O nome dela é Patricia Abente, mas o mundo a conhece como Ana Brun. Sem nunca ter feito cinema, foi convidada pelo diretor Marcelo Martinessi para ser a protagonista do seu primeiro longa-metragem: As Herdeiras. Ela aceitou – “adoro desafios” – mas, ao ler o roteiro, temeu as reações do público diante de um tema tão polêmico. Afinal, se tratava da história de um casal de lésbicas sexagenárias que se vê obrigado a lidar com uma mudança drástica em suas vidas. Por isso, escolheu um pseudônimo: “Ana Brun”. Ana é também o nome de sua colega de elenco, Ivanova, que surge como um novo interesse romântico quando sua antiga companheira, vivida por Margarita Irun, precisa sair de cena. O resultado é o filme paraguaio de maior sucesso de toda a história do país, tendo ganho nada menos do que 5 prêmios no Festival de Berlim – um dos mais prestigiados de todo o mundo – entre eles o de Melhor Atriz – justamente para Brun, a estreante – e o de Melhor Filme segundo o Júri da Crítica. Há pouco, As Herdeiras passou também pelo Festival de Gramado, de onde saiu com nada menos do que 6 troféus: na mostra de longas estrangeiros, ganhou como Melhor Filme pelo Júri Oficial, Júri da Crítica e Júri Popular, além de ter recebido os kikitos de Direção, Roteiro e Atriz – dessa vez, dividido entre Brun, Ivanova e Irun. Aproveitando a passagem do trio pela Serra Gaúcha, tivemos um emocionante papo de cinema com elas, grandes damas da arte da atuação, e, mais do que tudo, da vida. Confira!
Uma coisa que chama a atenção em As Herdeiras é que se trata de uma história muito feminina, a voz das mulheres está em destaque. É comum no Paraguai esse tipo de filme?
Margarita Irun: Não. O que acontece é que o Marcelo Martinessi, nosso diretor, tem uma sensibilidade muito particular. Ele deixou claro que se encantou em investigar esse universo. Como você deve ter percebido, praticamente não há homens em todo o filme. Quando aparecem, é uma participação discreta. Então, a questão de gênero está presente. Inclusive em dar voz àquelas em condições menos favorecidas, como as mulheres que estão na prisão. É a partir desse tipo de potência que o filme é construído.
Ana Ivanova: Acontece que viemos de uma sociedade muito conservadora. No Paraguai, há apenas uma lei, bastante básica, contra a discriminação. Não há uma específica quanto ao gênero, por exemplo. Esse filme, além das conquistas artísticas e o que representa para o setor audiovisual do nosso país, o mais importante que alcançou foi propor esse debate. Primeiro, as pessoas começaram a discutir, mas depois se acalmaram e foi possível conversar a respeito. Até assumir uma postura a respeito dos temas que propomos. A sociedade paraguaia é, sim, muito conservadora, e não quer ver duas mulheres velhas, lésbicas e felizes. Querem entretenimento, sem ter que pensar a respeito. Mas é a função do cinema instigar essa discussão. Creio que o mais lindo, ao menos nesse caso, foi oferecer esse olhar a essas mulheres que até então eram invisíveis. São pessoas que eram vistas como se tivessem ultrapassado do prazo de validade. Fazer um filme que fala que a vida pode começar aos 60 é muito revolucionário.
MI: Quando voltamos de Berlim, foi como se tivéssemos assumido uma bandeira. A Lei de Cinema no nosso país precisava ser revista, assim como outros debates, sobre a violência contra a mulher, contra todas as formas de discriminação. E foi algo que nos uniu, nós três e o diretor, além de toda equipe. Assim que descemos do avião, no aeroporto, já havia esse espírito. Foi algo incrível. Parecíamos estrelas de rock que haviam chegado e estavam sendo recebidas pelos fãs, ainda que quando partimos, ninguém tinha sequer noção de quem nós éramos.
É interessante isso que vocês falam a respeito da “vida que começa aos 60”. Como As Herdeiras pode contribuir com esse debate?
AI: É essencial falar da vida, independente da idade dos personagens. Saber reconhecer a importância do que estão vivendo. Isso é o mais interessante a respeito de As Herdeiras. Há que reconhecer a finitude das coisas, é claro. Somos todos efêmeros. Faz parte da nossa natureza. Mas o que é a vida, e o que é o amor? Ele não tem gênero, não tem classe social, e não tem idade. Com isso em mente, tudo se simplifica.
Ana Brun: Veja só o casal de protagonistas deste filme. O fato delas serem lésbicas não é determinante para o que estão vivendo. É quase um detalhe. Estão enfrentando um problema que pode acontecer a todos, gays ou héteros. É um casal, e sempre haverá um que será o dominador, e o outro dominado. Essa é uma dinâmica que existe em qualquer tipo de relacionamento.
Muitos chegaram a afirmar que Chela, a personagem de Ana Brun, estava sendo explorada por Chiquita, vivida por Margarita Irun, mas a mim pareceu que ela estava, de fato, acomodada, vivendo em uma situação de conforto. Como vocês enxergam a relação das duas?
MI: Exatamente isso. Afinal, a Chiquita fazia tudo pela Chela. Era assim que as duas funcionavam, e nem questionavam isso.
AI: O nosso diretor, que tem viajado pelo mundo com o filme, tem nos dito que há lugares em que percebe que as pessoas saem mais encantadas com a Chiquita do que com a Chela. E em outros, acontecia exatamente o contrário. Tudo é uma questão de ponto de vista.
A Chiquita é a ‘rainha da prisão’, não dá pra se meter com ela (risos)…
AI: Com certeza. Não importa o ambiente onde ela for, sempre estará no domínio da situação.
AB: O que ela quer é passar bem, e sempre terão outras que irão se sujeitar ao modo dela agir.
AI: Mas há quem só consiga prestar atenção na Chela. É assim que as coisas funcionam. É bonito como elas conseguem despertar diferentes formas de interesse.
Ana, ao lado de duas figuras tão exuberantes e dominadoras, como a Chiquita e a Angy, papel da Ana Ivanova, como é manter o mínimo, agindo de forma tão contida?
AB: É uma personagem que parece estar sempre com medo, não? À espreita, sem coragem de se mostrar por inteiro. Mas, durante as filmagens, não havia me dado conta disso. Só depois, quando assisti ao filme pela primeira vez, é que percebi que estava sempre espiando pelas frestas. Foi um susto para mim. O Marcelo nunca havia falado que queria isso, e tampouco havia me dado conta dessa dimensão. Ele me dizia: “olhe através da porta, fique observando”, mas não tinha claro, para mim, o que ele estava querendo. Nunca havia pensado que isso que ele estava me pedindo resultaria em algo tão importante na tela. O que me disse, foi: “você é como uma gata, que fica perambulando pela casa em silêncio”.
As Herdeiras foi o seu primeiro filme, certo? E o que fazia antes? Trabalhava na televisão, teatro?
AB: Sim. E o único. Não. Nada disso. Até cheguei a fazer teatro, quando jovem, mas como um hobby, um passatempo. Nunca pensei em levar a sério. As Herdeiras foi um presente que recebi, totalmente inesperado.
E qual a história de vocês com o cinema?
MI: Este é recém o segundo longa-metragem que faço, mas televisão fiz por muitos anos. A produção cinematográfica no nosso país ainda é muito incipiente, mas está emergindo com força. As expectativas são boas para os próximos anos.
AI: Este é o meu sétimo longa, e participei de muitos curtas. Vivo da atuação, e isso, no Paraguai, é um feito e tanto. Para teres uma ideia, este foi o terceiro filme paraguaio a estrear nos cinemas durante o ano. Há outros em produção, mas apenas três chegaram às telas.
AB: O Paraguai inteiro ficou muito entusiasmado com o que nos aconteceu em Berlim e com os resultados que As Herdeiras tem alcançado ao redor do mundo. Há muita gente talentosa no nosso país, só lhes faltam os meios para demonstrar o que são capazes. Agora, com a nova Lei de Cinema, e com o êxito que estamos alcançando, isso poderá mudar.
Esse cinema feminino, que estamos comentando, também tem se refletido nas produções feitas no Brasil. Não se trata de um movimento isolado, pelo que podemos perceber.
AB: E é também muito justo que isso esteja acontecendo. As mulheres sempre foram relegadas a um segundo plano. Éramos as invisíveis.
Vocês três foram aos Festival de Berlim. Como foi a passagem por lá?
MI: Falar de Berlim é falar sobre um monte de emoções diversas. Estávamos ao lado dos maiores do cinema do mundo todo. E ganhamos o prêmio de Melhor Atriz, o de Melhor Filme pela Crítica, fomos homenageados com o Teddy, voltado a produções de temática LGBT. Ao todo, foram 5 prêmios! Arrasamos em Berlim (risos). Foi fantástico, algo incrível que não estávamos esperando. Tudo o que queríamos era que recebessem bem o filme. Mas no dia seguinte, após a exibição, quando houve a coletiva com a imprensa, foi quando, pela primeira vez, nos demos conta de que havíamos feito algo especial.
AB: Para nós, só a seleção, o fato de termos sido convidados para estar lá, ao lado de todos aqueles nomes impressionantes, já era um prêmio e tanto. Estar na mostra competitiva era muito mais do que havíamos sonhado. Por exemplo, nem estávamos programadas para ficar até o dia da premiação. Nossa ideia era ir, apresentar o filme e voltar para casa. Não tinha nem vestido para a cerimônia de encerramento (risos). Tive que ir ao shopping fazer compras! Eu só pensava: “estou competindo com Isabelle Huppert? O que essa paraguaiazinha aqui tem na cabeça?”. A Margarita pode ter percebido alguma coisa, mas eu só estava assustada!
AI: Sempre que nos perguntam como foi passar por lá, quando cruzamos o tapete vermelho e a recepção que tivemos, tudo o que penso era na escada enorme que enfrentamos para chegar à sala de cinema (risos)! Era tanta adrenalina, que não era possível entender tudo que estava acontecendo ao mesmo tempo. Ficamos de mãos dadas, uma ajudando a outra, para que ninguém tropeçasse ou desse algum vexame.
Três atrizes brasileiras já foram premiadas em Berlim, e elas são unânimes em comentar como esse momento é único. Como foi para você, quando anunciaram o seu nome?
AB: Estou falando sério, não tinha nem ideia de que tinha chances de ganhar. Estávamos sentadas as três, e a Margarita ficava dizendo que algo importante ia acontecer, mas não lhe dava ouvidos. Não conseguia acreditar. De repente, estava todo mundo batendo palmas, e o meu rosto no monitor, enorme, para todos verem. Fiquei observando aquilo, com os fones tradutores para entender o que diziam, mas nada fazia sentido. A vontade era de sair e ir ao banheiro. Quando os holofotes viraram para mim, toda aquela luz, pensei que ia morrer! Não esperava nada daquilo. Tanto que não lembro direito do que aconteceu, do que falei, absolutamente nada. A única coisa que conseguia pensar era na minha mãe. Nem sabia o que tinha que dizer ao chegar no palco. Mas aos poucos foi possível organizar as ideias, e acabei dedicando o prêmio às mulheres do meu país. Afinal, a premiação aconteceu exatamente na mesma data do Dia da Mulher no Paraguai. Olha que coincidência? Foi uma emoção incrível.
O que significa receber um prêmio como esse, em um dos maiores festivais de cinema do mundo?
AB: Sempre fui muito rebelde. Vivia contestando a ordem das coisas. Seja contra o governo, contra a ditadura. Desta vez, no entanto, fiquei tão contente, que não podia acreditar. Quando observei a lista de todas as atrizes que já haviam ganho esse mesmo prêmio, antes de mim, nomes como Nicole Kidman, Meryl Streep… é de deixar qualquer um de queixo caído. E daí, em 2018, colocam ali ao lado a bandeirinha do Paraguai, com o meu nome. Nunca me senti tão patriota em toda a minha vida. Amei tanto a bandeira do meu país naquele momento. Nem sei bem explicar.
As Herdeiras é uma coprodução, entre tantos países, do Brasil com o Paraguai. Interessaria a vocês filmar no Brasil?
AI: Claro. No ano passado, vim ao Brasil fazer alguns testes. Fiz uma peça de teatro com Gerald Thomas em São Paulo, e isso me possibilitou passar muito tempo por aqui. Foi um momento especial, pois pude conhecer a cidade. É um lugar incrível, mas também terrível – como são todas as cidades grandes, não é mesmo? É preciso encontrar o seu lugar. Quando estava filmando As Herdeiras, fiz um teste para um filme de um diretor pernambucano chamado Camilo Cavalcante, o mesmo de A História da Eternidade (2014) – que adoro! – mas não pude filmar porque acabaram coincidindo as datas. Chorei muito por causa disso. Seria o novo filme dele, que pelo jeito irá se chamar King Kong em Assunção. Foi uma oportunidade incrível, que acabei perdendo. É um sonho poder atuar no mercado brasileiro.
Ana, e você pensa em seguir atuando?
AB: Pois não sei. Se for possível, com certeza. Não sei o que vai me acontecer agora. Mas se vierem novos convites, certamente irei pensar neles com carinho. Eu gosto de desafios, foi por isso que aceitei participar de As Herdeiras. Ainda que não seja essa a minha profissão, tudo que possa fazer para romper o esquema, me agrada. Hoje trabalho com propriedade intelectual, em um escritório de marcas e patentes, registro de autor. De atriz, não sei nada.
MI: Eu também, sou advogada de profissão, e escrivã. E nunca, em toda a minha vida, cheguei a exercer. Estudei porque meu pai me obrigou, era a única maneira dele me permitir estudar teatro.
Dentre as coadjuvantes de As Herdeiras, a Pituca, vivida por María Martins, é uma das mais carismáticas. O que ela faz é texto ou improvisação?
AB: Ela é exatamente daquele jeito. É minha amiga pessoal, aliás. Eu que a trouxe para o filme. Acontece que ficou muito incomodada quando aceitei participar de As Herdeiras, porque, como estava ocupada, isso estava impedindo de nos encontrar para jogar cartas. Ela me dizia: “por culpa desse filme que você foi inventar, agora não podemos mais jogar!”. Então a trouxe para o filme, para que parasse de reclamar. É ela no filme. O diretor só ligava a câmera e a deixava fazer o que quisesse. A personagem é ela.
AI: O mais engraçado é que, durante os ensaios, sempre que sobrava um tempinho, ela já chamava as outras e começavam a jogar. E eram partidas sérias! Ela é muito dedicada às cartas. E sempre ganhava! Adora uma fofoca também.
Há um conservadorismo crescente no Brasil. Como o Paraguai vê o sucesso de um filme como esse, que tem como protagonistas um casal de lésbicas?
MI: Gerou muita polêmica.
AI: No Senado, uma senadora gritou conosco, nos acusando de sermos também lésbicas. Como se fosse um xingamento. Em plena sessão do senado!
MI: Acontece que fizeram uma homenagem ao filme no Senado, e o diretor e a Patricia (Ana Brun) estiveram presentes para discursar. E o pior é que ela falou isso em guarani, que é ainda mais forte para nós. É um idioma doce, mas também pode ser mais grosseiro.
AB: Avisei o Marcelo: “ok, vou receber essa homenagem, mas apenas se me permitirem dizer tudo o que quero”. Isso porque, naquela mesma sessão, os senadores do nosso país se autoblindaram para que ninguém pudesse investigá-los. Era algo que não poderia tolerar. Minha vontade era não ir, mas depois acabei concordando, com essa condição de falar o que quisesse. E o Marcelo concordou: “tudo bem, fale o que você acha que precisa ser dito”. Com muita educação, porém também com bastante força, disse o que pensava a respeito de tudo aquilo. Foi quando essa senadora se levantou e começou a nos xingar: “essas lésbicas, vagabundas”! Aos gritos!
Foi uma comoção, pelo jeito.
AB: É preciso enfrentar esse conservadorismo. E o mais curioso é que quem debate, quem se manifesta incomodado, são gente de dinheiro, não é a população em geral. O povo, para teres uma ideia, nos apoiou. E ficaram contra a senadora. Foi maravilhoso, algo que não estava esperando. Por isso que, lá no começo, tive medo em atuar nesse filme, pois não sabia como seriam as reações.
Essas mulheres, que vocês interpretam, existem, mas não são vistas.
AB: É isso mesmo. Elas estão por aí, mas não as percebem.
AI: O que o filme faz é torná-las visíveis. Oferece um foco a elas. E não apenas no cinema, mas por toda a sociedade. Há um mecanismo quase institucional para tentar escondê-las, e isso é o mais perigoso. Este filme joga com a poesia da situação, e através dela consegue propor esse debate.
MI: Por isso era tão importante que no centro da ação estivesse esse casal. Isso demonstra também as nossas limitações enquanto país. Não somente o Paraguai, mas a sociedade como um todo. É preciso amar a diversidade. É um filme cheio de poesia, de metáforas, de símbolos a serem descobertos.
Para vocês, o que significa o título As Herdeiras?
AB: É a herança que trazemos conosco, e tudo o que significa os silêncios e a dura vida que nos tocou durante a ditadura. Eu passei por isso, não podia falar, tive que lidar com o desprezo. É a herança que vem de um sistema que se abateu sobre todos. Alguns mais, outros menos. Mas afetou a todos. Até o dia de hoje, isso permanece, e não pode ser ignorado.
MI: Essa é a mais pura verdade. Foram 35 anos de ditadura. É uma bagagem muito pesada que carregamos, em todos os sentidos. E ainda não nos recuperamos. Essa mordaça que nos aprisionou naquele tempo, segue presente. Era quase como um polvo, que se espalhava por todos os lados, a cada instante criando novos pés. Acabou afetando mais do que o esperado. Isso é importante, discutir esse peso nos diversos âmbitos. Penso que Marcelo manejou esse tema com grande sabedoria.
AI: Essa herança se reflete em outros aspectos também. É uma história sobre mulheres machucadas, que possuem grades dentro delas e tiveram que descobrir como lidar com isso. Chiquita, na prisão, é mais livre do que Chela, que está livre. Afinal, segue sendo líder. A palavra “herança” tem a ver com o que é legado, o que fica para a posteridade. Elas se aliviam para poder seguir adiante. É uma herança, mas também é um peso. Todo esse pensamento que temos como sociedade, isso é o que nos foi deixado. Temos que nos liberar desses antigos conceitos para que, enfim, possamos ser livres.
(Entrevista feita ao vivo em Gramado em agosto de 2018)
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