O convidado especial do Cine Esquema Novo 2021 é Welket Bungué. Nascido na Guiné-Bissau, o artista descrito frequentemente como um criador transdisciplinar – por entremear cinema, poesia, performance, etc. –, ganhou uma mostra com seus curtas-metragens que discorrem sobre questões como História, ancestralidade, herança colonialista, sempre tentando propor reflexões por meio dos entrecruzamento das artes aparentemente distintas. Welket chegou a morar um tempo no Brasil e foi um dos destaques de Joaquim (2017), filme de Marcelo Gomes sobre personagens essenciais da Inconfidência Mineira, e Corpo Elétrico (2017), de Marcelo Caetano. Assim como alterna os trabalhos de ator, produtor e realizador, Welket também deambula pelo mundo, embora atualmente tenha residência fixa em Berlin, na Alemanha. Enquanto termina a escrita de seu primeiro livro, Corpo Periférico, ensaio autobiográfico sobre a produção de cinema com base no conceito de cinema de autorrepresentação, ele nos atendeu gentilmente para este Papo de Cinema por telefone que você confere com exclusividade abaixo:

 

Como está sendo receber essa homenagem do Cine Esquema Novo 2021, especialmente a oportunidade de apresentar seus filmes em conjunto?
Vivencio essa experiência com muita humildade. De fato, é uma oportunidade única ter as obras todas à disposição nesse festival localizado num território que não é Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia, com os quais tenho mais intimidade, feito por uma equipe bastante experiente que dialoga com um cinema de autor feito na Europa e em outros quadrantes. Para um artista que se considera periférico, como eu, é ótimo esse espaço descentralizador, onde os meus trabalhos poderão encontrar o melhor enquadramento possível quanto ao público e à crítica. Estou bastante feliz com a homenagem. Me sinto verdadeiramente valorizado.

Em ‘Intervenção Jah’. Selecionado para a Competitiva do CEN 2019, esse filme-intervenção resultou de uma performance apresentada por Welket Bungué, uma única vez, no Morro dos Prazeres (Rio de Janeiro) em Abril de 2019. Foto/Kristin Bethge

 

Nos seus filmes não há crises/conflitos que podem ser resolvidos entre o início e o fim. Dá para dizer que você utiliza o cinema para elaborar perguntas, projetar inquietações e não tentar oferecer respostas?
Sua pergunta pode ser apresentada como a resposta. De fato, essa é a razão pela qual faço cinema. Meu processo de autorreferência se reflete muito no filme-intervenção, estilismo cinematográfico que propõe ao cinema não ser constituído apenas para ser simplesmente fruído pelo público em geral, mas se tornar um dispositivo de convocação à reflexão coletiva ou comunitária. Por isso muitas vezes as problemáticas são expostas através das narrativas ou das incompletudes dos formatos cinematográficos. Essas problemáticas encontram solução hipoteticamente na discussão. Faço filmes que não podem esperar a aprovação das curadorias hegemônicas, sobretudo porque não proponho temáticas a fim delas serem legitimadas. São trabalhos feitos por um cineasta em trânsito, à procura de um diálogo com a população global, com todas as pessoas que se sintam responsáveis pelos conteúdos e pelas temáticas.

 

A História é vista nos seus trabalhos como um acumulo de fatos registrados, apagados e de crenças/fábulas. É como no cinema, em que mostrado e omitido às vezes têm pesos equivalentes?
Na conversa que tivemos no Cine Esquema Novo, falei que, para mim, mais do que mostrar, o cinema deve ter consciência de determinar aquilo que o autor gostaria que as pessoas vissem. Essa História, predominantemente reproduzida pelos que se identificam com uma visão ocidental, é forjada pela dominação de territórios e de suas gentes. Sou a favor de contar a História, mas a nossa realidade existencial é viver. Contamos a História, mas não a vivemos, porque ela se trata de algo que passou. Os meus filmes, embora tragam certos recortes como factuais, noutros casos como questionamentos sobre os ditos fatos históricos, tentam encontrar uma lógica contemporânea. É preciso dar aos meus contemporâneos a possibilidade de discutir presentemente. Estando ainda vivo e podendo transitar, vivo a possibilidade de acumular perspectivas desconstrutivas das verdades ocidentais dogmatizantes. E isso tem a ver com a lógica periférica, não no sentido geográfico, mas de atitude, de proposição e ocupação de território. Fazer esse cinema é um exercício vital de constante procura de diálogo, para diluir a lógica inusitada desse culturalismo nacionalista que nos separa, em vez de nos aproximar. Reproduzindo-se com base em lógicas primitivas, como as das supremacias. Tento levantar questionamentos, sem pensar que eles determinam as problemáticas. Falar dos tópicos pode abrir portas.

Em ‘Buôn’. Filme integrante da “Mostra artista Convidado Welket Bungué”.

 

Como se estrutura seu método de criação? Além da questão da autorrepresentação, você constrói as imagens a partir dos textos ou essa operação acontece no sentido contrário?
Tenho vários estilismos cinematográficos dentro dessa atitude de autorrepresentação. Quando falamos do documentário experimental, da videoarte ou do filme mobile o percurso tende a ser diferente. No caso do Cacheu Cuntum, o trabalho surgiu depois das imagens captados. Saí da Guiné-Bissau com três anos e voltei com 30. As imagens do filme são a forma genuína, sem filtro, como encarei o lugar. Estava como viajante registrando com meu celular. Quando visitei o memorial da escravatura, previ que seria um momento especial, por isso gravei o guia falando. Desconfiava que ele usaria um solilóquio institucionalizado. Como pode esse homem negro, guineense, descendente, contar a história sob a ótica dos dominadores portugueses? E ele falou realmente a partir do lugar da instituição.

 

Bustagate foi mais ou menos nesse sentido?
Neste filme, temos imagens captadas em Cabo Verde. Existia a vontade de fazer um filme com elas, mas eu não sabia exatamente qual. Na montagem, fiz uso de virais, como os de Claudia Simões sendo brutalizada pela força policial e as imagens publicadas em redes sociais, que são reutilizadas. Quis refletir sobre a questão de ilegalidade perversa como resultado do obsoletismo do serviço de estrangeiros e fronteiras em Portugal. Cleo Tavares e Isabél Zuaa fazem uma dança de sororidade, contraponto à situação da mulher negra violentada. Acontece muito nos meus trabalhos de imagens e vídeos serem recontextualizados em projetos posteriores. Utilizo até o texto como imagem, pois ele transgride o espaço de entendimento etimológico para alcançar um entendimento semiótico. Na fase final, há uma espécie de atropelamento visual, por meio de imagens brutalizantes, pela repetição e fragmentação das imagens. Mas, esse filme não termina somente no que as imagens são, temos de ir à escritura dos créditos. Eles sugerem paz e diálogo. Faço questão de misturar vários sotaques portugueses, pois esses tons não dominantes evidenciam que a cultura está em movimento. Trabalhamos em simultaneidades. Nós, os periféricos, não queremos separar.

 

Em Buôn, há um homem inquieto numa metrópole que não satisfaz seus desejos de saber e viver mais. Um sujeito ciente da potência ancestral, mas perdido, disposto a vagar para encontrar-se. É preciso estar sempre em movimento?
Atenção, estar em movimento não significa apenas deslocar-se literalmente, mas também se encontrar em textos, na gente e nas reflexões pessoais. Nelson Mandela esteve preso por quase 30 anos e foi o homem mais livre do mundo. É esse o grande exemplo que tive. Buôn é um preludio do que fiz, sobretudo depois de identificar minha negritude, ao vir ao Brasil, o mais próximo da África que encontrei. Fico feliz, pois aquela intuição que tive na época foi se tornando mais concreta. Agora as problemáticas se adensaram no sentido da consciência. Quanto mais consciência temos, maior liberdade, maior a responsabilidade ao nos posicionar. Por meio do cinema, comecei a fazer esse exercício de não ser outras pessoas, senão eu. Performance é isto: tentar encontrar o aspecto quase intransmissível do momento. Performance não é algo que você pode imaginar.

Durante filmagens do novo filme ‘Memória’, em Bissau. Foto/ Kristin Bethge

 

Treino Periférico me parece preocupado com tecer tramas que nos ajudam a compreender os resquícios de um colonialismo nas periferias, algo que está presente em outros filmes. Esse tipo de coesão é consciente?
Essa coesão acontece, porque, neste caso, você está à procura da coerência, porque está preocupado com essas questões. O filme é um somatório da experiência do autor e das pessoas que você convoca para realizá-los. Isso agrega territórios, paisagens e contradições. No filme existe aquele ruído fustigando os personagens Raça e Coragem. Temos um ruído daquele bairro precário no seu projeto. Isso é o símbolo de tudo que nos atravessa. É preciso descortinar para melhor entender. A mensagem final é de reunião.

 

Entender o presente a partir do passado a fim de poder projetar o futuro soa a mim como uma grande questão em Mudança. A força da mulher negra, as estratégias ecológicas cos povos indígenas como pilares desse novo mundo esperando ser construído. É um filme que aponta caminhos, de certa forma esperançoso, não?
Claramente. O conflito que Mudança traz não é existencial. É o da possibilidade de concebimento. Ou seja, da capacidade do individuo de conceber um mundo com aquelas características. Antes que se pense na possibilidade, quero que o espectador feche os olhos e imagine a existência desse mundo. Depois, sim, vamos à possibilidade de concretização, afinal temos voz e fala. O diálogo não acontece por quê? Por que ele não surge efetivamente? Por que passivamente nos encaixamos no lugar de consumidores mortificados, absortos nessa ditadura do consenso, likes positivos e negativos? É como se fossemos um rebanho de pessoas isentas de senso critico. Cada vez mais temos receio de nossas decisões. Participar é uma coisa, mas decidir é outra. Nesse sentido, Mudança almeja possibilidades de concebimento, esse mundo diferente, esse lugar mudado no qual somos todos pares. E que nessa paridade consigamos nos organizar horizontalmente. O cinema não representa todos os corpos. Insisto para reequilibrar as coisas no sentido da representatividade. Mas, Mudança não é apenas sobre mulheres negras, mas sobre mulheres.

Bastidores do Teatro do Bairro Alto, em Lisboa, durante as filmagens de ‘Mudança’. Filme integrante da “Mostra artista Convidado Welket Bungué”. Foto/Inês Subtil

 

Claro que cada país lusófono tem suas particularidades, então pensar numa integração cinematográfica a partir da língua portuguesa pode ser uma utopia. Mas, seria uma belíssima utopia nos reconhecermos a partir das histórias que nos precedem, não é mesmo?
Com certeza seria uma utopia linda. Seriam ao menos 400 milhões vivenciando essa rede permitida inicialmente pela língua, mas cujos desdobramentos são possíveis em várias narrativas. No Brasil ou em Moçambique não há apenas um português, mas variações de sotaques. Imagino toda essa babel lusófona como um manancial incomensurável no sentido humano do termo. Claro que cabe aos cineastas, produtores e críticos fazer com que esses conteúdos cheguem ao público multiforme. Mas, também é preciso que nós cidadãos tenhamos consciência dessa diversidade. É preciso libertar-se da imposição midiática daquilo que consumimos com base em perfis comportamentais. Como combatemos essa iliteracia midiática? Diálogo bilateral entre cidadãos e agentes culturais. Senão a distopia do livro 1984, de George Orwell, irá recair sobre nós. O cinema suplanta as minhas limitações enquanto ser humano, maximiza o desejo de mudança, de coesão e de diálogo.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

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