Nascido no interior da França na virada dos anos 1980, Nicolas Maury é um nome em ascensão no cinema europeu. Mas seu esforço para ocupar esse espaço não é de hoje. Sua estreia foi numa participação não-creditada em Os Que Me Amam Tomarão o Trem (1998), drama de Patrice Chéreau estrelado por Valeria Bruni Tedeschi e Jean-Louis Trintignant. Entre a presença constante no teatro e aparições em projetos dirigidos por Philippe Garrel e Olivier Assayas, se tornou uma figura de fato popular ao ser chamado para o elenco principal da série Dez Por Cento (2015-2020), que ao longo de quatro temporadas (todas disponíveis no Brasil pela Netflix) foi premiada no Emmy Internacional e ganhou refilmagens no Canadá, Turquia, Índia, Inglaterra e até nas Filipinas! Inquieto, ele dá mais um passo agora, surgindo como roteirista e diretor – além de protagonista – da comédia dramática Garoto Chiffon (2020), que teve sua primeira exibição no Festival de Cannes e finalmente ganhou lançamento nos cinemas brasileiros. Aproveitando a oportunidade, o Papo de Cinema conversou com o artista, em um bate-papo inédito e exclusivo, sobre o quão pessoal lhe é esse projeto e como foi dirigir astros e estrelas que tinha como ídolos. Confira!
Olá, Nicolas. Prazer falar contigo. Pra começar, queria te pedir que falasse um pouco sobre a expressão que dá título ao filme, ‘Garoto Chiffon’. O que isso representa para você?
Ah, fala de novo. A sua pronúncia é muito bonita!
Garçon Chiffon (no original em francês)?
Aêêê! Bravo! Ficou ótimo! Mas vamos lá. Qual o significado de “Garoto Chiffon”? Ao invés de chamar de “sensível”, ou mesmo “afeminado”, preferi fazer uma referência a essa química entre mãe e filho. Não que seja algo estranho. Pra mim, “chiffon” é um estado emocional. Ser chiffon. Ao mesmo tempo, adoro Roland Barthes e Jacques Lacan. Através dessas leituras, me dei conta que “chiffon”, em inglês, é um tecido luxuoso, enquanto que na França é visto como algo velho, em desuso. Até meio sujo, ultrapassado. Adorei essa dicotomia. Há um eco entre as duas leituras.
Personagens homossexuais e suas mães são constantes no cinema. O que a relação de Jérémie e Bernadette possui de diferente?
Sim, concordo com você que é comum vermos no cinema rapazes gays e suas mães. Às vezes, de um modo até caricatural. Por outro lado, em Garoto Chiffon, essa é a grande história de amor. Muitas vezes, quando o personagem gay é emocional, a mãe surge por outro viés, mais prático e funcional. Até maluca, ou mesmo histérica, bastante conservadora. Bernadette, no entanto, é um lugar. A vejo como um cenário, onde o filho pode se recolher. No começo, a vemos como um pequeno riacho, que aos poucos se transforma num rio. Porém, mais adiante, percebemos que ela é um lago, e rapidamente passamos a vê-la como um oceano. Ela permite que Jérémie consiga encarar seus problemas de uma maneira objetiva. Muito pelo fato de ser uma mulher, alguém que tenta levar a vida de maneira leve. Ela se permite amar de novo. E ser mais uma vez feliz. Essa é a lição que o filho precisa aprender.
Um traço marcante da personalidade de Jérémie é o ciúmes. Por qual motivo decidiu abordar esse sentimento?
Penso que o ciúme não é tão frequente nos filmes como é na vida real. É visto na ficção como um sentimento ruim. É comum dizer: “se você é ciumento, é porque não ama de verdade”. Acho que isso está errado. O ciúmes é um tabu na nossa sociedade, porque é importante ser cool. Mas não é assim que as coisas funcionam. Às vezes, é seu direito sentir ansiedade, e não ficar tranquilo com determinada situação. Sinto que fala diretamente comigo pela admiração que sinto por Proust. Todos os grandes autores escreveram sobre ciúmes. É um assunto interessante. Para mim, é uma demanda. Quem sente ciúmes, está fazendo um pedido ao seu companheiro: “por favor, olhe para mim”. Esteja comigo. Por vezes, pode ser uma doença, ou uma condição psiquiátrica, mas na maioria é um sentimento bastante curioso.
Do sucesso na série Dez Por Cento como ator para estrelar seu próprio longa, como diretor, roteirista e protagonista. O que te motivou a dar esse passo audacioso?
Porque percebi que eu era a melhor opção para essa história. Era o melhor ator, e o melhor diretor. Afinal, é a minha música. Importante lembrar, minha carreira começou muito antes do Dez Por Cento, mesmo que fosse menos conhecido. Comecei no teatro, dirigi peças. Tenho uma longa história como artista, não se resume apenas ao que fiz na série. No meu próximo filme, por exemplo, penso que essa percepção ficará mais evidente, pois será um personagem que não tem nada a ver com esses anteriores. Não será nada autobiográfico.
Vamos falar do elenco. Nathalie Baye é um patrimônio do cinema mundial. Foi difícil atraí-la para esse projeto?
Não foi difícil, pois Nathalie diz “sim” ao roteiro e à história. Isso é o que importa para ela. Vem da escola do Truffaut, e quando você teve a oportunidade de atuar com um mestre, esse aprendizado irá se refletir por toda a sua carreira. Passamos muito tempo discutindo o texto, os diálogos. Queria que tudo fosse explicado, que fizesse sentido. Nathalie Baye é o tipo de atriz que te faz perguntas o tempo todo, e adoro isso. E sempre antes, durante a preparação, pois quando chega no set, precisa estar pronta. Ela aparece, faz sua parte e era isso. Não há questionamentos de última hora. Queria que ficasse claro a respeito da personagem, da minha presença, e da relação dos dois. Foi uma grande sorte ter contado com ela no meu filme.
Como foi o trabalho com Arnaud Valois? As cenas entre vocês são interessantes, pois vão do toque sensível à força bruta em instantes. Quais as orientações que você passou a ele?
O papel de Albert é muito difícil. E Arnaud realmente queria mergulhar nesse mundo. Foi importante poder contar com ele como meu ex-namorado, o homem que está ficando para trás. Tinha que ser alguém que pudesse olhar e entender: “esse é o homem que eu amo”. Ele é o fantasma do homem que amei. Arnaud é preciso em cada gesto, e um ótimo parceiro de cena. Um amigo de verdade. É também mais sensível do que permite transparecer. É um ator frágil. Digo isso pois em mais de uma ocasião o via ficar enrubescido, com as bochechas vermelhas. Amo isso nele, é comovente.
Bom, não poderia deixar de falar do Jean-Marc Barr e da ponta da Isabelle Huppert. Como você os conseguiu?
Acho que sou o único diretor do mundo que teve Isabelle Huppert como extra. (risos) Cinema é sobre destino, surpresas da vida. Isabelle é uma presença japonesa no meu filme. Simplesmente aparece, e se vai. É algo que se manifesta. Está ali, e logo não está mais. Eu escrevi para ela, disse que a considerava muito engraçada, e que queria dirigi-la. E tudo que fez foi dizer “sim”.
E o Jean-Marc Barr? Sou apaixonado por ele desde Imensidão Azul (1988).
Jean-Marc já trabalhou com todos os grandes, né? Luc Besson, Lars von Trier… Amo o Jean-Marc e também queria muito tê-lo no filme, mesmo que fosse numa única cena. Adoro os filmes que ele dirigiu, e sempre me pareceu uma presença muito sexy. Um rapaz provocador, assanhado. Ao mesmo tempo, muito político. É um homem maravilhoso.
Garoto Chiffon estreou no Festival de Cannes. Como foi a recepção? E chegou a ser lançado comercialmente na França? O quanto a pandemia afetou a carreira do filme?
Pois é, esteve em Cannes? Talvez, não tenho certeza. Esses dois últimos anos foram tão confusos. A pandemia afetou muito a carreira do filme. Foi um desastre. Mas, ao mesmo tempo, foi o destino. Acho que o que aconteceu se parece comigo. Também estou acostumado a trabalhar bastante, e me esforçar para ser reconhecido. Com Garoto Chiffon foi a mesma coisa. É uma comédia um tanto absurda, e foi difícil de realizar. Ao mesmo tempo, tenho percebido grande empatia por parte do público. Chiffon se tornou sinônimo de fragilidade. E algo tão precioso e raro precisa ser preservado.
Você conhece o Brasil? Já esteve aqui? E cinema brasileiro, o que conhece?
Nunca estive no Brasil, infelizmente. É um sonho que tenho, preciso ir e conhecer o país de vocês. Sobre o cinema brasileiro, conheço algo do Cinema Novo. E também da nova geração, lembro de ter assistido a vários curtas-metragens brasileiros no Festival de Cannes. Glauber Rocha é brasileiro? Sim, foi um diretor maravilhoso. Não conheço muito, mas reconheço sua importância. Preciso conhecer mais.
Como imagina que o espectador brasileiro irá receber Garoto Chiffon?
Adoraria que, ao final do filme, esses espectadores estejam um pouco mais cientes a respeito de si mesmos. E também sobre suas mães. O Brasil é um país onde as mães são muito importante, me parece. É interessante que esses rapazes possam afirmar o quanto essas mulheres são vitais em suas vidas. Jérémie é como um soldado. Não é um filme de guerra, mas ele é corajoso por enfrentar essa floresta interior, que guarda dentro de si. É uma mata fechada, escura, que há bem lá no fundo de cada um de nós. Enquanto ser humano, é preciso estar conectado com esse sentimento. Saber lidar com a melancolia. Conheço mais a música brasileira, a bossa nova, e sei que é uma expressão com a qual vocês podem se identificar. Essa sensualidade, esse calor. Adoraria que os espectadores brasileiros sentissem tesão por mim (risos).
(Entrevista feita por zoom em março de 2022)
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