A relação de Arauco Hernandez com a imagem é estreita. Nascido no ano de 1974, em Montevideo, ele faz parte da geração de profissionais que despontou nos últimos anos e recolocou o Uruguai na mira dos principais festivais cinematográficos do mundo. Responsável pela fotografia de filmes elogiados como Gigante (2009), de Adrian Biniez, Hiroshima: Um Musical Silencioso (2009), de Pablo Stoll, e Prazo de Norberto (2009), de Daniel Hendler, entre outros, Arauco estreou na função de diretor de longas-metragens (antes havia dirigido o curta Perro Perdido, em 2002) com Os Inimigos da Dor (2014), coprodução Brasil/Uruguai selecionada para o Festival de Locarno em 2014. Neste bate-papo exclusivo, Arauco fala sobre a gênese de seu filme, a importância das coproduções e, de quebra, faz uma análise não apenas do cinema latino-americano, mas também da crise de identidade da sétima arte como um todo. Confira.
Por que a escolha de um europeu, mais especificamente de um alemão, como protagonista de Os Inimigos da Dor?
A ideia sempre foi fazer um filme com Felix (meu cunhado), o protagonista, e coestrelado por Ayara (minha irmã). No início era uma história inspirada no relacionamento deles: dois amantes de diferentes nacionalidades, sem lugar claro para viver e com dificuldades migratórias a serem superadas para manter o casal. Tudo isso foi deixado para trás ao longo dos anos, a cada nova versão do roteiro. Em princípio aleatório, o fato de Felix ser alemão começou a se tornar uma questão central. Sua nacionalidade determinou o curso da história até mudar a ideia original. No final dos anos 1980, o muro caiu e a Alemanha começou a dar seus primeiros passos na vida democrática. No final dos anos 1980, o Uruguai tinha acabado de sair de uma ditadura e voltou timidamente para o caminho da democracia. Este paralelo se tornou importante para mim. Os protagonistas deviam vagar pelas ruínas que esses anos escuros haviam deixado, onde a primeira coisa que estava faltando era a ingenuidade.
A trilha sonora me parece muito importante para estabelecer o clima do filme. Você chegou a dar alguma indicação de tom a Maximiliano Silveira e Manuel Rilla ou partiu totalmente deles a construção da trilha?
Ao escrever o roteiro, como um jogo mental, eu me perguntava constantemente como o protagonista contaria sua própria história. Supus que ele a musicaria com base no que tinha ouvido em sua adolescência e juventude: a música eletrônica alemã do final dos anos 1970, início dos anos 1980. Comecei a ouvir esse tipo de música, especialmente Kraftwerk. Esse foi o ponto de partida. Ambos os músicos (os autores da trilha) são, sobretudo, excelentes guitarristas. Minha primeira indicação era que ele (o protagonista) não queria guitarras na trilha sonora, a música deveria vir de sintetizadores. Durante a composição descartamos qualquer tipo de solução moderna e trabalhamos da mesma maneira como se criava as trilhas sonoras daquela época.
Mesmo falando línguas distintas, os personagens acabam essencialmente se entendendo. Isso acontece, em boa parte, pela maneira como você dispõe os signos visuais e sonoros. Limitar a palavra o ajudou a trabalhar melhor as outras esferas da encenação?
O filme é de alguma forma sobre a empatia: homens quebrados, corações partidos, que se encontram e se reconhecem no outro. A força empática é o que impulsiona a origem dessa “gangue”. A impossibilidade de comunicação verbal levou à exploração de outras formas de entendimento, mais básicas, mas não menos profundas. Sempre imaginei que cada um dos personagens da “gangue” enfrenta uma fase do duelo: a resposta violenta, a negação, e, finalmente, a resignação. Cada um deles é um lado diferente do mesmo ser. No final, a turma está consolidada quando os três se tornam um, de alguma forma, quando decidem lidar com a dor da perda de maneira nobre, mas absurda: abraçar uma causa que dá um novo significado à existência – este sentido que tem sido questionado pelo vazio que advém de uma separação – e, dessa maneira, é salvar o outro para salvar a si mesmos.
Você mostra uma Montevidéu estilizada, essencialmente abandonada e escura. Esse registro atende apenas à necessidade de espelhar os afetos fraturados dos personagens ou também a uma vontade de mostrar um Uruguai distante daquele dos cartões postais?
Uma combinação de várias coisas. Por um lado, Montevideo pós-ditadura era uma cidade atingida por uma crise de mais de uma década. Mas, acima de tudo, se tratava de buscar uma Montevideo que mais parecia uma cidade da Europa do leste. A ideia era contar a história de um homem que viaja ao outro lado do mudo para chegar ao lugar de onde ele partiu e enfrentar aquilo que ele acredita ter deixado para trás.
A solidariedade é um ponto importante de seu filme. Esse elemento guiou o roteiro ou foi se impondo durante a escrita, como uma forma natural de interligar os personagens?
A solidariedade é, para mim, a única verdadeira característica épica do ser humano. Não acredito nos heróis individuais de boa parte do cinema clássico, acredito nas comunidades e nas ações conjuntas. Gosto de bandos, da fraternidade com o outro, mais ainda quando o outro é muito estranho a mim. Acredito que essas ideias tingiram o roteiro do início ao fim.
No Brasil sentimos falta de coproduções com os países vizinhos, algo, em parte, explicado pela diferença linguística, ironicamente um dos elementos de seu filme. Como se deu esse trabalho de colaboração com a equipe brasileira?
Graças ao nascimento de novos incentivos, as coproduções estão aumentando e isso é algo para se comemorar. O trabalho com a Primo Filmes foi maravilhoso e espero que se repita. Nesse momento estou trabalhando no Brasil, com uma equipe cem por cento brasileira, e me sinto muito feliz por fazer parte disso. O produtor me disse que gostaria de ter uma coprodução com o Uruguai no próximo ano, filmando no Uruguai. Eu adoraria isso, poder recebê-lo em casa.
Como você vê o atual cenário cinematográfico latino-americano?
A pergunta é difícil, porque na verdade o que ocupa minha cabeça nos dias de hoje é a situação do cinema em geral. Estamos diante de uma nova mudança de paradigma na história da arte. Pela primeira vez na história da humanidade há mais produtores de conteúdos que espectadores para vê-los. Isto porque, para existir na internet, é necessário ser basicamente um produtor de conteúdo: fazer upload de fotos, comentários ou materiais. Isto está transformando a maneira como a arte é percebida. No passado, tínhamos um consumidor para quem a arte era uma obra obscura, estranha e misteriosa. Hoje em dia qualquer espectador já tirou uma foto ou fez um vídeo, alguma vez. Os espectadores estão recebendo e gerando impulsos que os tornam mais impermeáveis. Há tanta poluição de imagens que a percepção é inevitavelmente mais superficial. É difícil pegar um espectador de surpresa. Na atualidade, qualquer espectador tem uma visão clara do que ele acredita que deva ser o cinema, porque não se trata mais de uma matéria tão estranha. Não é por acaso que a indústria cinematográfica esteja se voltando ao espetacular. A vida útil de um filme na cabeça do espectador é cada vez menor. Assim, é difícil para os que os filmes se resolvam, cresçam e deixem a sua marca nos corações dos indivíduos. O cinema está perdendo uma parte importante do seu sentido redentor para se tornar um entretenimento passageiro e isso, para nós, cineastas, é difícil de engolir.
Você acompanha o cinema brasileiro? Viu recentemente algum filme que te impactou?
Acompanho os filmes brasileiros em mostras e festivais. Desde que minha vida está cada vez mais relacionada com este país, tenho me esforçado. O último filme brasileiro que vi foi Boi Neon, na semana passada. Agora tenho sobre a mesa de meu escritório o DVD de Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos.
(Entrevista concedida por e-mail em maio de 2016)
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