Crítica


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Sinopse

A jovem Alice vive com a mãe Helena em Ciarema, numa casa em frente ao mar. A residência sofre com o avanço das águas que destroem a propriedade e já motivaram a partida de outras famílias. A filha, uma ambientalista, pretende se mudar para outro lugar, mas a mãe quer permanecer na cidade. Elas precisam encontrar juntas uma solução.

Crítica

Se quisermos identificar o viés autoral no cinema de Petrus Cariry, um dos caminhos é entender as recorrências estilísticas e temáticas. E esta missão não é das mais difíceis, pois estamos falando de um artista que retorna conscientemente às suas inquietações. Seu mais recente filme, A Praia do Fim do Mundo, apresenta boa parte dos elementos e das abordagens que tornaram a sua obra uma das principais entre as dos cineastas de sua geração. Os primeiros (e belíssimos) planos da orla da praia de Ciarema carregam a ambiguidade com a qual o realizador cearense quase sempre encara a natureza. O mar é a fonte de onde viemos (biologicamente falando), como consta num rabisco de parede. Mas é também essa força descomunal que reivindica de volta um território. Muitas vezes, a austeridade da lindíssima fotografia em preto e branco está a serviço da composição de quadros em que o céu e o mar parecem em conluio para expulsar o humano da beira-mar. As nuvens carregadas acentuam o clima de morte na comunidade litorânea carcomida pela maresia e pelo avanço das cada vez mais violentas ressacas. Esse fim de mundo no qual o passado e os teimosos resistem já estava presente em Mãe e Filha (2011) e Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois (2015). Nesses dois filmes anteriores, com os quais o mais atual dialoga abertamente, também era protagonista uma disputa familiar em que diferentes gerações se esvaiam em conflitos. Os mais velhos ancorados pelas lembranças, como se oxidassem com os metais das casas apodrecendo; os mais novos se apegando à esperança de um futuro.

A Praia do Fim do Mundo retoma esse olhar de Petrus Cariry para um território físico que espelha geografias imaginárias. A paisagem metafórica resulta do choque entre as memórias e a angústia por não saber o que esperar do amanhã. Helena (Marcélia Cartaxo) é de outro tempo, alguém de semblante enrijecido (enferrujado?) pelo passar dos anos e pela consequente melancolia resultante do não pertencer fora da casa prestes a desmoronar. A interpretação magnífica de Marcélia confere a essa mulher duas leituras imediatas: ou bem é uma personificação da edificação que sofre com as idas e vindas das marés ou um fantasma transitando por um lugar condenado. Talvez faça sentido pensar nela, simultaneamente, de ambas as maneiras. Matriarca de poucas palavras, ela quase sempre é vista estaticamente. Quando muito se movimenta lentamente em direção aos ambientes que podem lhe religar ao passado, como um emplastro. Petrus constrói uma dinâmica em que o concreto e o imaginário convivem e se autoalimentam organicamente. Para isso, o preto e branco funciona adequada e poeticamente. Por um lado, há a ruína da casa como fruto de um movimento cientificamente compreensível, o das águas avançando (obra do aquecimento global, inclusive?). Por outro, a camada menos cartesiana e mais simbólica disso tudo, por meio da qual o realizador sugere o invisível valendo-se de poucas palavras, dos sons que invadem os quadros e das relações que se desenvolvem por ali.

Sim, pois a obsolescência impressa nas paredes desgastadas, nos metais enferrujados, nas instalações descascadas, nas frestas do concreto que permitem vazamentos, também remete à força natural reivindicando a posse de algo usurpado artificialmente pelo homem. Helena diz que sua família pretendia ganhar dinheiro com a pousada atualmente condenada pelo mar, assim pensando num tempo de prosperidade baseada na exploração do turismo local. Mas, a redução progressiva e violenta da influência dos homens se dá pela força das águas, como se a natureza reclamasse o direito a reocupar aquela faixa de areia que as pessoas queriam transformar em atração visando acumular dinheiro. A personagem de Marcélia Cartaxo segue se movimentando pesarosa pelos cômodos, sendo uma entidade que tenta respirar ao ser privada do seu "oxigênio" (a sensação de pertencimento, a casa, o marido, os pais, o passado glorioso). E, mantendo-se fiel à sua contumaz austeridade, Petrus Cariry contém tudo no limite da insinuação, permitindo que somente o mar aja escancaradamente. No mais, as pessoas parecem projeções do ambiente decadente que viveu seus anos dourados há muitos anos. Helena é como a matriarca de Zezita Matos de Mãe e Filha, ou seja, alguém que provavelmente prefere acabar afogada em memórias e agarrada aos pilares do passado do que tentar uma nova vida em outro lugar qualquer. Se retirada de seu habitat, provavelmente morra. Como um peixe fora d’água.

Como também é frequente no cinema de Petrus Cariry, a nova geração é tida como uma força de contestação. Filha de Helena, Alice (Fátima Muniz) parece ecoar a voz da razão ao brigar para que ambas deixem o lugar. Porém, não tem a coragem de largar a mãe sozinha – diferentemente da descendente de Mãe e Filha, que demonstra a sua reverência ao retornar. Alice carrega o futuro no ventre. E A Praia do Fim do Mundo utiliza essa situação para adicionar outra camada numa ponderação solene sobre o tempo. Aliás, uma das estratégias para situar a narrativa no limiar entre o concreto e o abstrato (além da fotografia em preto e branco que se encarrega da atmosfera onírica) é desgastar as noções de tempo cronológico. Quantos dias, semanas ou meses se passam do começo ao fim da história? Não sabemos, o que enfatiza a indeterminação. Além disso, há várias simbologias, sendo uma das principais o mendigo que cata o lixo das praias. O sujeito pode ser quem somos levados a imaginar ou apenas outro fantasma da Era prestes a acabar. Ele é a exceção presente que confirma a regra da ausência masculina. Nessa abordagem da vida e da morte como entidades contíguas, Petrus conta com o excepcional trabalho de som assinado por Moabe Filho, Pedrinho Moreira e Érico Paiva para instaurar a inquietude e evocar simbolicamente certas entidades, como a baleia oriunda da parábola bíblica protagonizada por Jonas. O resultado é um filme que pulsa lenta e constantemente no ritmo das marés que açoitam o litoral.

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Jornalista, professor e crítico de cinema membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema,). Ministrou cursos na Escola de Cinema Darcy Ribeiro/RJ, na Academia Internacional de Cinema/RJ e em diversas unidades Sesc/RJ. Participou como autor dos livros "100 Melhores Filmes Brasileiros" (2016), "Documentários Brasileiros – 100 filmes Essenciais" (2017), "Animação Brasileira – 100 Filmes Essenciais" (2018) e “Cinema Fantástico Brasileiro: 100 Filmes Essenciais” (2024). Editor do Papo de Cinema.

Grade crítica

CríticoNota
Marcelo Müller
8
Robledo Milani
9
MÉDIA
8.5

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