Julio Andrade é mais um exemplo de gaúcho que precisou sair de sua zona de conforto para, enfim, ganhar o mundo. Enquanto morava em Porto Alegre, era figura frequente nas produções da Casa de Cinema – comandada, na época, pelos diretores Jorge Furtado e Carlos Gerbase – e em outras feitas no estado. Foi preciso, no entanto, que um cineasta paulista fosse até ele para lhe oferecer o tão sonhado papel de protagonista. Depois de Cão Sem Dono (2007), ninguém mais o segurou. Hoje, em menos de uma década, já soma mais de 50 créditos de produções para o cinema e para a televisão, troféus nos festivais do Rio de Janeiro, Fortaleza, Gramado, da Associação Paulista de Críticos de Arte e até o cobiçado Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, o Oscar da produção nacional. E em 2016 ele voltou com tudo, em nada menos do que cinco filmes diferentes: dois como protagonista, um como co-protagonista, um como coadjuvante e até um último como câmera! E este títulos, depois de passarem pelo Festival do Rio e pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, começam agora a chegar às telas de todo o país. Foi sobre todos estes trabalhos, e muitos outros, que o Papo de Cinema conversou com exclusividade com o Julinho – porque os amigos a gente chama assim, na ‘intimidade’! Confira!
Julio, me conta o que tem que fazer pra estar em tantos filmes ao mesmo tempo?
(risos) Olha, não sei qual a receita dessa parada. Sei que tanto na Mostra de São Paulo quanto no Festival do Rio percebi que participava de diversos filmes diferentes, e alguns que estavam num festival nem foram para o outro, e mesmo assim continuavam me chamado. Foi quando falei pra mim mesmo “Olha… tô trabalhando, hein?”. Eu mesmo não tinha me dado conta que estava trabalhando tanto.
No Festival do Rio estava o Sob Pressão, enquanto que na Mostra de São Paulo participou o Maresia. Mas além desses tem também o Elis, o Redemoinho… são quatro, mais o Divinas Divas. Aliás, como surgiu o convite para participar do documentário da Leandra Leal? O que você faz nele, mesmo?
O Divinas Divas estive envolvido desde o inicio do processo com a Leandra. Ela é minha irmã, temos uma ligação de alma, entende? Acompanhei desde as primeiras conversas, e ela sempre sacou que eu tinha essa coisa, essa ligação com a câmera, esse olhar diferente. Foi por isso que me convidou pra fazer o show, não como ator, mas filmando. Porque precisava de vários fotógrafos, no show das Divinas no teatro Rival. Rolou que gravei, fiquei nos bastidores registrando tudo que estava ao meu alcance. E a primeira cena, aquela que abre o filme, é minha, então fiquei muito emocionado. Muita coisa que filmei foi aproveitado no filme. A primeira cena de um filme é uma das coisas que mais gosto no cinema, o início, o que não posso perder, saca? Então, entrar com uma cena minha, foi maravilhoso.
Quando adolescente, fui no cinema ver Indiana Jones e a Última Cruzada (1989) e entrei na sala com o filme já começado. Tempos depois fui me dar conta que havia perdido toda a sequência inicial com o River Phoenix!
Baaaah! Mas não dá pra entrar atrasado, não entro nunca com o filme já iniciado. Preparo tudo em casa, tenho um telão na sala pra ver meus filmes e tal, aí sento, desligo o telefone e vou.
O Divinas Divas é um filme nostálgico, mas também busca uma alegria no meio daquela tristeza, daquela despedida. A Leandra te passou alguma orientação no que registrar, no que buscar?
Não, foi muito livre. Fico muito ligado no humano, então tentava atrapalhar o mínimo possível, pra deixar elas mais à vontade, porque queria capturar realmente aquele momento delas com elas mesmas. Então fiquei muito atento a isso. Acho esse um filme extremamente importante pra esse momento que a gente tá vivendo. O Teatro Rival é um espaço de resistência, e elas estão na batalha até hoje! Não é fácil ser travesti no Brasil! A gente precisa conviver, precisa entender e aprender.
Um filme que lembra um pouco esse universo que é o Elis. Nele, tu vive o Lennie Dale, que foi uma figura da noite também. Como foi a composição desse personagem?
Cara, esse personagem foi muito difícil. Tive duas semanas de preparação e é óbvio que não ia conseguir dançar nem um terço do que o Lennie Dale dançava e ter o poder que ele tinha. Então tentei buscar na postura dele, na energia que ele tinha. Era um cara cativante e conseguia juntar tudo. Ele conseguia dançar Bossa Nova, era um gênio da dança, né? E foi o responsável por muita coisa, inclusive, foi uma influência pras meninas do Divinas Divas também, era um fenômeno. Era uma responsabilidade, só que tinha também o outro lado, que era essa parceria com a Andreia. Muitos anos atrás a gente tinha conversado na pizzaria Guanabara, antes da Elis, do Gonzaguinha, de qualquer coisa. Lembro que cantei uns Gonzaguinha pra ela e falei da vontade que tinha de vivê-lo no cinema. Já existia um projeto que tava em andamento, então sabia que ia ter. Quando falei que queria fazer, ela me deu a maior força, ficou comigo ali ouvindo eu cantar e minhas histórias. Naquela conversa ela demonstrou um fascínio pela Elis, uma vontade de interpretá-la. Então, foi muito especial para nós dois nos reencontrarmos no mesmo filme. Pois eu sabia que ela queria muito fazer, que almejava aquilo. E é uma grande amiga, uma irmã. Tenho duas irmãs de alma na profissão, que são a Leandra e a Andreia. Então, usei muito da nossa amizade pra contar essa história do Lennie Dale com a Elis Regina.
Quando surgiu essa oportunidade de fazer o Elis, chegou a bater uma insegurança, justamente por ser a Elis Regina, por você ser gaúcho, pela responsabilidade de dar forma na tela pra esse ícone?
Com certeza! Lembro até porque a produtora de elenco me ligou e falou “Julinho, tem um personagem pra você aqui e até pensei em colocar você fazendo a Elis, mas vai ficar muito difícil, então arrumei o Lennie Dale” (risos). E foi isso mesmo, tem tudo a ver com a minha história também. Eu saí de Porto Alegre do mesmo jeito que ela, fui pro mundo e cheguei no Rio de Janeiro com 500 reais e hoje tô aqui, com os mesmos 500 reais, não to com muito dinheiro (risos), mas tô com um prestígio bacana de dentro de um lugar que busquei muito. Hoje entendo, e aceito, que faço parte do cinema, da história do cinema nacional. Até algum tempo atrás não tinha sacado isso, acho que comecei a entender também por conta da idade. Fiz 40 anos no dia 08 de outubro, no dia da exibição do Redemoinho no Festival do Rio, e entendi que é isso, cara.
O Redemoinho reedita uma parceria com o Irandhir Santos. Vocês estiveram juntos no Obra (2014), alguns anos atrás…
Foi uma experiência maravilhosa, porque o Irandhir é um ator ímpar, é um cara de se admirar. Acho que não tem ninguém na nossa profissão que não admire o trabalho desse cara. Ele é muito sério, tem um método, um processo de construção de personagem que é único e muito intrigante e, ao mesmo tempo, genial. Eu sou o contrário do que ele é, sou o cara da galera, gosto de tá com a equipe, e ele meio que se isola. Mas, ao mesmo tempo, ele tem essa ligação, não que se isole totalmente, sabe? É um cara muito generoso na hora da cena. Quando tá na concentração dele, eu podia invadir pra dizer alguma coisa que tava pensando. A gente teve um jogo muito bonito, diferente, a gente batia uma puta bola e isso foi maravilhoso.
Vocês chegaram a trabalhar separados os personagens ou ensaiaram juntos?
A gente chegou a fazer algumas leituras. Tudo foi construído muito na conversa, mas sempre deixando a cereja do bolo pra hora da cena. A gente tem essa coisa de se concentrar pro momento da filmagem. No Redemoinho não teve take 3, no máximo take 2. Era muito o instante. A gente se preparou muito.
Vocês filmaram em Cataguazes?
Cataguazes. Lá em Minas. Foi maravilhoso, a comunidade nos recebeu super bem. Foi incrível.
Pelo Redemoinho você foi premiado como Melhor Ator no Festival do Rio, junto com o Sob Pressão. Fala um pouco desse outro projeto.
Sob Pressão é um filme do Andrucha que fala sobre a realidade dos hospitais públicos, e me interessava contar essa história. Foi um filme muito tenso, frenético, e o que está em cena é a pura realidade da nossa Saúde. Algumas pessoas olham e acham até um certo exagero, mas como seria diferente? Entra um policial, depois um assaltante, e acham exagero. Mas a realidade é ainda pior. Foi muito bom fazer, mas foi também um dos mais difíceis que já enfrentei, porque era um filme cirúrgico, literalmente. A gente tinha que saber como pegar numa tesoura, num bisturi, era tudo muito milimetricamente ensaiado. Tinha que ter essa minúcia que os caras tem. Mas adorei o resultado . No dia que a gente teve a primeira exibição no Festival do Rio, ao mesmo tempo tava dando tiroteio no morro! A guerra tá na favela, aí rola o tiro pra tudo que é lado, e as pessoas fazem o que? Vão parar nos hospitais, e lá é outra guerra. É outra batalha.
Ainda esse ano você foi premiado também como Melhor Ator lá no Cine Ceará com o Maresia. Nesse filme você encara dois personagens bem distintos. Como foi compor esse tipos?
Ah, achei que, também por serem distintos seria mais fácil. Mas nunca é simples, né? Estou sempre aberto ao que pode acontecer, não tenho essa coisa de construir os personagens em casa. Não tinha como construir o Gaspar fazendo o Vega, entende? Então fiz primeiro um, e quando acabamos todas as cenas dele, cortei o cabelo e o Vega foi junto. Botei uma outra roupa, me vi naquela situação, e fui entendendo o personagem assim. O Gaspar não é carismático, é até chato, digamos assim. E o Vega, tem muito carisma, é um artista, e busquei isso. Esse contraponto entre os dois.
O Maresia fala sobre a arte, e hoje em dia parece que há um esforço em querer torná-la supérflua. Uma das primeiras atitudes desse atual governo federal foi acabar com o Ministério da Cultura, que depois acabou voltando. As pessoas ficam questionando e discutindo, debatendo sem ter conhecimento. Como tu vê o papel de propor uma discussão como essa num momento como o que a gente tá vivendo?
Essas pessoas são vazias, né? Questionam a arte, mas chegam em casa e ligam a tevê pra ver novela, filme. A gente não tem como viver sem arte, o tempo todo estamos cercados por ela. Até o silêncio é musica, o que olhamos nas ruas é pintura. Essa relação é fundamental, assim como a política. Se o cara acha que governar um país é como administrar uma empresa, só pode estar errado. Não existe isso, são coisas muito diferentes. A gente não tá vivendo numa empresa, o Brasil não é uma empresa, a gente tá formando caráter. Meu filho tem um ano e oito meses, e só o que penso é isso, em prepará-lo pro mundo, e tem que ser assim, fazendo-o ouvir música, ver coisas interessantes, mostrando as coisas simples da vida. As pessoas esqueceram do outro, do próximo, estão tão preocupadas consigo que votam no cara porque vai aumentar a velocidade da marginal, saca? Pra ele poder ir mais rápido! Querem cada vez mais velocidade, é muito louco isso. A gente esqueceu a coisa da contemplação, que é mais importante e nos enche muito mais do que comprar. Essa coisa toda tá tomando conta da gente.
Julinho, de todos esses personagens, qual tu diria que foi o mais difícil?
Acho que foi o Sob Pressão mesmo, por ser bem delicado contar e fazer essa história. Mas, na realidade, todos são difíceis. Quando é muito fácil não é bom, entendeu? Sou movido a desafios, os personagens me pegam pelo que de novo apresentam. O Maresia, por exemplo, eu tinha um trauma com água, com mar, sabia que se fizesse esse filme ia perder isso, então precisava encarar. O Redemoinho foi uma experiência cinematográfica, um filme de cinema, com pessoas que super admiro, são referências pra mim, como o Walter Carvalho, a Dira Paes, Cássia Kis, Irandhir. São pessoas que só me enchem de coisas boas e precisava fazer.
E agora a pergunta oposta: se algum desses filmes fizer grande sucesso e merecer uma continuação, qual gostaria de voltar a interpretar?
Ah, o Redemoinho, com certeza. Agora, o Sob Pressão já tem um projeto de sequência que tá acontecendo. Acho fascinante isso, porque tem muito pano pra manga pra contar. Acho que, de todos esses filmes, o Sob Pressão é o que mais me parece ter coisa pra se levantar e ser contada.
O teu personagem no Redemoinho não é dos mais simpáticos…
Não! É um cara totalmente difícil de gostar, sei disso. A minha mulher saiu com muita raiva de mim… mas aí é golaço, quando isso acontece é gol, entendeu? Pra mim é… e é porque é muito diferente de mim, então é gostoso de fazer. Tava falando isso antes, o cara me perguntou se eu penso que vou ter outra vida, como seria? Falei “cara, eu vivo mil vidas ao mesmo tempo”. Sou um baita privilegiado, já assaltei banco, matei gente, morri, fui médico, fui não sei o quê… quer privilégio maior que esse? Até cantor já fui! Detetive! Dançarino!
Tu falou há pouco que entende teu lugar no cenário do cinema brasileiro. A primeira vez que a gente conversou acho que foi lá no O Homem que Copiava (2003), há mais de uma década. Olhando pra tudo isso que conquistou, como encara tua presença no cinema brasileiro?
Acho que a coisa aconteceu de um jeito muito louco, né? Lembro quando, lá no O Homem que Copiava, como vibrava quando pegava mais que uma diária pra fazer! Ou oito diárias, falava “nossa! Oito diárias!”! Hoje o que mais acontece é mandarem roteiro pra mim e eu falar “poxa, não vou fazer, não gostei do personagem”. Porque não é mais a diária que me atrai, e sim os trabalhos, os personagens. Acho que isso foi uma coisa que conquistei, sacou? E naquela época eu precisava de personagens assim, não pra ser o protagonista, mas pra poder viver mais o cinema, pra tá ali, porque amo isso aqui. Quando o Beto Brant me deu o Cão Sem Dono (2007), fui morar no apartamento do filme, comprei um cachorro, dormia com ele na cama, porque o cara me deu tudo que eu queria! Desligava o telefone, tava perto da minha casa e nem ia lá. Foi assim durante dois meses e meio, nem pra pegar cueca, queria ficar ali, vivendo aquilo.
Sumiu o Júlio?
Sumi! Liguei pros meus amigos e disse: “sumi”! E foi uma puta experiência. E aí venho trazendo essa bagagem comigo, porque não fiz faculdade de cinema e nada. Meus mestres e professores são esses caras. Venho pegando um pouquinho de cada um e construindo e aprendendo. E hoje to aqui. Planto essa sementinha desde muito tempo, e agora que to colhendo, então agora é isso, é só colher. E continuar, seguir plantando.
(Entrevista feita ao vivo em São Paulo em outubro de 2016)
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