Nascida no pequeno município de Itaú de Minas, situado a 90km de Belo Horizonte, a mineira Juliana Antunes rumou em 2008 para a capital em busca de um sonho: estudar cinema. E esse desejo foi acalentado durante toda a faculdade, até se concretizar no seu primeiro longa-metragem: o híbrido – com ela mesmo define – Baronesa (2017), que teve sua primeira exibição na Mostra de Cinema de Tiradentes, no ano passado, de onde saiu com o principal prêmio da mostra competitiva. De lá para cá, o filme, que foi editado por Affonso Uchoa, diretor do também premiado Arábia (2017) – projeto que contou com Juliana como assistente de direção – foi exibido em diversos outros festivais, como em Mar del Plata, na Argentina, Jeonju, na Coreia do Sul, e Art of the Real, no Estados Unidos, além do Olhar de Cinema, aqui mesmo no Brasil. E foi sobre esse projeto, finalmente em cartaz nos cinemas, que a cineasta conversou com exclusividade com o Papo de Cinema. Confira!
Pra gente começar, gostaria de saber o que é Baronesa e como nasceu o projeto do filme?
Baronesa é uma ocupação urbana, na periferia de Belo Horizonte. E o curioso: nunca cheguei a filmar lá. Eu sou do interior de Minas Gerais, não sou daquela região. Mas, quando cheguei em BH, recebi a seguinte dica: “os ônibus azuis, você pode pegar todos. Os verdes, você evita. E os vermelhos vão te deixar muito longe, melhor não entrar neles também”. Estava estudando no cursinho pré-vestibular, e comecei a observar o movimento urbano. Na época tinha uns 21, 22 anos. E o que me chamou atenção é que vários destes ônibus que iam para a periferia tinham nomes de mulheres. Comecei a anotá-los, e quando me dei conta já havia mais de 15 nomes no meu caderno. Mas beleza, deixei isso de lado. Passei no vestibular de Cinema, e quando comecei a cadeira de Documentário, resgatei essa história e decidi pesquisar esses bairros. Ao todo, descobri que existem 36 bairros com nomes femininos na capital mineira. E todos muito distantes. E por que isso? Historicamente, essas regiões pertenciam a um fazendeiro maluco que tinha como costume comprar a virgindade dessas mulheres. Ou seja, é uma origem tão misógina, que percebi que tinha que fazer algo a respeito.
Fazer cinema, você diz? Era um trabalho de faculdade que se desdobrou no longa Baronesa?
Comecei a fazer essa pesquisa mais pela via histórica, mesmo. Mas foi o que me permitiu concluir que havia um filme possível ali. Com isso em mente, fui atrás dos arquivos públicos, sem ir diretamente até a periferia. Num segundo momento é que fui pegando ônibus a ônibus e indo até esses lugares, em busca dessas mulheres. Isso porque não as encontrava nas ruas. Até cheguei a colar cartazes, publicar anúncios, e não tive nenhum retorno. Mandei padre anunciar em missa, e mesmo assim não adiantou. Até que um dia colei um cartaz perto de um salão de beleza. E foi dali que recebi a primeira ligação. Assim o primeiro dispositivo do filme foi criado: mulher, que morava em bairro com nome de mulher, e que trabalhasse em um salão de beleza. Com isso, consegui elaborar o meu TCC.
Até esse momento, portanto, era apenas uma tarefa da faculdade. Em que ponto foi dado o passo adiante para transformar esse material em cinema?
Quando decidi deixar de lado essa pesquisa histórica. Foi importante para contextualizar, mas agora não fazia mais sentido. O foco estava nessas mulheres, e por isso comecei a filmá-las. Cada matéria da faculdade seguia nessa linha: um sobre cabeleireiras, outro sobre manicures, etc. Todo semestre tinha que fazer um curta, e cada um era um passo que me levava em direção ao Baronesa. Sempre estava fazendo algo a respeito. Mas nunca entregava para os professores o filme, apenas a pesquisa. Todo o material bruto permaneceu comigo. Pois sabia que precisava de mais alguma coisa. Quando chegou o momento de colocar o meu TCC em prática, me dei conta que estava em uma sala de aula em que só tinham homens, e nenhum deles topou fazer esse projeto comigo. Na época eu era estagiária de uma produtora, e meu chefe me disse: “mulher sozinha não pode pegar câmera”. Indignada, fui atrás de editais abertos de cinema, até que encontrei o antigo Filme Minas, que dava até R$ 100 mil para a realização de um curta. Como eu era universitária, me deram apenas a metade desse valor.
Por que os homens, teus colegas, não quiseram fazer o filme contigo? O que alegavam?
Misoginia. Pura e simples. Eles queriam fazer os projetos deles, que acreditavam ser mais legais, mais bacanas, e nem se importavam muito em analisar o que eu estava apresentando. Foi por isso que acabei me juntando com duas amigas jornalistas. Nós três escrevemos o que iríamos fazer e conseguimos aprovar os R$ 50 mil. E demos sequência a essa pesquisa, que ao todo se estendeu por anos. Por fim, chegamos ao recorte do bairro Juliana, que era o último que queria ir, mas a vida acabou me levando até lá. Foi quando, também, entrou a Fernanda de Sena, nossa fotógrafa, que ficou conosco por seis meses. Acontece que a Andreia, que acabou sendo a protagonista do filme, não queria ser filmada de jeito nenhum. Por isso que ficamos no Juliana: lá foi possível filmar o salão de beleza, não que aquele universo nos interessasse particularmente, mas possibilitou nos aproximar daquelas mulheres e, com isso, ganhar ‘responsa’.
Em que momento a Andreia entrou, então, no filme?
Foi muito aos poucos. Eu pedia para ela apenas uma cena, que topava e acabava fazendo. Quando juntei material suficiente, mostrei e disse: “tá vendo que o filme é você?”. E ela: “ok. Terças e quintas? E você vai ter que se mudar para cá”. Beleza, me mudei. E fui, sozinha, morar nessa favela. A equipe ia me encontrar nos dias combinados. Ao todo, foi assim por seis meses, o período que fiquei por lá. E o mais bizarro: no dia que me mudei, estourou uma guerra entre as facções. Com isso, tive que recuar e voltar para casa, logo na hora em que a Andreia havia topado! Estava instalada em um barraco na frente da casa dela, e tive que desistir de tudo. Mas isso durou só um dia. No seguinte, estava de volta. Não iria deixar o filme morrer. Eu dirigi, escrevi, produzi, negociei com traficante, fiz sanduíche para a equipe, tudo praticamente sozinha.
Podemos dizer que Baronesa é um documentário? Tudo que se vê na tela é espontâneo?
Pelo contrário. Tudo foi muito ensaiado. Esse é um filme híbrido, na real. As histórias são de vivências da Andréia, por exemplo. Mas também tem coisas que vieram de outras mulheres. Não sou de classe média alta, passei muito tempo morando em periferia – talvez não como essa que filmei, mas, ainda assim, longe do centro. A vivência que filmei era nova para mim, é claro, mas não completamente inédita. Era algo da minha própria base estrutural de vida. Então tem um pouco de tudo, de toda aquela pesquisa, coisas da vida, que me interessavam de alguma forma, de outras referências cinematográficas. Uma coisa em comum que a Andreia e eu compartilhávamos na época das filmagens, para você ter uma ideia, era o desejo de viajar. Antes desse filme, eu havia viajado quase nada, e ela também não. Então, aquela cena do dólar, foi toda produzida – a nota, o boné, figurino, texto, tudo foi pensado naquela sequência. O Negão também foi uma complicação, pois ele foi preso no meio das filmagens, então teve coisas com ele que tivemos que refazer, ou mesmo deixar de fora.
Tem uma cena com ele, a da capoeira, que a gente percebe que ele está usando uma tornozeleira.
Exato. E aquilo só aconteceu porque consegui tirá-lo da cadeia. Foi no meio do projeto. Então, coisas tiveram que ir se adaptando. Por outro lado, não era uma vontade minha “mostrar ele de tornozeleira”. Aquilo só aconteceu porque ele foi preso e eu precisava dele. Vai ter que mostrar assim? Bom, que seja. Ele roubou um celular, e queriam deixá-lo um ano e meio atrás das grades. Fui lá e disse: “olha, ele está trabalhando”. Foi assim que o consegui de volta. Não faria sentido não ter o mínimo de intervenção em uma situação como essa, ainda mais estando tão próxima como eu.
Estando em uma estrutura aparentemente tão livre, mas, como você está dizendo, tão controlada, como saber o momento de parar de filmar?
Quando acabou o mínimo de dinheiro que a gente tinha. Esse foi o primeiro momento. Teve, também, um dia em que estávamos nós três: a Marcela, que fez a pesquisa e o som do filme, eu e a Andreia. Fomos nós três filmar. Quando liguei a câmera, a Marcela deitou num sofá e dormiu. A Andreia virou para o outro lado e fez o mesmo. E sobrou somente eu, sozinha, com a câmera ligada. Sabe, ela era a pessoa mais envolvida – além de mim, é claro – nessa história, e ao lado dela estava a protagonista, e nenhuma das duas aguentava mais. Foi quando me dei conta de que também queria deitar, e só estava disfarçando. Ali, então, já tinha dado. E isso era numa terceira etapa, quando estávamos gravando apenas cenas pontuais, e ainda por cima muito pouco disso terminou sendo aproveitado. Olha a ironia!
Com o filme pronto, você acredita que ele atendeu aqueles desejos que você tinha lá no início?
Não. Isso, não. Com o Baronesa, a ideia inicial era filmar lésbicas da periferia. Tinha esse desejo de filmar uma juventude lésbica. Talvez até pelo fato de eu ser gay. Mas isso está no meu projeto agora, e vai estar no próximo filme, que vai se chamar Bate e Volta Copacabana. Outro desejo também era de fazer um filme ainda mais ficcional. Mas limitações, tanto de equipe quanto de equipamento e de experiência, me impediram. Mas, óbvio, o Baronesa também me supera em outras questões. Você até pode ter o projeto inicial desenhado no papel, muito bem descrito, mas a vida está a todo instante te oferecendo outras coisas. Você precisa ficar atento para isso. Então, meu desejo, a priori, não foi cumprido. E que bom.
Teve muitas coisas que tiveram que ser alteradas?
Nossa, bastante. Uma coisa, por exemplo, que não queria, era filmar mães. Até porque este é um assunto difícil para mim, uma coisa pessoal, mesmo. Só que a gente vai se abrindo, né? E hoje percebo que a força do filme está, justamente, nesta mulher com seus filhos. Estava muito ligada na questão da juventude lésbica – não que mulheres lésbicas não possam ser mães, mas queria meninas de 17, 15 anos. E tem o fato da nossa sociedade ser muito patriarcal. Numa favela, mulher é quase uma objeto, tem uma questão de posse, mesmo. Infelizmente. A coisa mais difícil do Baronesa era a negociação com os maridos, com os irmãos, primos, pais, namorados. A quantidade de personagens fantásticos que perdi nesse filme por questões como essas, é incrível. Mas foi uma decisão de montagem, também: ou me concentrar nestas personagens que mais renderam, ou fazer um panorama de todas essas mulheres.
Baronesa tem momentos que deixam o espectador querendo mais. Há um equilíbrio delicado entre o que mostrar ou não.
Quando você tem um material tão vasto, claro que é complicado decidir o que entra ou não no filme. Mas há algo que precisa ser compreendido, que é o ritmo da periferia. O ciclo da violência, sabe? Não é o nosso ritmo. Lá, quando acontece alguma coisa, as reações precisam ser imediatas, não há muito tempo para reflexão. É como a arquitetura daquele lugar, construções e ruínas. Se a gente se encontrar daqui uns dois anos, acredito que estaremos fisicamente parecidos – talvez um pouco mais gordo, ou mais magro, ou com mais ou menos cabelos. Mas possivelmente estaremos trabalhando com as mesmas coisas, com o mesmo círculo social, com pequenas mudanças. Lá, nem sei se estarão vivos daqui dois anos.
Teve coisas que você ficou em dúvida se deveria ou não colocar no filme?
Elas acompanharam muito o processo. A gente filmava, e já mostrava na mesma hora, olhando na câmera. Então, não houve surpresas. Era tudo muito discutido. Elas viram todos os cortes. Cada cena, antes mesmo de ser feita, era muito negociada. Não teve nada “roubado”, sabe? Como filmar pessoas falando exatamente sobre aquele assunto, naquele enquadramento, com a luz certa? É claro que tudo foi ensaiado. Acho muito burguês as pessoas pensarem que consigo manipular essas mulheres para falarem o que eu queria, sem se darem conta. Na real, elas sempre tiveram total domínio sobre tudo que estávamos fazendo com elas.
Elas chegaram a ver o filme pronto? O que acharam?
Sim, claro. Foi durante a Mostra de Cinema de Tiradentes, no começo de 2017. E foi engraçado, pois a primeira reação que tiveram foi “puxa, que filme chato” (risos). Uma me perguntou: “mas não gravamos nenhuma cena de ação?”. Elas estão acostumadas com um outro tipo de cinema. E a gente tinha mesmo esse jogo. Fizemos várias cenas mais ficcionais, pra divertir, mesmo, para deixá-las mais soltas. A referência popular é a novela, né? Isso serviu também para que eu pudesse entender como filmá-las da melhor maneira.
Como foi a passagem pela Mostra de Tiradentes?
Pois então, lá foi a estreia, a primeira exibição. Quando você faz um filme que lhe toma muito tempo, ainda mais um projeto que foi tão desacreditado, num cinema completamente machista, como é o cinema mineiro – talvez, de todos os estados do Brasil, seja o qual nós mulheres tenhamos menos acesso aos editais. Quais são as cineastas mulheres de Minas Gerais? São pouquíssimas. E se for comparar com outros estados, é assustador. Então, foi muito massa ver que o filme foi recebido dessa maneira, já sendo premiado e tal. E por estarmos falando de um universo feminino, sem ser da maneira estereotipada como as pessoas pensam sobre a feminilidade.
(Entrevista feita ao vivo em São Paulo)
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