O cineasta Quentin Delaroche é francês de nascimento, mas em Camocim (2018) volta suas lentes para um problema que atualmente assola desgraçadamente o Brasil: a completa polarização política. Inicialmente, ele pensava em realizar um documentário sobre as relações de poder subordinadas a uma lógica coronelista no interior do país. Então, encontrou personagens como Mayara em Camocim de São Félix, encantando-se pela paixão idealista dos moradores da cidade do interior pernambucano. Neste Papo de Cinema, que tivemos por telefone com o realizador, ele fala sobre a necessidade de resistir aos ímpetos autoritários de uma extrema direita que procura brechas na insatisfação popular com os homens e mulheres eleitos democraticamente para representar a massa. Confira a entrevista exclusiva com Quentin Delaroche, que agora apresenta Camocim ao público do circuito comercial.
O principal combustível de seu interesse, neste caso, foi a paixão local em torno da política?
Na verdade, a ideia inicial era fazer um filme sobre o interior do Pernambuco, onde imperam relações de poder relativas às heranças do coronelismo. Nas primeiras pesquisas, me dei conta de que todas as pessoas encontradas falavam de política. A priori, seria o sinal de uma democracia que funciona plenamente. Todavia, observo também um sistema clientelista, de compra de votos, mesmo. Como francês, fiquei surpreso com relação a isso, bem como intrigado diante dessa paixão política que encontrei. Camocim era um projeto mais amplo, visava retratar vários personagens. Após um ano e meio de busca, acabei chegando a Camocim de São Félix, cidade com um histórico de coronelismo, com tudo que tem de pior, paternalista, com mortes e assassinatos, por exemplo.
Já estava previsto o protagonismo da Mayara ou o engajamento dela foi determinante para torna-la incontornável como figura central?
Um mês antes de começar a filmar, regressei à cidade para fazer as últimas pesquisas e acabei encontrando a Mayara conversando sobre política na praça. Fiquei encantado e apaixonado pelo carisma dela, por aquele idealismo. É algo bonito, principalmente num momento como o atual, em que vemos surgir esse discurso perigoso de que todos os políticos são ladrões e corruptos. Esse posicionamento leva a um esvaziamento ideológico, favorável à extrema direita. O encontro da Mayra, dessa jovem que deseja mudar a realidade exatamente através da política, mudou os rumos do documentário. Ele se tornou um improviso sobre o real. Morei durante dois meses em meio em Camocim de São Félix. Filmei muitas pessoas diferentes, visando justamente ter vários personagens. Mas, logo soube que a Mayara teria suma importância. Todavia, foi apenas na montagem que descobri o seu protagonismo.
Camocim chega num momento de cisão politica entre a direita e a esquerda no Brasil. Todavia, você parece mais interessado por pessoas que por questões ideológicas, certo?
Nunca tive o desejo de fazer um retrato didático, de explicar como algum candidato pensa. Na campanha, em qualquer delas, vejo esvaziamento ideológico. Não são discutidas propostas. Com Mayara e o Cesar, o candidato a vereador, tinha um pouco dessa formulação. Mas, os eleitores não se interessam por isso, vivem onde nunca houve espaço para tal construção. É um círculo vicioso. Queria colocar na telona um pouco da experiência sensorial que tive. Para isso, há a intervenção do som e da trilha. Mas, respondendo diretamente à pergunta, me interesso realmente por pessoas. A partir delas, conseguimos retratar algo bem mais amplo. É assim que gosto de filmar.
Em dado momento, num enfrentamento, vemos militantes pedindo para você filmar manifestações alheias. Em algum momento lhe cobraram a escolha de um lado da disputa?
Totalmente, o tempo inteiro isso acontecia. Tive o cuidado para que nossa presença não fosse instrumentalizada por um dos lados. E também tinha medo de que, por exemplo, os azuis não permitissem filmá-los ao me ver registrando os vermelhos. Expliquei bem didaticamente a todos a proposta do filme, esclareci que estava ali para representar o cotidiano da campanha. Todavia, aconteceu algo curioso. Teve um dia em que eu estava filmando no palco dos azuis e o coordenador da campanha começou a anunciar que tinha um francês fazendo um filme sobre eles (risos). Foi preciso pegar o microfone. Fiz questão de dizer que também filmava o outro lado. Foi muito claro esse processo.
Como você percebe o atual cenário político brasileiro, com amores e ódios mediando as relações, as redefinindo muitas vezes?
É alarmante a descrença na politica. Entendo, pois são muitas desilusões. O sistema capitalista vai destruindo o planeta e as relações sociais. A política não oferece alternativas. Tenho a impressão de que ela apenas piora. Mas, por enquanto, é o que temos. Meu medo é que essa descrença leve a respostas autoritárias. Depois de Camocim, codirigi Bloqueio, um filme sobre a greve nos caminhoneiros de maio. Vimos uma classe trabalhadora exausta e desiludida quanto à democracia. Certas pessoas não acreditam mais nos três poderes. Aí vem a extrema direita, com isso de colocar militares no poder. Sabemos que não resolverá. O que é mais difícil nesse necessário local e global é a impossibilidade de diálogo e escuta, de ambos os pólos. Olhe o que sobreveio à facada que o Jair Bolsonaro levou. Os aliados dele também divulgaram fake news. Essa falta de comunicação é problemática. Mas, jovens como a Mayara ainda geram esperança. Temos gente que acredita, que deseja realmente participar do jogo democrático.
(Entrevista concedida por telefone, numa ponte Rio de Janeiro/São Paulo, em setembro de 2018)
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