Documentarista de destaque no cenário cinematográfico nacional, premiado no Brasil e no exterior por filmes como Menino 23 (2016) e Amazônia Eterna (2012), Belisario Franca tem se voltado, cada vez mais, para as possibilidades oferecidas pelo exercício da ficção. Só em 2019 ele comandou três séries para a televisão – Baile de Máscaras (2019), Jungle Pilot (2019) e A Revolta dos Malês (2019). Não satisfeito, ainda tratou de adaptar a última para o cinema, dando origem ao longa A Revolta dos Malês, ainda inédito no circuito comercial, mas que teve sua primeira exibição pública no começo de dezembro, em Salvador. O Papo de Cinema esteve presente na ocasião, e tratou de conversar com o cineasta sobre esse mais recente trabalho. Confira!
Você é conhecido por seu trabalho como documentarista. A Revolta dos Malês é seu primeiro trabalho na ficção?
Na verdade, a minha relação com a ficção começou com Baile de Máscaras (2019), que é uma série de dramaturgia que marcou minha estreia nesse estilo. Depois veio A Revolta dos Malês, e por fim o Jungle Pilot (2019). Ou seja, foram feitos um atrás do outro. Uma sequência de três projetos, em dois anos. Uma consequência feliz.
O nome do filme – e da série – é A Revolta dos Malês, mas os personagens se referem sempre aos ‘imalês’. Qual a diferença entre as duas denominações?
São apenas maneiras ligeiramente diferentes de se referir ao mesmo grupo africano, muçulmano, que veio da região da Nigéria para o Brasil e, principalmente, para Salvador. Os acadêmicos estudam com profundidade e qualidade, entre eles o professor João José Reis, de Salvador, da UFBA, que tem vários livros sobre o assunto, e todos muito bons. Segundo eles, o termo ‘imalês’ é o principal, o que circulou mais. Então, a gente tinha uma escolha a fazer. No final, deixamos a decisão do nome para o historiador Bruno Veras, nosso consultor, que trabalhou com a equipe do roteiro. Foi ele que apontou que ‘malês’ funcionaria melhor. Por ser um pouco mais universal. E por isso decidimos trabalhar com essa possibilidade.
Belisário, você assina a direção geral. Então, foste uma decisão sua trazer o Jeferson De para o projeto. Como surgiu essa parceria?
Quando pensamos nesse projeto, havia essa preocupação de, resolvidas várias questões artísticas, também ter as vozes certas envolvidas. O Rodrigo dos Santos, que é ator e está no elenco, também se ocupou da preparação dos atores. Era um artista afrodescendente cuidando de outros artistas afrodescendentes! Entre os roteiristas, um dos criadores da série é o João Ademir, junto com a Cristina Gomes e a Francine Barbosa, que também são afrodescendentes. Ou seja, essa voz estava bem colocada ali. Por isso, me pareceu bastante natural que tivesse um parceiro também na direção. Embora tivesse tomado várias direções artísticas quanto ao formato – e essa é, particularmente, uma parte do trabalho que gosto muito, no que diz respeito a resolver artisticamente o projeto – na hora da execução achei que cabia chamar o Jeferson. E foi maravilhoso, pois se trata de um profissional muito generoso e competente.
Em que área ele atuou, mais especificamente?
Ele é um brilhante diretor de atores, então, nesse caso, ter podido contar com ele foi realmente especial. Ele havia vivido a experiência de trabalhar em uma proposta similar a essa que estávamos trazendo, que visava uma aproximação do teatro com o cinema. Por isso, se sentiu à vontade. Acho que tenha sido uma boa parceria no sentido da escuta. Pude ouvir as propostas que ele tinha a dar, e ele também estava interessado em saber o que já havíamos desenvolvido. Olho para o projeto e vejo a mão e o coração de cada uma dessas pessoas. Lembro dos momentos em que as sugestões surgiram, como rodar cada plano, como trabalhar a atuação de cada personagem. Sinto que tivemos uma parceria no melhor estilo ganha-ganha.
Grande parte das filmagens foram feitas em estúdio, confere?
Cem por cento do filme foi feito em estúdio. Quer dizer, com exceção de algumas poucas respiradas, por assim dizer, que fizemos em externa.
Como foi essa logística que permitiu recriar a Salvador de séculos atrás?
Talvez isso tenha sido o que mais me interessou nesse projeto. Era uma decisão, afinal. Não seria possível recriar a Salvador de 1835 nas ruas. Por isso, decidimos trabalhar em uma caixa-preta, de uma forma mais econômica do ponto de vista de recursos de cenografia, mas com uma intensidade muito grande em termos de produção de arte, atuação, as performances dos atores, e também na fotografia, com os movimentos de câmera. Buscamos uma síntese entre o que o teatro e o cinema tem, ou podem dar de melhor.
Isso acaba por criar uma sensação claustrofóbica que reflete muito os sentimentos dos personagens.
E que era a realidade deles. Exatamente o que estávamos buscando. E estávamos, literalmente, dentro de uma caixa-preta. Quando você entrava no estúdio, era possível sentir essa pressão. O que o personagem e o ator estavam sentindo era muito real. Algo que trabalhávamos no dia a dia.
Há também a opção de não mostrar o rosto do personagem branco. Por quê?
Foi uma decisão também da criação. Pensamos nisso ainda na fase do roteiro. Afinal, é uma história de afrodescendentes, de afirmação. A protagonista é uma mulher afrodescendente que está na luta pela liberdade da própria filha. Era, portanto, uma oportunidade de dar a esses personagens e atores o protagonismo absoluto. Então, por que não? São poucos personagens não africanos em cena. Por quê colocá-los na mesma altura dos demais? Nós diminuímos a dimensão deles. A força das falas, a função dramática deles, está tudo lá. Mas, visualmente, geramos essa impressão. Tiramos o foco dessas figuras, pois as que preponderam são os afrodescendentes.
O filme permanece inédito, mas a série já estreou. Como tem avaliado essa recepção?
A série funciona muito bem nesse formato. Recebemos retornos muito positivos. Os ganchos fazem com que as pessoas queiram ver os próximos episódios. No entanto, fazer o longa foi uma maneira de não apenas resumir, mas também oferecer uma outra narrativa, potencializando algumas questões. Do ponto de vista técnico, também foi possível um melhor desenho de som, os tempos narrativos mais estudados, os pequenos detalhes foram adaptados para a tela grande. Algumas sequências, que não existiam na série, foram colocadas nessa nova versão. Chegamos a filmar algumas cenas, principalmente essas ‘respiradas’, como gosto de chamar, fora do estúdio e feitas especificamente para o cinema. Com isso, se oferece um novo fôlego à narrativa. Com isso, nos foi permitido também o uso dessa história em escolas. Estamos preparando uma cartilha com historiadores e professores para que alunos e estudantes possam usufruir e usar esse filme como uma ferramenta de educação.
O que A Revolta dos Malês tem a dizer ao Brasil de 2019?
É um Brasil, esse que estamos vivendo, marcado pela intolerância. Um país que tenta separar as pessoas. A Revolta dos Malês mostra a luta de um grupo pela sua dignidade, e como isso pode levá-los a extremos. Algo que pode acabar acontecendo hoje em dia também. Temos uma protagonista feminina que deseja libertar sua filha. Hoje, mais do que nunca, no país do feminicídio, ter uma mulher afrodescendente à frente da trama é muito importante. Estamos marcando posição. É importante olharmos para isso e mostrar essas decisões. A gente, com tudo isso, tem a possibilidade de refletir um pouco. Apesar dessa história ter acontecido há quase 200 anos, ainda ressoa.
(Entrevista feita ao vivo em Salvador em dezembro de 2019)
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