Filme de abertura da 8 ½ Festa do Cinema Italiano 2021, As Irmãs Macaluso (2020) começa radiante, mostrando o cotidiano solar que beira o lúdico das cinco irmãs viventes numa casa sustentada pelo aluguel de pombos para festividades. A tragédia corta essa rotina inclinada ao calor e, somada à passagem do tempo, traz à tona uma série de fissuras e chagas encarregadas de tornar cinzenta a paisagem emocional. A cineasta Emma Dante, cuja presença (online) é um dos destaques do evento que acontecerá virtualmente de 17 a 27 de junho, faz com esse apenas o seu segundo filme, baseado numa peça de sua autoria. Assim sendo, parte de um entendimento profundo do texto, mas as qualidades do filme não ficam apenas restritas a ele, pois são também evidentes na forma como a condutora privilegia a sensorialidade, a carga de sentido contida em detalhes, tais como uma marca na varanda que denota a passagem do tempo e o costume que perdura. Conversamos remotamente com Emma Dante para saber um pouco mais dela como funcionou esse processo criativo de transpor peça de teatro em filme de longa-metragem. Confira.
Qual o principal desafio enfrentado ao transpor a peça para os cinemas?
Um dos meus desejos era que as intérpretes escolhidas para desempenhar os mesmos papeis ao longo das décadas se parecessem, mas não fossem exatamente idênticas. A passagem do tempo modifica evidente e determinantemente os corpos, sobretudo na adolescência, uma época marcada por metamorfoses. Éramos completamente diferentes há 20 anos e esse deslocamento precisava estar no filme. Trabalhei muito nos ensaios e testes para chegar a uma forma de mostrar essas metamorfoses. Ao todo eram 12 atrizes, sendo cinco à época da infância, quatro para a vida adulta e três à velhice. Coloquei todas juntas nesse processo de desenvolvimento que teve muito de colaborativo.
Na peça, as irmãs são sete. No filme, cinco. O que motivou essa mudança? Uma questão de aproveitamento do espaço específico do cinema?
Essa quantidade de irmãs no teatro era absolutamente crível, pois o palco estava vazio, não havia móveis, sequer existia uma casa, ou seja, as diferenças eram várias. Praticamente não havia objetos em cena, apenas as irmãs. Enquanto isso, o filme tem um contorno mais real e, nesse sentido, sete me parecia um número excessivo. Tendo isso em vista, reduzimos para cinco, que ainda é uma quantidade grande de irmãs, por certo, porém mais crível.
No filme, você privilegia a questão sensorial, sublinhando o corpo (que deseja, se expressa e brinca, etc.). Esse aspecto sempre te pareceu essencial à adaptação, inclusive para que as personagens não precisassem verbalizar tanto?
Sem dúvida, tudo nasce do corpo das irmãs, sendo isso verdade também no teatro. O filme é inspirado na peça, mas preservamos isso do corpo das personagens como sendo parte da paisagem da história. Víamos o mar, por exemplo, por meio dos gestos delas. Essas crianças brincantes eram o primeiro passo para contarmos o enredo. A presença dos corpos é forte, bem mais do que as palavras. E isso se intensifica no final, pois na velhice há pouco a ser dito. As palavras são importantes ali na vida adulta, quando fazemos planos, quando há briga, quando jogamos na cara de outrem ao não estarmos de acordo com algo. Sobretudo na velhice, preservei isso de não utilizar tantas palavras.
Uma vez que a fotografia do filme é tão importante (pelo enquadramentos, pelas cores) à atmosfera, gostaria que você falasse da colaboração com o Gherardo Gossi, que vem desde teu primeiro longa.
A colaboração com ele certamente foi bastante íntima. Dito isso, é importante salientar o trabalho dos operadores de câmera. Gherardo não conseguiria isso sozinho, tampouco eu, evidentemente. Havia uma espécie de reunião de toda equipe em torno de uma ideia norteadora, concernente ao comportamento da câmera, estritamente o olhar dela, algo que nos parecia essencial ao filme. Nesse processo, decidimos utilizar um ponto de vista fixo que chamávamos de “ponto de vista da casa”, como se um olhar de vigilância viesse pairando de cima. Os quartos são enquadrados de forma diferente da sala, por exemplo. Havia diferenças de linguagens, isso de acordo com cada ambiente e interação.
O cinema contemporâneo tende ao explicativo, peca geralmente pelo excesso. No seu filme, há um cuidado com as ambiguidades, vide a dança que adquire outro significado pela frustração das promessas da juventude. Essa questão dos relevos às ambiguidades era uma espécie de pilar?
Sim, queria ressaltar as ambiguidades. Era importante registrar certas rotinas, como elas se comportam em casa, aonde vão quando saem juntas. Mas, principalmente, queria saber o que elas faziam quando entravam em casa, nesse lugar tão simbólico. Me importava a ambiguidade das coisas profundamente ligadas a todas. Além disso o vínculo era vital. Não há muita história, sabemos pouco efetivamente dessas irmãs, apenas a conhecemos de verdade quando há os encontros com a morte. Nossa visita a elas se dá nesses três momentos extraordinários em que alguém morre. A morte faz parte da vida, afinal. Não estamos diante de uma trama, mas de um acúmulo de circunstâncias.
Uma cena que, para mim, reflete a intimidade com a dor dessas personagens é o plano fixo da mulher que se revela doente e come compulsivamente. A cena foi pensada assim desde o princípio, sem o deslocamento da perspectiva às “espectadoras” dela?
Sem dúvida, a cena foi pensada desde o princípio para ser assim. Ao todo, acredito que essa cena dure uns 10 minutos, com a atriz comendo todos aqueles doces (risos).
O filme relaciona constantemente o literal e o metafórico. E me pareceu essencial a direção de arte para corroborar a lógica mencionada de não recorrer tanto à palavra. Como se deu esse processo?
Sim, a cenografia foi realmente fundamental. Os objetos, os móveis, a casa, todos esses elementos tinham de dialogar expressivamente, como se fossem membros do elenco. A câmera enquadra de modo quase obsessivo os móveis e demais elementos que inexoravelmente fazem parte da vida das irmãs. A diretora de arte trabalhou conosco desde os ensaios. Para você ter uma noção, a casa não estava pronta, ela foi totalmente construída por nós. Já para se ter uma ideia de como era intenso o nosso processo colaborativo, as atrizes é que decidiam onde ficava o armário, as camas, de que modo abrir portas e janelas. Inclusive, aquela janela quebrada estava quebrada de verdade (risos).
Brasil e Itália, até por conta do processo de colonização, têm várias convergências e simetrias que influenciam o contar histórias. Nas vezes em que esteve no Brasil, alguma te chamou atenção?
Há uma ligação, seguramente. Acredito que o Brasil seja muito próximo do sul da Itália, mais do que do norte. As pessoas são próximas, prezam por uma vida pública, estão sempre nas ruas, isso tanto no Brasil quanto na Itália. E essa característica influencia muito quem deseja contar histórias, na elaboração e na forma de conta-las. Acho que o principal é isto: a rua é entendida como um lugar de encontro. Isso é algo que nos aproxima e torna semelhantes.
Por conta da pandemia, não foi possível distribuir As Irmãs Macaluso nas salas de cinema. Como você enxerga esse futuro da exibição, menos no cinema e mais remotamente?
Não, a tela pequena não é o cinema. Todo o nosso trabalho foi orientado pensando na tela grande. Quando tudo isso passar, voltaremos à sala de cinema. Eu acredito piamente nisso. O cinema abre janelas e não podemos abrir pequenas janelas para o mundo, precisamos das janelas grandes. O mundo é enorme e merece janelas de tamanhos e possibilidades equivalentes. Não vejo a hora de voltar aos cinemas.
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