. São dois universos tão distintos! Um caladão, o outro prestes a explodir. Exatamente o oposto das personalidades dos atores! E se cria uma fricção interessante ao colocar um ator mais experiente ao lado de um novato, isso é muito bom. Brincar com três caras tão diferentes, porém a serviço de um mesmo objetivo.
Praia do Futuro é um filme sobre relacionamentos masculinos. Houve momentos de dúvida sobre algumas cenas em particular?
Acho que não, todo mundo embarcou no projeto sabendo exatamente o que iria fazer. Essa coisa de falar do masculino era algo que queria muito fazer. Tive três trabalhos seguidos com protagonistas femininos, tava na hora de entrar no universo dos meninos. Sabe, todos esses elementos – motos, mar, força – queria descobrir como traduzir isso no cinema, estava curioso. Ficava me perguntando como fazer uma cena de afogamento, aquilo, sim, foi complicado. Tem que ter muita técnica, muito cuidado, e ainda ter dramaturgia. Foi uma combinação e tanto.
E as cenas de sexo? Imagino que não tenham sido experiências muito confortáveis para os atores…
Por quê? Só porque eram dois homens juntos? Olha, se um ator chega pra mim e pede pra usar tapa-sexo, dublê de corpo.. bom, eu digo “valeu, mas vai embora!”. Tem que ser verdadeiro, entende? E quem trabalha comigo sabe disso. É a mesma coisa que usar dublê numa cena de ação, é muito complicado pra ficar convincente, depende muito. É claro que tudo é muito conversado, trabalhamos juntos antes das filmagens. Cada ator sabe muito bem qual é a natureza do seu personagem. Só que comigo não funciona essa história de que “nu tem que ter uma razão”… Por quê? Qual a diferença? Eu acho que não, se a história pede, tem que fazer. E é preciso desenvolver uma relação com o elenco de muita intimidade, respeito, confiança. Descobrir os limites de cada um, ensaiar até chegar no ponto certo. O Wagner passou dois meses em Berlim antes das filmagens, pra conhecer o lugar, o Clemens, um se envolver com o outro. Tem beijo na boca? Vai ter que tirar a roupa? Bom, se quer ser ator, tem que saber se aventurar. Fico muito grato pela confiança que os três depositaram me mim. Complicado foi o afogamento, o resto foi tranquilo (risos).
A temática gay tem sido cada vez mais presente no cinema brasileiro. Na sua opinião, a que se deve isso?
Acho que é uma combinação de duas coisas muito bonitas. Primeiro, sou da opinião de que o mundo está mudando para melhor. Há mais de cem anos existia escravidão, por exemplo, que é algo que está praticamente erradicado. Hoje em dia há mais tolerância, uma compreensão melhor sobre nós mesmos. E depois, tem a ver com o fato do próprio mercado estar mais aberto, as pessoas querem ver esse assunto nas telas. Desde o Flores Raras (2013), do Bruno Barreto, no ano passado – que é um filme muito bonito – o público começou a se acostumar com essa ideia. Ali tinha a Gloria Pires, que é uma das nossas maiores atrizes, na cama com outra mulher. E quem reclamou? Ninguém! Com o Wagner está sendo um pouco diferente, mas isso diz respeito ao machismo do brasileiro. Qual o problema de duas pessoas se apaixonarem? Desde quando o amor é um perigo para a sociedade? As reações quanto ao Praia do Futuro tem sido muito pontuais, e se há um incômodo é importante discuti-lo. O que está incomodando? Há essa questão moral, evidentemente, mas ela vai muito além de apenas um filme. E se servimos para abrir essa porta, já estou feliz.
Praia do Futuro circulou por vários festivais e agora está nos cinemas de todo o Brasil. O que você espera que o público encontre no filme?
Sabe quando você vai assistir a uma ópera, mesmo sem entender nada, e no final fica arrebatado? Essa é a reação que busco nos espectadores de Praia do Futuro. Quero que as pessoas mergulhem nestas duas histórias de amor, desses dois caras que se apaixonam, desse irmão que sente falta do outro. Como uma viagem, que sintam todas as etapas dela. É uma ideia muito romântica, como se o filme pegasse o público pela mão e o convidasse para embarcar nessa travessia, literalmente e também no circuito de cada personagem. Estou muito curioso para saber se isso vai dar certo, as reações são muito pessoais. É cinema no sentido na magia do sonho, de provocar encantamento. Lembro de A Estrada da Vida (1954), do Fellini, que tem um final absolutamente arrebatador. Cinema italiano faz isso tão bem, porque nós, brasileiros, também não podemos? Cinema deve entreter, mas é muito bom quando consegue provocar polêmica, discussão, instigar, provocar…
(Entrevista feita ao vivo em São Paulo no dia 13 de maio de 2014)
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