Realizar um festival de cinema certamente não é uma das tarefas mais fáceis do mundo. E essa missão fica ainda mais difícil com uma equipe reduzida. Mas, os organizadores e curadores do Fantaspoa, João Pedro Fleck e Nicolas Tonsho, sempre fizeram das tripas coração para garantir a existência desse evento sediado na cidade de Porto Alegre. Prestes a iniciar a sua 18º edição, o festival tem consolidada uma posição de destaque no cenário mundial. Depois de dois anos acontecendo online por conta da pandemia da Covid-19, o Fantaspoa volta neste ano a ocupar telonas e demais espaços importantes da capital gaúcha. Nesta entrevista exclusiva que fizemos remotamente com João Pedro, ele comenta um pouco como são os desafios de voltar ao presencial com a exibição de quase 200 filmes, entre curtas e longas-metragens, além da realização de atividades de formação e debates. Não bastasse tudo isso, também haverá um recorte online do Fantaspoa 2022, ou seja, serão dois eventos acontecendo simultaneamente. Confira abaixo o nosso bate-papo com João Pedro Fleck.
Como vocês estão vendo esse retorno ao presencial depois de dois anos apenas no online?
Estávamos realizando o festival de 2020 quando bateu a pandemia. Depois de muitos anos com patrocínio, em 2020 não tínhamos verba. A pandemia estourou no Brasil bem no dia do lançamento da nossa campanha de financiamento coletivo. Então, estávamos num momento difícil da história do evento e aí veio a pandemia. Batemos a meta de R$ 60 mil, que é quase um valor simbólico para um festival do tamanho do nosso, e migramos ao online. Para você ter uma ideia, o Fantaspoa é, de longe, o evento de cinema que mais tem público em Porto Alegre, com cerca de 10 mil pessoas por edição. Em 2020 atingimos 65 mil espectadores no online. E em 2021 chegamos a 85 mil. Estamos num momento de readaptação à realidade. Pensamos em programar um número maior de salas. A ideia inicial era ter mais salas e dias, menos filmes, para evitar salas cheias. Algo em torno de 100 filmes ao todo.
Mas essa mudança para um festival com quase 200 filmes então teve a ver com o quê?
O nosso valor de inscrição não é barato para filmes do exterior. Para os brasileiros é quase simbólico, mas sabemos que para as produções estrangeiras não é barato. E acreditamos ser justo que tenhamos esse aporte para garantir o pagamento dos custos básicos do Fantaspoa. Mesmo nessas condições, recebemos 850 filmes, 600 curtas e 250 longas. Um parêntese. O resultado disso é que teremos neste ano 16 premières mundiais de longa-metragem. Mas, não tínhamos noção do que poderíamos fazer de verdade em 2022. Se escolhêssemos apenas os longas que ficaram de fora da seleção e que estiveram ali próximos à linha de corte, daria para fazer um Fantaspoa B com o mesmo tamanho do A, e seria um baita festival. Então, decidimos não diminuir. Quanto ao online, criamos e cativamos um espaço com esse público do online. Não sabemos como será nos próximos anos, mas neste ano não temos como deixar esse público na mão. Temos a parceria com a Darflix que funcionou muito bem nos anos anteriores. Os filmes que serão exibidos no online passarão pelo menos uma vez antes numa sala em Porto Alegre, presencialmente. E para fazer tudo isso, somos ao todo uma equipe de três pessoas e cinco parceiros que ajudam na legendagem.
A proposta de online e presencial, com suas demandas muito particulares, é praticamente promover dois festivais ao mesmo tempo, correto?
Sem dúvida. Até por isso temos essa diferença de datas entre presencial e online. Ela nos permite priorizar o presencial nessa primeira semana e dá um respiro para a equipe da Darkflix preparar a entrada nos filmes da plataforma. Estamos fazendo um segundo evento (o online) sem qualquer verba extra. É uma loucura. Atualmente, o orçamento do Fantaspoa gira em torno de R$ 360 mil, pouco para um evento do porte do nosso – tranquilamente, em outros lugares ele não seria feito por menos de US$ 1 milhão. Então, repito, estamos fazendo atualmente dois eventos com o orçamento de um. Entre a curadoria, a seleção, a inserção de legendas e a disponibilização dos filmes, temos um esforço que nunca vi em outros eventos equivalentes em tamanho. Viajei muito para outros festivais e nunca vi algo do porte do Fantaspoa que não fosse feito por uma equipe, no mínimo, dez vezes maior.
E mesmo assim, ao longo dos quase 20 anos de Fantaspoa, vocês fizeram coisas como trazer o lendário Roger Corman para o Brasil…
Pois é, um festival de Porto Alegre conseguiu trazer o Roger Corman, um senhor que já estava com 94 anos, para fazer três sessões comentadas, dar masterclass e autógrafos para o público…e tem mais. O Roger Corman fez um documentário aqui com a gente. Então, temos um documentário sobre Roger Corman filmado em Porto Alegre, um longa-metragem. É um filme sobre ele rodado durante o Fantaspoa, com cinco horas de material bruto.
E dentro do processo de curadoria do Fantaspoa 2022, que tipo de tendências você conseguiu identificar e que valeria a pena destacar para quem vai curtir o evento?
Percebemos uma tendência que estamos trazendo ao Fantaspoa neste ano. Aliás, para quem não conhece o Fantaspoa, é bom dizer que ele não é um festival especificamente de horror. Nosso recorte é o fantástico, tudo que não é convencional. Lutamos muito para nos afastar do rótulo de que éramos um festival de horror trash. Não temos “podreira”. Há filmes que selecionamos com esse tipo de estética? Claro. Mas, não é esse o objetivo do festival. Voltando às tendências sobre as quais você perguntou, fico feliz de poder acompanhar algumas delas que são realmente mundiais. Até porque somos também produtores, com 10 filmes no currículo. Temos parcerias com distribuidores e agentes de vendas. E uma delas, a canadense Raven Benner, começou a investir num tipo de filme com gore e sarcasmo mais pesados, com uma mescla muito forte de horror e comédia, assim ressuscitando algo que era muito forte no fim das décadas de 1980 e começo da de 1990. Sinto um revival muito forte disso, especialmente porque há uma demanda por escapismo. Nesse 2022, acho que esse tipo de filme vai ser muito bem recebido. Tanto que temos uma mostra especial, a Mondo Bizarro, com 12 longas que são radicais até mesmo para o Fantaspoa.
Agora vou te colocar numa fogueira. Dos quase 200 filmes do Fantaspoa 2022, me diga apenas dois que você considera imperdíveis.
Assim como você está fazendo uma sacanagem comigo, vou fazer uma sacanagem contigo (risos). Vou dividir esses dois filmes em três. E posso falar de camarote até porque realmente assisti aos 250 longas-metragens que se inscreveram. E faço questão de dar um retorno para cada um deles, às vezes até sugerindo outros eventos nos quais eles poderiam se inscrever. Aliás, vale ressaltar que nos últimos anos o Fantaspoa continua sendo importante aos espectadores, sem dúvida, mas se tornou muito mais importante aos cineastas. Nós damos consultoria grátis, ajudamos eles a encontrar distribuidores, auxiliamos com as legendas, fazemos muita coisa no fim das contas. Então, vamos aos meus três filmes. Quem não gostar deles é porque não tem coração (risos). Começando por aquele que mais nos esforçamos para trazer e um dos de mais está sofrendo nesse momento, por ser russo e vítima de boicotes de alguns festivais por conta da guerra da Ucrânia: Rasgue e Jogue Fora (2021), do Kirill Sokolov, cineasta que já venceu o principal prêmio do Fantaspoa numa edição anterior com Por que Você Não Morre? (2019). O Kirill é doutor de nanofísica e apaixonado cinema. Esse novo filme fala de uma mãe recém-solta da prisão que tenta se reconectar com a filha raptada pela avó. Então, a protagonista vai raptar novamente a filha. É uma comédia de erros que possui características até de cartoon. Teremos a honra de exibir o filme em première latino-americana.
O meu segundo é uma co-produção Alemanha/Grécia que se chama Um Lugar Puro (2021), do Nikias Chrysso, que também já ganhou prêmios anteriormente no Fantaspoa. O Nikias estará em Porto Alegre, inclusive dando um curso gratuito por aqui. Em Um Lugar Puro, ele cria uma comunidade paralela que vive na Grécia na qual os adultos exploram adolescentes e principalmente crianças carentes levadas a fabricar sabão para um líder de um culto à limpeza que, na verdade, está vendendo o fruto desse trabalho forçado. E finalizo essa seleção com Soul of a Beast (2021), de Lorenz Merz, que conta a história de um jovem adulto que curte festas, skate e drogas recreativas. Ele tem um filho e precisa lidar com as consequências disso. Na cena de abertura, o protagonista e uma menina por quem ele se apaixona usam muitas drogas e entram num zoológico, libertam animais com os quais as suas almas de fundem. A maneira como tudo isso é combinado é realmente impressionante.
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