Pois então que coube a uma mineira interpretar na tela grande a gauchinha Elis Regina, uma das maiores cantoras que Brasil já teve. Protagonista da cinebiografia Elis, exibida na mostra competitiva do 44° Festival de Cinema de Gramado, Andréia Horta com esse trabalho dá um passo adiante em sua carreira, deixando para trás as participações coadjuvantes nas comédias Muita Calma Nessa Hora (2010) e Muita Calma Nessa Hora 2 (2014), além da simpática – e televisiva – Alice, da série homônima da HBO. Favorita ao kikito de Melhor Atriz, a intérprete – que recentemente terminou sua participação de destaque na novela Liberdade, Liberdade, da Rede Globo – conversou com exclusividade com o Papo de Cinema, revelando detalhes sobre essa paixão antiga por Elis Regina e como acredita que as palavras ditas pela artista ressoam até hoje. Confira!
Como foi receber esse desafio de viver a Elis Regina no cinema?
Era um desejo meu há muitos anos. Quando soube que o Hugo Prata, o diretor, ia fazer esse filme – e na época eu nem o conhecia – lembro que ter comentado com o meu analista, durante uma sessão “nossa, vão fazer um filme sobre a Elis, o que eu faço?”. Isso porque eu já havia comentado com ele sobre essa minha vontade, quase uma fixação. Mas eu não tinha contato algum com o Hugo ou com os produtores, então não tinha muito que fazer. Decidi que o melhor era simplesmente deixar rolar. Foi quando, certo dia, ao caminhar na rua com um amigo, chegou uma outra amiga nossa que estava indo pra outro lugar, nos cruzamos numa esquina, falamos um pouco e foi cada um para o seu lado. No dia seguinte, ela ligou para esse amigo que estava comigo e disse “nossa, senti um vento de Elis Regina na Andréia ontem. E tu não vai acreditar, acabei de ser convidada para escrever um filme sobre ela”. Era a Patrícia Andrade, nossa roteirista.
Nossa, isso foi muito jogada do destino.
Exatamente. E meu amigo foi direto, respondeu que eu era mesmo a pessoa certa para fazer a Elis, pois sou aficionada por ela, tenho todos os discos, CDs, fotos, reportagens, sou colecionadora mesmo. A Patrícia acabou me chamando para tomarmos um café juntas, ela tava começando a pesquisa, e me disse que eu precisava conhecer o Hugo, a gente precisava conversar. Mas quando fui me encontrar com ele, meu principal objetivo era saber que tipo de filme ele queria fazer. Até porque havia uma fagulha de um movimento meu, com outro produtor, para nós começarmos um longa sobre a Elis. Só que acabou que esse projeto não foi adiante, o Hugo já tinha todos os direitos garantidos, só me faltava conhecê-lo e descobrir o que ele pretendia. Pois tenho um respeito supremo pela Elis, se não concordasse com a visão dele, não iria me envolver.
Semana passada conversei com o Luiz Bolognesi, que também colaborou no roteiro de Elis, e perguntei como havia sido esse trabalho. Tudo que ele me respondeu foi: “aquela menina, a Andréia, é fenomenal!”.
Nossa, o Luiz é o máximo. Assumir o manto de Elis Regina foi um processo, não é uma coisa que acontece do dia para noite. Teve muito ensaio, chorei bastante, tive vários momentos de dúvida, de me perguntar “porque quis fazer isso, logo a Elis, gente?”! Tem uma cena em que tinha que estender a mão para o Miéle e dizer “prazer, sou Elis Regina”. Gente, com que cara de pau iria dizer isso? De onde vou arrancar essa coragem? Mas a história toda foi tão bonita, a força de tudo que aconteceu, que não me deixou fugir dessa grande vontade, foi maior. Ainda aconteceu do Hugo me escolher, daí demorar para sair o dinheiro para fazer o filme, e quando finalmente as filmagens estavam prontas para começar, eu estava envolvida com outro trabalho e tive que cair fora. Chegaram a me oferecer duas semanas e meia de preparação, o que não topei, pois sabia que em tão pouco tempo não conseguiria entregar a minha Elis. Só que daí deu problema com esse outro compromisso e acabei ficando liberada, de novo, para o Elis. Foi tudo muito incrível.
Como encontrar essa Elis Regina dentro de você?
Quando as filmagens foram começar de fato, bateu aquele pânico. Nossa, por onde começo? Qual Elis que vou dar vida aqui? Como que ela falava, como se diz essa frase? Até o tom da risada tinha que acertar. E para isso foi preciso muito estudo, muita pesquisa, ir atrás das referências, entendê-la por completo. Descobrir cada detalhe, a linguagem corporal, até o peso da mão dela, como se movia, cada gesto. O corpo dela no palco, ou quando estava sentada. Como havia sido cada entrevista, o ritmo do pensamento dela. Me interessava muito mais vê-la como uma pensadora, alguém responsável por aquelas ideias. Porque, infelizmente, o discurso artístico que a Elis tinha, e que é exposto nesse filme, ainda é muito atual. Nós ainda estamos nas mãos dos caras, o espaço cultural segue sendo muito limitado. E ela foi se tornando cada vez mais lúcida a respeito da situação do artista no Brasil. Na fase final de sua vida, ela parecia estar intuindo muito claramente qual seria o nosso futuro. Tem uma cena em que ela fala: “a censura que está vindo aí é pior do que a censura militar, porque é a censura da coisa ruim, daquilo sem qualidade, vai virar isso o reinado daqui a pouco”.
O filme Elis vai além do mero retrato da artista, também reflete sobre o momento social, político e cultural em que ela viveu, como a ditadura, a repressão. Algo próximo do que estamos vivendo hoje com esse golpe ilegítimo no governo federal. Você acha que a história que vocês estão contando poderá provocar esse debate nos espectadores?
Se estiverem bem atentos a cada uma das palavras das músicas que ela canta, acho que sim. Tem uma entrevista, que aparece no filme, de quando ela estava na França e fala da situação política do Brasil, e naquele momento ela estava falando de pessoas presas e exiladas e hoje estamos começando a ver um pouco disso. A cena dela quando é chamada para depor, embora represente a censura militar, ele diz “olha o que a gente faz com Chico Buarque”, e rasga as canções dele. E estamos vivendo isso de novo hoje em dia! A reação de algumas pessoas hoje, em relação ao Chico Buarque, acho simplesmente inadmissível. Com a obra, com a importância, com o artista que ele é, pessoas que não o conhecem o tratarem dessa maneira. É um absurdo.
O filme Elis aconteceu meio que em paralelo com a peça Elis, A Musical. Em algum momento você temeu algum tipo de comparação?
O projeto do filme começou até antes, na verdade. A Laila (Garin), que faz a Elis no palco, é cantora lírica desde os 13 anos, o trabalho do musical tem uma outra característica de atuação, de tamanho, os teatros lotados. E era a Laila cantando, no tempo dela, no corpo dela. E fez um trabalho brilhante, eu tava lá na estreia, sou super fã dela. Não tinha como comparar. O trabalho dela é muito único. Embora estejamos sob a mesma entidade, são percepções muito particulares, cada uma tem a sua.
Como foi a questão da voz da Elis? Você dubla ou realmente cantou com a própria voz as músicas dela?
As duas coisas. Eu tou cantando todas as músicas. Cada entoação, cada grito, eu que estou cantando. Mas no filme, é a voz da Elis que o espectador escuta. Pois entendemos que, se estamos fazendo um filme sobre a história da Elis, quando ela abre a boca e dia “não quero lhe falar do meu grande amor”, você quer ouvir a Elis! É esse jogo que vai emocionar. Isso também foi um pedido meu, não tinha nada a ver eu cantar, tinha que ser ela. Portanto, eu canto todas as músicas, mas a voz que você escuta durante as canções é a da Elis.
A música tem sido uma fonte bastante presente no cinema, tanto na ficção como em documentário. Mas depois de Cazuza, Renato Russo, Cássia Eller, Tim Maia, Simonal e tantos outros, parece que faltava, mesmo, a Elis Regina. A que você creditaria essa demora?
As coisas acontecem na hora que elas têm que acontecer. Acho que pela força como tudo se organizou, é porque tava me esperando (risos).
E agora estamos aqui em Gramado, no 44° Festival de Cinema…
E olha a força disso tudo! A primeira exibição do filme ser justamente aqui no Sul, na terra de Elis Regina! Ela não tá de brincadeira! Está sendo inacreditável. Ela não para de produzir belezas com a força de seu legado. Os grandes artistas que merecem não ser esquecidos, porque são uma força que precisa continuar, nós, que viemos depois, sentimos essa força atávica, quase como uma missão, mesmo. Quando batem na minha porta e vejo esse sonho concretizado, com o contrato na mão para fazer a Elis, não dá pra recuar. Tenho 33 anos de idade, o corpo vivo é o meu. Ela se foi, não está mais aqui. A matéria, a pulsão, a responsabilidade é minha. Eu, ou qualquer outra atriz que fosse convocada, enfim, somos nós, que estamos vivos, que precisamos contar as histórias destes grandes artistas. Essa memória não pode morrer. Eles já são inesquecíveis, mas precisam ser renovados, relembrados. A Elis segue muito forte nas nossas lembranças. Ela morrer em 1982 e eu nasci em 1983, nossas matérias nunca se encontraram num mesmo plano, mas a matéria é só uma pequena fase do todo.
Dessa forma ela estará cada vez mais viva.
O importante é você dançar com essa energia, pois quando a convoca, ela irá comparecer. Ela está cada vez mais viva, eu, com essa missão, fico cada vez mais viva, espero que quem veja fique mais vivo por ter escutado ela, ter ouvido o que ela tinha a dizer, pois tava dizendo muita coisa importante. Da situação do artista, do papel da mulher na década de 1980, ela estava se posicionando com muita clareza. É uma artista que precisa ser escutada novamente. Seu discurso era muito vivo, muito hoje ainda. Mais do que ver a Elis, se a pessoa estiver escutando o que ela estiver dizendo, o filme poderá fazer diferença.
(Entrevista feita ao vivo em Gramado no dia 28 de agosto de 2016)
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