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A partir desta semana, o Brasil de 2019 dialoga com o Brasil de 2003, ou seja, o primeiro ano da posse de Lula como presidente – pelo menos, nas salas de cinema. A comédia Domingo, dirigida por Fellipe Barbosa e Clara Linhart, com roteiro de Lucas Paraízo, imagina uma família privilegiada que se reúne na fazenda da matriarca para um churrasco durante a virada de ano, no momento exato em que o país sofre uma forte transformação política com a ascensão do PT ao poder.

Assim, os patrões conservadores começam a se chocar com os empregados, enquanto amigos e funcionários que frequentam a propriedade carregam um estranhamento sobre a nova realidade do país. Para a dona do local (Ítala Nandi), resta o pavor de uma invasão dos pobres às suas terras. Camila Morgado, Augusto Madeira, Martha Nowill e Chay Suede ajudam a compor o explosivo coquetel desta reunião familiar.

O Papo de Cinema conversou com os diretores e o roteirista sobre o projeto, selecionado nos Festivais de Veneza e Brasília:

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O roteirista Lucas Paraízo

Por que decidiram falar sobre esta classe privilegiada decadente, morando numa mansão em ruínas?
Fellipe Barbosa: O desejo veio do Lucas inicialmente, que escreveu o roteiro inspirado em memórias de infância dele, em Pelotas. Esta família poderia ser a dele, ou a de amigos dele. Ele estava acostumado a participar de churrascos como esse. Houve uma convergência entre os interesses dele e os nossos, porque essa decadência está presente desde o meu curta Beijo de Sal (2006). Existe uma ligação entre esses projetos: o Lucas viu Beijo de Sal e pensou que a gente poderia dirigir este roteiro. Mas o projeto nasceu muito tempo atrás e foi atualizado ao longo dos anos, em função das demandas do nosso tempo. Hoje existe uma resistência à afirmação da opressão, então era preciso que o oprimido tivesse a sua revanche, e pudesse dar a volta por cima de alguma maneira. Nós três atualizamos o roteiro. Ao mesmo tempo, a gente não imaginava que o Brasil poderia estar nessa situação de hoje. Mas queríamos muito poder rir desta aristocracia decadente gaúcha e do medo que eles tinham do governo Lula, com uma possível ditadura do proletariado. Já havia distância suficiente para rirmos disso. No entanto, esse medo elegeu Bolsonaro, e isso ressignificou o projeto.

Hoje em dia, falar sobre a posse de Lula como presidente possui um significado muito diferente daquele de 2003. Como percebem a relação do filme com a configuração política atual?
Clara Linhart: O roteiro foi escrito pelo Lucas em 2005. Ele propôs ao Fellipe em 2007, e conseguimos o financiamento em 2016. Rodamos em 2017, e estamos lançando em 2019. O recuo histórico provoca, em si, a comédia. O fato de ver a matriarca, interpretada pela Ítala Nandi, apavorada com a possibilidade de perder as suas terras, que ela acredita que serão tomadas pelos pobres, é risível. Dezesseis anos depois da eleição de Lula, a gente sabe que nada disso aconteceu. Um dos aspectos cômicos nasce portanto do próprio recuo histórico. Por outro lado, quando começamos a escolher os atores e ensaiar, o Fellipe fez questão de fazer uma comédia. O texto do Lucas poderia dar espaço a uma abordagem mais dramática e densa.
F.B.: O roteiro apontava para um caminho meio Lucrécia Martel, mas escolhemos o recuo através da comédia. Se a gente ficasse na subjetividade dos personagens, seria algo dramático. Mas preferimos o teatro das aparências dentro daquela casa, para pensar quando estaríamos com o opressor, e quando estaríamos com o oprimido, equalizando essas vozes. Assim a ideia era criar um filme coral de fato.
C.L.: Depois dessa decisão de enveredar pela comédia, a escolha dos atores adotou um caminho específico. Temos atores sem medo da comédia, do escracho, do histrionismo, algo que incentivamos. A Camila Morgado, o Augusto Madeira e a Martha Nowill, por exemplo, além do Micha Wahrmann, que também é diretor, se entregam muito naturalmente neste tom.
Lucas Paraízo: Através deles a gente conseguiu ultrapassar os preconceitos que teríamos com aquela família. É importante poder rir de si mesmo e fazer a autocrítica, algo que a comédia permite.
F.B.: A comédia já cria a empatia. Se o personagem for engraçado, mesmo que ele faça algo com que a gente não concorde, a comicidade facilita a identificação. Isso não exclui as pessoas da equação, não ofende essas pessoas. Inclusive, estamos atravessando o tempo de uma arte voluntariamente assertiva, ofensiva, como Bacurau (2019), que se constrói como resistência e vingança. Essa é uma estratégia valiosa, mas tentamos fazer algo diferente ao deixar o cômico mais aparente. Nós ainda ridicularizamos, zombamos, mas de uma maneira mais inclusiva, para que eles possam se reconhecer e se aceitar naqueles personagens.

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O diretor Fellipe Barbosa e a equipe durante as filmagens de Domingo

Acreditam que o projeto possa se comunicar com os públicos de ideologias políticas distintas?
L.P.: Esse filme foi ganhando interpretações muito diferentes ao longo dos anos. Quando ele foi concebido, a gente estava num cenário político específico, mas à medida que fomos fazendo, a situação mudou demais, e o filme ganhou uma nova perspectiva. Hoje vivemos algo que jamais imaginaríamos que aconteceria. Não sabemos o que ainda pode acontecer, com o Brasil e o filme. Naquela época, Lula não era o vilão que se tornou para uma parte das pessoas, por exemplo. Mas tentamos trazer, através da comédia, a complexidade dos pontos de vista humanos dentro de uma mesma família. Um panorama político afeta muito os núcleos familiares.
F.B.: A família faz de tudo para não ser afetada pelas mudanças políticas. Se a gente pudesse definir uma ação conjunta para eles, seriam a síndrome do avestruz, a tentativa de se cortar do evento da posse do Lula, se desvincular disso, enquanto os empregados têm outra ótica a respeito. A política atravessa esses personagens, mesmo que eles não queiram olhar o que acontece. As consequências são drásticas, e quisemos fazer uma alegoria sobre isso, sobre a tomada de consciência dos oprimidos em relação à opressão que atravessam, para poderem fazer um movimento de saída desse ciclo. O filme tenta falar muito sobre esse novo empregado doméstico, conhecedor dos seus direitos, em oposição ao antigo empregado que repetia as ideias do patrão. Esse 1 de janeiro de 2003 tenta encapsular de certa maneira as transformações positivas que percebemos no governo Lula esses anos. Mesmo que o roteiro tenha sido escrito em 2005, após dois anos de mandato, nós fomos atualizando para tentar refletir essas mudanças de postura.

Domingo é concebido como um raro “filme do meio”, buscando dialogar com crítica e público. Acreditam que os caminhos para viabilizar e distribuir um projeto do gênero sejam mais difíceis?
C.L.: A gente viabilizou o filme como se viabilizavam os filmes de arte até as mudanças atuais: por meio da Ancine, do Fundo Setorial. Este é um filme de baixo orçamento, mas temos uma coprodução francesa. Seguimos o caminho tradicional de festivais e agora, para a distribuição, estamos sendo beneficiados pelo Fundo Setorial, que é muito importante. Sobre expectativas de público, sempre queremos o máximo e o melhor possível, mas tenho a esperança que a trilha aberta por Bacurau, que atraiu muitas pessoas sem o costume de assistir a filmes brasileiros, deixe um lastro positivo para a gente e para outros filmes brasileiros.
F.B.: Este ano, o filme que realmente juntou crítica e público foi Bacurau. Ele é um filme de gênero, aberto a interpretações, e muito bem feito. Eu, como carioca, gosto de me sentir provocado por filmes como Bacurau. Passamos o trailer de Domingo antes de Bacurau em diversas sessões, o que talvez traga uma resposta positiva. Independentemente de Domingo encontrar o seu público ou não, acredito que ele caminhe junto de Bacurau de certa maneira, por ter uma preocupação semelhante, ainda que expressa de maneira oposta. São filmes sobre ataque e resistência, sobre uma pequena comunidade, alegórica de algo maior, se sentindo invadido, se reorganizando e se vingando.
C.L.: O que este Brasil politicamente polarizado começou a desenvolver é algo que não existia muito no país antes, como bares e espaços de cultura, além de filmes e peças de teatro, que se configuram como espaços de resistência. Ainda não sabemos se este público que busca espaços de resistência vai comprar a ideia do Domingo, ou se públicos fora deste espaço vão comprá-lo, porque ele não se limita à esfera do confronto. Mas sem dúvida, neste momento do Brasil, colocar uma obra de arte na rua causa algum tipo de comoção.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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