Na década de 1980, o banqueiro Yvan de Wiel (Fabrizio Rongione) tem que viajar à Argentina às pressas, no auge da ditadura militar. Seu sócio no local, René Keys, desapareceu misteriosamente, deixando os clientes milionários preocupados. O homem tímido precisa garantir que a situação está normal, enquanto o governo autoritário provoca novos sumiços e agressões pelas ruas da cidade.
Esta é a premissa do perturbador Azor (2021), filme dirigido pelo suíço Andreas Fontana. Neto de banqueiros, ele mergulha no universo das corrupções dos homens de poder, dispostos a fechar aos olhos às situações inconvenientes, contanto que o dinheiro continue entrando. O próprio título representa uma ameaça: no jargão do mundo financeiro internacional, “azor” significa “cale a boca, tome cuidado com o que diz”. Quanto mais tempo Yvan passa em Buenos Aires, frequentando festas luxuosas e jantares de negócio, mais percebe a origem sangrenta do dinheiro que manipula.
O Papo de Cinema conversou em exclusividade com o cineasta sobre este suspense sombrio, e mais atual do que gostaríamos. O filme chega aos cinemas em 16 de dezembro, pela Vitrine Filmes.

O diretor Andreas Fontana

Azor nasce de uma história pessoal? Se não me engano, você cresceu entre banqueiros do setor privado.
Sim. Mas é preciso lembrar que nas famílias tradicionais de Genebra, como a minha, não é muito surpreendente ter um banqueiro na família. Esta é uma indústria importante no país, principalmente no caso de bancos privados. Por isso, qualquer suíço de Genebra, com mais de duas gerações no local, tem pelo menos um pai ou primo neste ramo. Não sou exceção. Meu avô foi banqueiro privado, mas não cresci neste meio. Minha mãe era professora de francês, e meu padrasto era escultor, o que me trouxe uma forma de ruptura com este ramo. É curioso que meu avô banqueiro não tenha sido realmente interessado por esta atividade, apesar de ter se dedicado a ela. Quando ele morreu, comecei a me interessar por esta atividade na qual ele se encontrava, de certo modo, à margem. Ele nunca foi um pilar essencial dos bancos privados, como são os personagens do filme. Mas graças a essa relação familiar, pude penetrar no meio dos bancos privados em Genebra, que é bastante fechado. As pessoas suspeitam de qualquer nova pessoa ao redor. Felizmente, isso ajudou meu acesso em Genebra. Mesmo na Argentina, as pessoas tinham grande fascinação pelos suíços. Quando você diz que é suíço, dos bancos, e está bem vestido, as portas se abrem. 

Um dos personagens principais é René Keys, o homem sobre o qual todos falam, mas que nunca aparece em imagens. Como enxerga a função dele na trama?
René Keys, o colega de Yvan, é uma espécie de Rasputin para os clientes. Percebi rapidamente que queria trabalhar com um Rasputin: cada vez que alguma interação gira em torno do dinheiro e do poder, isso gera uma forma de corrupção ligada a um conselheiro oculto. Era bastante interessante trabalhar com isso. Cada imaginação é mais forte do que aquilo que eu poderia mostrar, enquanto cineasta. Confio no espectador para fabricar em sua cabeça um René Keys muito melhor do que um sujeito que eu poderia mostrar. Alguns espectadores não gostam disso, e me acusam de não ter imaginação, ou de ser preguiçoso! Cada espectador tem uma imagem precisa de Keys, mas tenho a certeza de que, se cada um tivesse que fazer um retrato específico dele, sairiam homens bem diferentes. Fabricamos a imagem de acordo com nosso desejo. Gosto da ideia de um personagem que corresponda ao desejo tanto dos clientes quanto dos espectadores. Ele é a representação ideal do mal, porém de um mal fascinante, sedutor. Com a garota desaparecida, a relação é mais sombria. São dois desaparecimentos quase opostos: para o homem banqueiro, nasce uma atração; mas para a garota, existe a referência história dos desaparecidos argentinos, sobre os quais não se falam. Tive pudor em mergulhar neste aspecto. Decidi que a maneira mais justa de abordar o tema seria deixá-lo fora de quadro, evocado. Este é um desaparecimento diferente – é uma forma de luto.

A propósito de pudor, Azor está repleto de violências sugeridas, que jamais se concretizam em imagens.
De fato, este era um preceito estético. Godard diz algo que eu gostaria de subverter um pouco aqui: “Todos os filmes de guerra, mesmo quando são contrários à guerra, acabam sendo pró-guerra, porque a transformam em espetáculo”. O lado espetacular da violência produz uma fascinação intrínseca, como se não fosse possível deixar de admirar seu aspecto catártico. Duvido da estratégia de mostrar a violência para denunciá-la. Por isso, desde o princípio, determinei que a atração do espectador não poderia passar por esta pulsão. Eu me considero um espectador exigente. Quando assisto a um filme norte-americano de ação, tenho prazer, e sei de onde isso vem: é a adrenalina da ficção. Mas não queria entrar nisso: é obsceno fabricar uma pulsão violenta a respeito deste tema. A sugestão teria um caráter mais tóxico e, por isso, mais forte. Quanto mais forte gritamos, mais as pessoas desenvolvem estratégias para não nos escutar. Em contrapartida, quando dizemos algo muito preciso, de maneira contida e incisiva, isso ressoa. Foi minha precisa inicial: retirar tudo que pudesse “fazer barulho”, no sentido de prejudicar as minhas intenções. 

Estas agressões adquirem uma aparência de normalidade, apesar da ditadura, até porque as imagens são elegantes, bem filmadas. Talvez essa seja a maior violência.
Um crítico de cinema americano disse que Azor fala das estratégias que temos, enquanto seres humanos, para não enxergar aquilo que nos perturba. A obscenidade do meio financeiro não vem do fato de ter dinheiro, mas da estratégia de eliminar aquilo que incomoda, em termos morais. Eles optam por jamais enxergar o sangue que se encontra em todos os lugares. Eles nunca estão dispostos a questionar a origem do dinheiro, e o modo como ele é produzido. Quis se preciso nisso: este tipo de violência ocorre de fato. O dialeto empregado no filme é real: eles inventaram palavras para evitar aquilo que incomoda. É algo puramente obsceno.

Como percebe a maneira como representamos as ditaduras sul-americanas hoje em dia, além da responsabilidade das potências europeias no financiamento destas políticas?
Não sou jornalista nem historiador, mas sei que hoje, em 2021, a CIA poderia até dizer “Sim, tivemos uma participação forte nos golpes que aconteceram”. Mesmo assim, o mal está feito, é tarde demais. Muitos governos já retomaram o caminho democrático para superar este episódio e propor algo melhor. O aspecto mais grave vem da hipocrisia das diplomacias enquanto isso ocorre. Hoje, em particular, existe uma tentativa grave de reescrever a História. Conversei com um jornalista que tinha falado com o Serviço de Vigilância Americana. Eles admitiram a participação norte-americana em todos estes planos. Todo mundo sabe, no fundo.  A questão é o que fazer a partir disso: podemos apenas receber essa informação e seguir em frente, ou então estudar de que maneira todos os setores da sociedade estavam implicados na sustentação das ditaduras. Isso incomoda muito mais. 

Qual é o papel das mulheres neste poder bastante masculino? São as mulheres que nos explicam o significado do termo “azor”, por exemplo.
É fascinante retratar uma sociedade estritamente masculina, no sentido mais tóxico do termo. Tudo se mede no enfrentamento entre os machos testando seu poder e caçando uns aos outros. Mas claramente, esta é apenas a parte mais visível da história. Este filme data de 2021, e acho importante que ele seja reflexo da sociedade de hoje. A representação das mulheres na História começa a ser reavaliada e questionada: de que maneira, mesmo nos meios mais ostensivamente masculinos, elas agem e se comportam? Isso não é nada anódino. Queria mostrar este aspecto, mas não se trata apenas de um postulado político da minha parte. No mundo dos bancos, as mulheres têm um papel importante e ingrato, pois invisível. Elas efetuam uma parte fundamental do processo, porém jamais recebem o reconhecimento deste trabalho. É como um sacrifício, e eu achava importante mostrar este pressuposto trágico. Não consigo me comover com estes homens de negócios, mas me importo com as mulheres. Mesmo quando elas são manipuladoras, como é o caso de Inès, isso me comove. Posso fazer um retrato destas relações porque este é um filme de 2021.

Como escolheu Fabrizio Rongione e Stéphanie Cléau para os papéis principais, e como os preparou?
Não fizemos muitos ensaios. Não trabalhamos a fundo a psicologia dos personagens, nem fizemos um trabalho extenso com referências. Eu preferi colocá-los numa situação concreta, assim como os personagens são postos à prova pelos clientes. Fui à Argentina com eles, e os coloquei em situações onde ficavam desconfortáveis no país novo, com outra língua, diante de atores não-profissionais. Os dois experimentaram um desconforto fundamental a partir dessa experiência. Meu grande desafio, enquanto diretor, era conseguir reproduzir no set de filmagem este caráter perturbador de fragilidade. Trabalhei com um diretor de elenco para a parte francófona, justamente para lidar com os atores não-profissionais. Era importante se colocar à escuta. Eu adoro a fragilidade de Fabrizio, que é sempre carregada de ambiguidade. Ele tem um avô comunista, então Fabrizio tinha uma impressão bastante negativa do mundo dos bancos. Foi um grande desafio para ele. Já Stéphanie tem um mistério fascinante. Foi ótimo poder colocá-los juntos.

Azor foi exibido em diversos festivais de cinema. As reações foram diferentes entre o público europeu e sul-americano?
Na verdade, Azor foi lançado em primeiro lugar nos Estados Unidos e na Inglaterra, onde as reações se concentraram no tom do filme e nas escolhas de roteiro. Na Suíça, isso gera certo desconforto, mas temos a tradição de não gerar escândalos, então as pessoas engoliam seco suas impressões. Alguns espectadores ficaram felizes de ver que este tema era retratado nos cinemas, enquanto outros me disseram que era inverossímil. Mas não temos a tradição do debate na Suíça. Na Argentina, é o contrário: debate-se com intensidade, entre dois lados com posições ideológicas muito firmes – imagino que você entenda bem isso, porque o contexto parece ser semelhante no Brasil. Sem surpresas, tive algumas reações mais epidérmicas. Muitas pessoas defendem o filme, e outras me dizem que ele mostra apenas uma parte da verdade, ou então que seria elitista. Ainda não pude ir pessoalmente à Argentina por causa da Covid, mas estou ansioso por esta experiência. Devo ir em março de 2022. Imagino que vai ser tumultuado, mas é importante que eu esteja presente para mediar estas reações e escutar o que as pessoas têm a me dizer. 

Você falou das reações mais fortes ao filme. Costuma ler as críticas? Leva em consideração o que a imprensa tem a dizer a respeito de Azor?
Eu leio tudo o que é publicado sobre o filme. Todas as críticas me interessam, sejam elas boas ou más. Mesmo as críticas negativas interessam, porque sei que meu trabalho não é perfeito, e posso melhorar. Além disso, fazemos filmes para provocar uma resposta, uma reação nos outros, então este tipo de diálogo é fundamental. A partir do momento em que o filme tem críticas globalmente positivas, não sendo duramente atacado, eu me sinto forte o bastante para ler tudo o que se publica a respeito. Algumas pessoas viveram de muito perto a ditadura argentina, então são tocadas de maneira especial pelo filme. Elas têm uma relação diferente de um público que enxerga em Azor apenas um suspense. Não fico surpreso que estas pessoas tenham uma reação mais violenta. Não me incomodo de lê-las, pelo contrário. Ao mesmo tempo, sou capaz de defender Azor, mesmo diante das pessoas que tiveram tais experiências pessoais. Acredito que o projeto tenha um rigor no ponto de vista. Não é uma obra frívola sobre o assunto, acredito realmente que ela tenha uma construção sólida por trás.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.
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