Criada apenas pela mãe, a diretora Susanna Lira confessa que muito da agenda cultural que tinha quanto criança era aguardar pelo novo filme dos Trapalhões, que durante os anos 1970 e 1980 chegavam às telas regularmente duas vezes por ano: durante as férias de verão e também no descanso do inverno. A cada seis meses, jovens e adultos de todo o Brasil podiam se deparar com as novas aventuras do quarteto formado por Renato Aragão, Dedé Santana, Mussum e Zacarias. Além disso, eles estavam também presentes todo domingo, na telinha da Rede Globo, em um programa que era líder de audiência no seu horário. Essa proximidade mexia com muita gente, e com Lira não foi diferente. No entanto, se muitos torciam pelo carisma do Didi, se encantavam com os galanteios do Dedé ou se emocionavam com a ingenuidade do Zacarias, era com a malandragem do Mussum que a futura cineasta mais se empolgava. Tanto que, vinte e cinco anos após a morte do humorista, ela lança nos cinemas Mussum: Um Filme do Cacildis, documentário preocupado não apenas em prestar uma homenagem ao artista que tinha – e tem até hoje – milhares de fãs, mas também em revelar quem era o homem por trás da celebridade. Para tanto, tivemos um Papo de Cinema com a diretora, que falou um pouco mais sobre o projeto. Confira!
Olá, Susanna! Como surgiu a ideia do Mussum: Um Filme do Cacildis?
Meu primeiro filme havia sido sobre o Zé Bonitinho, chama Câmara, Close! (2005). Ou seja, desde sempre essa coisa do comediante já me chamava atenção. Achava muito injusto como o Jorge Loredo, por exemplo, era tratado. Ele era um grande ator, um cara que havia se formado em Direito, era do mesmo nível dos grandes comediantes estrangeiros. Mas havia ficado preso em um só personagem. Depois, enveredei por outro caminho, construí uma filmografia bastante diversificada, mas essa questão seguiu comigo. Até que, quatro anos atrás, uma amiga me sugeriu fazer um filme do Mussum. Afinal, ele sempre foi o meu Trapalhão favorito. E também havia o facilitador que eu tinha contato com os filhos dele. Tudo parecia ir nessa direção. E me chamava atenção nele esse lado popular, um fã da Mangueira, ser do Rio de Janeiro, tudo isso contribuída para que eu me identificasse com ele. Em outras biografias que realizei antes, encontrei muita dificuldade em lidar com a família, e nesse caso foi muito tranquilo. Muitos já morreram, mas o Mussum segue vivo até hoje. Os memes que fazem com a imagem dele, por exemplo, são incríveis. Da pesquisa que acabei fazendo, descobri adolescentes e jovens que fazem isso hoje em dia, e nem chegaram a conhecê-lo. Todo artista quer ser para sempre. E o Mussum era forévis. Era um ser humano forévis.
Mas por que o Mussum, dentre tantos grandes comediantes nacionais? O que o ele tinha de diferente e especial?
Exatamente por isso. Diferente de outros comediantes, o Mussum segue presente até hoje. Da cerveja a linhas de roupas. Sem falar nos memes. Ele está narrando a nossa desgraça de uma maneira leve e engraçada. Isso é uma coisa bem dos brasileiros, de rir de si mesmo. Keanu Reeves, Obamis, ele tá o tempo todo presente. Toda hora tem um meme novo. Por ele ter se mantido tão eterno, eu acho. Nesse ano de 2019 se completam 25 anos da morte dele. E de tanto que ele está presente, não se chega a ter a noção de todo esse tempo. Ou seja, além dele ser o meu preferido, também por seguir presente no nosso cotidiano. Ele permanece. É um fenômeno muito interessante.
Susanna, a tua produção é impressionante. No ano passado você esteve circulando por festivais com o ainda inédito Torre das Donzelas (2018), agora está lançando Mussum: Um Filme do Cacildis, e entre os dois teve ainda o Meu Corpo é Mais (2018). Como lidar com tantos temas diferentes?
Na verdade, os projetos vão acontecendo meio que juntos, um em paralelo com o outro. O Torre das Donzelas, por exemplo, levou sete anos para ser concluído, o Mussum foram quatro. Começo a planejar cada um deles, e o que acontece é que vão acontecendo em tempos próximos. O Torre ficou pronto no final de 2017, o Mussum em 2018. Vão se acumulando, mas são pensados com bastante antecedência. O filme que vou fazer nesse ano, para você ter uma ideia, comecei a planejá-lo dois anos atrás. Sou workaholic mesmo, meu marido é meu sócio, e vivo para o trabalho. Tudo isso porque preciso falar para as pessoas o que penso. O Meu Corpo é Mais é quase uma autobiografia sobre o meu corpo e o que penso sobre isso. Queria discutir sobre os corpos excluídos, aqueles que não se encaixam em um padrão publicitário. Ele acabou vindo de uma forma urgente, e como tinha um canal de tevê parceiro, foi possível acelerá-lo um pouco. Mas fazer cinema não é simples, tudo é muito demorado, precisa ter recurso, tem que ter muita paciência e saber esperar. Então, por isso que sempre tenho vários engatilhados, pois quando estou trabalhando num, é porque os outros estão estacionados.
Ao assistir ao Mussum: Um Filme do Cacildis, o espectador mais atento poderá identificar várias referências a outros documentaristas nacionais. Quais estilos do gênero te guiaram na realização desse trabalho?
Olha, se pudesse dedicar esse filme a alguém, seria ao Jorge Furtado. Afinal, ele é totalmente inspirado no Ilha das Flores (1989). Até cheguei a falar com o Jorge, algum tempo atrás, e disse que iria dedicar o filme a ele, mas não aceitou – ele é muito modesto. A partir do momento em que decidi abordar o mundo de um dos Trapalhões, sabia que não poderia assumir um tom muito pesado. Mesmo com a questão racial, que era importante e não poderia ser ignorada. Tinha que ser sério, mas com ironia. O Ilha das Flores tem isso. É um filme que me marcou profundamente, fala de coisas muito contundentes, mas de forma irônica, burlesca. Foi a minha principal referência. Nesse filme, especialmente, foi tudo Furtado. Tirei algumas coisas também do Eu Não Sou Seu Negro (2016), do Raoul Peck, que é um filme incrível. Mas, no resto, foi Furtado total. Era preciso fazer com que o público entendesse o contexto e a importância do que queria discutir, porém sem afastá-lo. Refletir sobre o que estava sendo dito.
Mussum teve uma história incrível, com cinco filhos de cinco mulheres diferentes, e participou de grupos muito importantes, na música, na televisão e no cinema. E tudo isso é abordado. Teve alguém que você quis entrevistar e não conseguiu?
Sim, uma pessoa muito especial, que teria sido fundamental: o Bigode, dos Originais do Samba. Chegamos a marcar, enviei uma equipe do Rio de Janeiro justamente para encontrá-lo, e ele não apareceu. O que me disse depois é que confundiu a agenda, e acabou não rolando. O Bigode fez parte desse passado dele, os Originais era a vida do Mussum, ele era um músico acima de tudo – os Trapalhões foram um momento, mas, antes de qualquer coisa, ele era um músico. Quando se faz um filme sobre um cara que todo mundo gosta, se corre o risco de acabar com um ‘arquivo confidencial’, só co elogios. O Mussum era muito íntegro, tinha milhares de amigos, todo mundo o admirava. Por isso decidimos ir para outro lado, então. Amigos, colegas, parentes. O Joel Zito, por exemplo, foi chamado porque é alguém que admiro muito, e com ele seria possível refletir sobre o racismo de uma maneira mais incisiva. Ele trouxe coisas muito boas.
Como foram as abordagens com os filhos e com os ex-colegas dele, Dede Santana e Renato Aragão?
Começamos o filme há um tempão. O Dede e o Renato foram os últimos a serem entrevistados, e porque eles tinham que estar no filme, não dava para fazer sem eles. Os dois foram muito solícitos e generosos na entrevista. O Dede era muito próximo, ele e o Mussum eram muito amigos. O Renato foi tranquilo, e concordou em ceder imagens de todos os filmes que a gente precisava. Ou seja, tivemos apoio de todo mundo. O Mussum era um cara que agregava, muito próximo dos amigos. Como o Joel Zito fala, figuras como o Mussum, desse cara malandro, temos vários na dramaturgia. Mas o Antônio Carlos, que é quem eu queria desvendar nesse filme, a proposta era outra. E ele era um cara extremamente comprometido, que brigava para chegar no horário, de personalidade muito rigorosa. O Mussum era uma figura construída, um personagem. Para ter o sucesso que teve, lhe foi exigida muita disciplina e rigor. O contato que tivemos com os filhos foi tranquilo também. Todos muito sérios, colaborativos, leram o roteiro, e mesmo nos assuntos mais delicados, nunca apresentaram objeções. Tivemos muita liberdade para seguirmos o caminho que achava mais adequado. Não falamos com as mães, no entanto, porque os filhos ofereceram a união que precisávamos. Eles são bem unidos. Fiquei impressionada como o Mussum conseguiu deixar esse legado.
O quanto o Juliano Barreto, autor da biografia Mussum Forévis, contribuiu com esse filme?
Cheguei a conversar com ele, muito tempo atrás. O livro que ele escreveu é maravilhoso, um primor. Só que aquilo é literatura, e estou fazendo cinema. São propostas diferentes. Por isso, acabamos fazendo uma pesquisa paralela. Se fosse fazer um filme sobre o livro dele, teria que ter muita ilustração, não dava para ficar apenas falando. E nem tudo se tinha, apesar das muitas imagens de arquivo que conseguimos recuperar. Fizemos um trabalho à parte, do que tínhamos ao nosso alcance. Ou seja, não tivemos uma relação direta com o livro. Até pelo audiovisual ser um meio diferente. Músicas, imagens, é todo um conjunto. A literatura não tem esse compromisso. Tivemos que buscar um outro caminho.
Está sendo filmada, também, uma versão ficcional da história do Mussum, com Ailton Graça como protagonista. Você teve alguma ligação com esse outro projeto? Ambos são partes de um todo, ou propostas bem distintas?
Acredito que são bem diferentes. Optei por fazer um filme de arquivo. Já a ficção que estão fazendo será baseada fortemente no livro do Juliano. Tem tudo para ficar incrível. O Ailton é um ator maravilhoso. Eles foram assistir ao nosso filme numa sessão do Festival Mimo. Temos uma relação completamente amistosa, confluentes. Nenhuma compromete a outra.
Qual foi o envolvimento do Lázaro Ramos, que além de narrador é apontado também como tendo colaborado com o roteiro? Como ele acabou se envolvendo com esse projeto?
A participação do Lázaro foi total. Ia mandando cortes provisórios do filme, além de um áudio-guia, para que ele já fosse se habituando. E ele, desde o começo, com os primeiros offs, ao escolher o tom que seria empregado, sempre deu muitas sugestões. Questionava tudo. Foi um consultor pleno, o tempo todo. Para achar o tom certo, falar ironicamente de um assunto certo, conversamos sobre cada decisão. Tanto para ele, quanto para mim, era importante falar do Antônio Carlos, e não apenas no Mussum. Era preciso pontuar isso. Tivemos uma sintonia muito grande, e por isso posso dizer que a ajuda dele foi preciosa. Ele não chegou a escrever o roteiro, mas comentou tudo, e trabalhávamos a partir disso. O texto ficou muito orgânico, ele tava inteiro ali. Quando você fala com ele, se percebe que é um verdadeiro fã do Mussum. Eu e o Lázaro, juntos, fomos descobrindo essa proposta, de como falar de um cara, redescobrir esse cara. Ele ficou muito empolgado por conseguir se envolver em algo sobre alguém que tanto admira.
Você tem desenvolvido uma longa filmografia como documentarista. Tem interesse em trabalhar também com ficção? Quais seus próximos projetos?
Então, sermpre é algo que mexe com a gente. Tem a Rotas do Ódio (2018-2019), série que escrevi e dirigi, que foi minha entrada oficial na ficção. Nesse momento, estou com dois projetos, um deles é uma coprodução com Uruguai. Mas tenho alma de documentarista, não posso fugir disso. Meu próximo filme será sobre o Casagrande, o jogador de futebol. Com ele pretendo discutir a questão politica, a música, o rock dos anos 1970, quero fazer esse recorte de arquivo. Quero fazer algo também sobre meu pai, que é uma relação delicada. Não vou deixar nunca de combinar as duas coisas, pois essa é a maneira como estou contribuindo com o debate. O meu trabalho é a minha militância. Não vou conseguir nunca deixar essa urgência de lado. Questões que me inquietam, temas sociais, vão estar em todos os meus trabalhos.
(Entrevista feita por telefone na conexão Rio de Janeiro / Porto Alegre em abril de 2019)
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