A cineasta Maíra Bühler faz questão de dizer que sua área de formação, a antropologia, influencia diretamente os filmes que faz. Antes de ganhar diversos prêmios com seu primeiro longa-metragem solo, Diz a Ela Que Me Viu Chorar (2019), entre eles o principal do Olhar de Cinema 2019 – primeira vez que uma produção brasileira vence o evento –, ela já havia co-dirigido Elevado 3.5 (2007), Ela Sonhou Que eu Morri (2011) e A Vida Privada dos Hipopótamos (2014), todos devidamente reconhecidos e laureados. Na empreitada que chega nesta quinta-feira, 14, aos cinemas brasileiros pela Vitrine Filmes, ela faz um retrato muito pungente e sensível de toxicômanos convivendo no hotel Parque São Pedro, numa dinâmica (infelizmente descontinuada pelo governo seguinte) de acolhimento e ressocialização. Conversamos com Maíra por telefone para saber um pouco mais sobre o processo do filme, como foi equilibrar macro e micro e se aproximar de pessoas que socialmente são bastante invisibilizadas. Confira:
O filme opera numa lógica inversa à prevalente na sociedade, ou seja, ele dá visibilidade a pessoas com problema de dependência química. Era essa a sua missão norteadora?
Refleti bastante sobre isso ultimamente, inclusive porque nessa fase de promoção a pergunta é recorrente. Essas pessoas nunca foram invisíveis, a presença delas sempre me afetou profundamente. Falamos a mesma língua, frequentamos ambientes semelhantes, estamos na mesma cidade. O filme nasce do meu incômodo com o fato delas serem tratadas como zumbis, não humanas, não sujeitos. Eu desejava entender o mundo a partir do ponto de vista delas. Antes mesmo de tornar visível, a vontade era de ir nessa direção, a da minha percepção de que elas são visíveis. Queria ver, me relacionar, assumir esse desafio cinematográfico de construir imagens com essas pessoas.
Para você era essencial não ter mediações, ou seja, entregar abertamente o protagonismo às pessoas que ali conviviam, sem recorrer a especialistas e afins?
Sim, desde o principio a ideia era não ter mediações. Venho da antropologia. Muito do que faço no cinema tem a ver com essa formação, com a noção de que as pessoas têm conhecimentos, tanto ou mais do que os especialistas. A fala dos moradores sobre eles mesmos vale demais. Eu estava nessa aventura de aprender sobre eles com eles. A figura do especialista não fazia sentido, especialmente pela minha simetria com os personagens. A voz que explica poderia desvaloriza-los como conhecedores de si. Queria me relacionar com eles enquanto sujeitos de conhecimento.
Aquelas pessoas têm em comum, além da dependência química, a solidão. Isso para você era perceptível na filmagem ou é algo que sobressaiu na montagem?
A solidão é um fantasma que assusta a todos nós. Eles têm medo da solidão e lutam muito pelos vínculos, vide a forma como se apegam a pessoas e a times de futebol, por exemplo. É um apego que fala muito dessa pulsão de vida. Entendo a solidão como algo que ronda a existência deles, assim como ronda a nossa. A diferença é que eles vivem em estado de extrema vulnerabilidade. As experiências afetivas e emocionais acabam sendo mais intensas.
Outra qualidade do filme é revelar as pessoas, não as reduzindo a um sintoma de sua desgraça. Como chegar a esse equilíbrio entre estabelecer um painel amplo e não perder de vista as singularidades?
Foi um longo processo. Enquanto filmava, eu montava. Fiz timeline de personagens e entendi o filme como algo efetivamente sobre pessoas. Precisava que elas aparecessem com suas subjetividades. Por outro lado, havia gente que compartilhavam comigo experiências bem fragmentadas. Às vezes justo estes que me davam algumas joias e eu acabava entrando em contato bastante profundo com certos personagens, mas numa única cena. Então, meio que fui construindo esse equilíbrio entre as histórias que poderia acompanhar de perto e outras, mais fragmentadas. Nesse sentido a música entra como um grande comentário.
Seu filme venceu o Olhar de Cinema 2019. Aliás, foi o primeiro brasileiro em oito anos de evento a conseguir tal feito. Qual a importância disso para a carreira comercial do filme?
As pessoas costumam olhar com mais atenção para os filmes premiados. É importante para a carreira dele. Tenho tido respostas muito legais do público em geral, não apenas dos cinéfilos. Sinto claramente nas sessões, inclusive as fora do Brasil, que a sala fica dividida entre espectadores de cinema, os que nos debates levantam questões de cinema, e aqueles que simplesmente estavam ali assistindo ao filme por interesse no tema. O público tem sido bem heterogêneo. Na Mostra de São Paulo tivemos sessões esgotadas, com gente ficando de fora. É surpreendente pensar que um tema duro, carregado de estereótipos, esteja sendo tão bem aceito pelo público. Isso me emociona.
Por que lhe pareceu essencial encerrar o filme com uma nota pesarosa sobre a descontinuidade daquele programa social no hotel Parque Dom Pedro?
Achei importante explicar ao espectador que aquilo que ele acabou de assistir estava circunscrito num contexto de redução de danos e ampliação de direitos. É um compromisso ético que tenho com os personagens e as pessoas que fizeram parte do processo. Não poderia colocar aquilo como se fosse obra do presente. De lá para cá houve uma mudança muito radical. Ontem (12, terça-feira) fiz a pré-estreia no fluxo (nota da redação: local de concentração se toxicômanos sem-teto) e eles assistiram ao filme lá, com outros espectadores que moram na rua. Todos ficaram muito emocionados, inclusive por relembrar um momento em que eles tinham casa.
Antes de terminar, Marcelo, acho importante dizer que minha escolha por esse recorte pela intimidade foi, ao mesmo tempo, estética e política. Os personagens entraram com a gente nessa aventura de fazer o filme, permaneceram absolutamente envolvidos. Só filmamos em locais e circunstâncias aos quais formos convidados. Para mim era importante falar sobre essa gente frequentemente entendida como sem rosto, nome e subjetividade e adentrar em suas intimidades para revela-los.
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