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Sinopse

Neirud morreu misteriosamente, sem deixar vestígios de seu passado. Confrontando segredos de família, a cineasta reconstrói a vida de sua enigmática tia, que percorreu o Brasil como lutadora circense em uma trupe clandestina, só de mulheres, nas décadas de 1960 a 1980.

Crítica

Grande vencedor do Olhar de Cinema de Curitiba 2023, Neirud é um daqueles documentários em que a realizadora remexe arquivos familiares encaixotados em busca de algo escondido. Desse modo, o filme de Fernanda Faya se filia, em termos de abordagem, por exemplo, a Diário de uma Busca (2010), no qual a também diretora Flávia Castro utiliza o processo da construção de um longa-metragem para compreender melhor o seu passado e as suas raízes. No cinema brasileiro recente há inúmeros outros casos desse tipo de produção em que o resultado deriva de uma investigação curiosa pelos baús das histórias dos próprios realizadores – em que se descobrem itens importantes sobre origens. Fernanda parte dos vídeos caseiros da sua primeira infância, nos quais a vemos bebê, engatinhando próximo aos parentes encantados com a sua desenvoltura motora. Porém, o que mais a interessa nesses testemunhos do passado é a presença da tia Neirud, a sócia da avó de Fernanda no empreendimento circense, figurinha fácil nas festas de família e, por conseguinte, personagem por quem a autora sempre nutriu carinho. O documentário acontece a partir das tentativas de descobrir um pouco da história de Neirud: quem ela era? Como conheceu a avó da cineasta? Por que ela não tinha qualquer lembrança guardada no apartamento? Será que sua trajetória ajuda a compreender coisas mais amplas?

Tendo essas e outras questões como norteadoras, Fernanda documenta a busca por vestígios do passado da protagonista, tentando conectar as pontas soltas de uma história praticamente sem resquícios. Em meio à apuração, a realizadora compartilha com o público o fato de descender de uma trupe circense, regredindo ainda mais no tempo para mencionar a fuga de povos nômades da Europa que, tentando se manter incógnitos no Brasil, ocultaram as suas origens com o verniz artístico do circo. Assim, eles se mantinham itinerantes e com uma atividade profissional que permitia a sua subsistência econômica. Na falta de material de arquivo suficiente, Fernanda faz um malabarismo criativo, especialmente a fim de ilustrar essa história remontada a partir de fragmentos dispersos de memórias. Então, quando está falando da herança cigana, ela recorre a imagens que não necessariamente correspondem diretamente a seus antepassados, dispostas com o intuito de completar visualmente o sentido da narração em primeira pessoa. Aliás, esse um dos grandes méritos do filme, o da curadoria de imagens que preenchem as lacunas deixadas pela ausência de material de um arquivo específico. Da própria Neirud há poucas fotografias e filmagens, fato inteligentemente utilizado pela cineasta para fomentar uma expectativa. Fernanda cita a sua obsessiva procura dos indícios da Mulher Gorila, a personagem de Neirud.

Durante o processo de tentar refazer a história da tia Neirud, Fernanda toca levemente em assuntos mais abrangentes, como a opressão aos povos nômades, as dificuldades dos artistas circense e à perseguição à liberdade feminina – inclusive no contexto da Ditadura Civil-militar que desgovernou o Brasil por 21 anos. No entanto, a realizadora não se aprofunda em nenhum desses tópicos, até porque fica bastante claro que os está utilizando para desenhar o contexto, não permitindo que eles se tornem digressões. Assim, não dispersam a atenção da investigação. Se há algo habilidoso em Neirud é a construção da expectativa, como num thriller. Sim, pois Fernanda compartilha conosco a angústia de talvez não existirem as imagens de Neirud atuando como Mulher Gorila nos improvisados ringues de luta livre entre mulheres (modalidade popular, especialmente, nos anos 1970). Seria impreciso dizer que o documentário é “umbigocêntrico”, ou seja, que fala mais da autora do que necessariamente da personagem, até porque Fernanda pouco se revela nesse processo de tentar encontrar o passado de Neirud. O grande impulso narrativo do filme é justamente a procura, a investigação, o ímpeto de juntar indícios de uma existência que a própria Neirud negou depois da perda de um grande amor e da conversão ao evangelismo de recorte neopentecostal. E nisso o filme transborda curiosidade, saudade e afeto.

Fernanda Faya luta visivelmente contra a escassez de imagens para ilustrar a sua investigação em Neirud. Tanto que em vários momentos recorre à tela preta para o espectador permanecer atento funcionalmente às palavras, como quando liga para o pai em busca de pistas. Fernanda poderia muito bem se mostrar ao telefone conversando com o homem que tem algumas chaves para abrir esse baú familiar. Porém, a isso prefere a escuridão e o foco nas palavras. A autora cozinha em fogo baixo a expectativa a respeito da fascinante Neirud, antes que, por exemplo, revelações levem ao entendimento sobre o racismo incutido no apelido de Mulher Gorila para uma lutadora negra e corpulenta. Fernanda reflete brevemente sobre alguns elementos ora periféricos, ora estruturais dessa história feita de inúmeros episódios pouco conhecidos em família. Então, quando ela anuncia ter recebido imagens em movimento que podem corroborar alguns depoimentos, o espectador está ansiando por elas, desejando fervorosamente que em algum momento vejamos a Mulher Gorila em ação nos ringues. No fim das contas, Fernanda lida bem com as restrições impostas pela falta de material de arquivo ao completar determinadas lacunas com soluções criativas, além disso compartilhando o interesse pela personagem marcante de sua vida íntima. Pena que Fernanda não avance muito em determinados pontos.

Filme visto no 2º Bonito CineSur em julho de 2024.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.
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